O novo negócio das plataformas
_____________ Matchmakers: the new economics of multisided platforms Autores: David S. Evans e Richard Schmalensee. Editora Harvard Business Review Press. 272 páginas. Platform Scale: How an emerging business model helps startups build large empires with minimum investment. Autor: Sangeet Choudary. Editora Platform Thinking Labs. 338 páginas. _____________ No dia 10 de maio, a Amazon lançou […]
Da Redação
Publicado em 17 de junho de 2016 às 18h27.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h26.
_____________
Matchmakers: the new economics of multisided platforms
Autores: David S. Evans e Richard Schmalensee. Editora Harvard Business Review Press. 272 páginas.
Platform Scale: How an emerging business model helps startups build large empires with minimum investment.
Autor: Sangeet Choudary. Editora Platform Thinking Labs. 338 páginas.
_____________
No dia 10 de maio, a Amazon lançou um serviço chamado Amazon Video Direct, um site que permite que qualquer pessoa publique vídeos ou assista os já publicados. Trata-se de uma competição direta com o YouTube, do Google, um serviço que já conta com mais de 1 bilhão de usuários. A Amazon fechou acordos com vários produtores de conteúdo de alto padrão (como a editora americana Condé Nast e o jornal britânico The Guardian ). Mas, para atingir um volume de ofertas capaz de fazer frente a um gigante desses, vai precisar cativar dezenas, talvez centenas de milhares de produtores independentes – como fez o YouTube, a partir de 2005.
Este é um tipo de competição ainda pouco compreendido no mundo dos negócios. Não se trata de criar um produto melhor, ou mais barato, ou mais facilmente disponível que o do concorrente. Não se trata sequer de criar um produto. Trata-se de construir o melhor ambiente possível para que produtores e espectadores interajam. E isso é muito diferente de gerir um negócio tradicional.
Na década de 90, quando a internet começou a se disseminar, era comum usar o termo “nova economia”, que essencialmente se referia ao mundo digital. O termo pegou, mas praticamente ninguém sabia do que estava falando. Só agora os economistas estão destrinchando as premissas básicas que governam o tipo de negócios mais bem-sucedido da era digital: o modelo de plataformas.
É por este modelo que funcionam três da cinco empresas mais valiosas do mundo – Apple, Google e Microsoft – e sete entre os dez principais “unicórnios” (startups que atingiram valorização de mais de 1 bilhão de dólares), incluindo Airbnb e Uber. Dois livros recentes tratam de explicá-lo.
Casamento à moda antiga
“Casamenteira, casamenteira, olhe no seu livro e arranje para mim um acordo perfeito” é um dos versos da música Matchmaker (casamenteira, numa tradução livre), do musical O Violinista no Telhado, baseado nos contos de Sholem Aleichem. O verso refere-se à figura da casamenteira encarregada de fazer um acordo entre famílias, na tradição judaica, consumado com um casamento. A tradição chinesa tem a mesma figura. Para David S. Evans, economista e consultor, e Richard Schmalensee, professor de economia no Massachussetts Institute of Technology (MIT), esse papel de intermediário é o que define o modelo de plataformas. Daí o título de seu livro, Matchmakers: the new economics of multisided platforms (“Casamenteiros: a nova economia das plataformas multilaterais”, numa tradução livre), lançado em maio.
Assim como os casamenteiros, plataformas em geral são um fenômeno antigo, dizem os dois. As bolsas de valores, que datam do século 18, unem compradores e vendedores de ações. Os bazares unem comerciantes e clientes – desde os mercados na Grécia antiga aos shopping centers atuais. Operadoras de cartão de crédito, idem. Discotecas unem os públicos masculino e feminino, fornecendo um ambiente propício ao acordo romântico. Jornais e revistas (aí incluído o aplicativo EXAME Hoje) cativam leitores e, por meio deles, atraem anunciantes.
Com a revolução tecnológica recente, porém, o fenômeno ganhou outra proporção – tanto em abrangência quanto em valor. A Microsoft funciona como uma plataforma: ela licencia seu sistema operacional Windows para fabricantes de computador, atrai desenvolvedores de aplicativos e, graças ao enriquecimento do sistema como um todo, consegue mais clientes. O sistema Android, do Google, faz a mesma coisa. Já a Apple não licencia seu sistema operacional, mas sua App Store une programadores e usuários.
Vender abaixo do custo pode dar lucro
O segredo das plataformas é reduzir o atrito para fazer negócios – aquilo que o economista Ronald Coase chamou de custos de transação, em 1937. Isso inclui os custos de procurar o que você quer ou encontrar seu cliente, negociar contratos, regular relações etc.
Tome-se o caso do Alibaba como exemplo. A China tinha um sistema de comunicações deficiente, e o site, criado em 1999 por Jack Ma, era uma forma de conectar produtores do país com compradores de dentro e de fora. Dois anos depois, evoluiu para criar um sistema de garantia de qualidade – via reputação adquirida. E se tornou uma plataforma eficiente, com mais de 20 milhões de empresas chinesas e quase 4 milhões de estrangeiras cadastradas em sua comunidade, o maior portal B2B (de negócio para negócio) do mundo. Os atritos que o Alibaba reduziu para as pequenas empresas chinesas, de acordo com Evans e Schmalensee, foram: a presença geográfica limitada; a fragmentação de fornecedores e compradores; os canais de comunicação e informação limitados; a pequena escala de produção; a ausência de mecanismos para estimular a confiança.
Um negócio desse tipo obedece regras bem diferentes das tradicionais. A economia básica sustenta que nunca é lucrativo vender um bem por um preço menor do que seu custo de produção. A nova economia multilateral mostra que, mesmo pagando alguns clientes, em vez de cobrando deles, a empresa pode ser lucrativa. É o que fazem os cartões de crédito, por exemplo: além de não cobrar mensalidade, ainda oferecem programas de recompensa – compensam essa receita negativa cobrando das empresas uma porcentagem do valor das compras feitas com o cartão.
Negócios tradicionais compram matérias-primas de fornecedores, transformam-nas em produtos acabados e vendem bens ou serviços para seus clientes. As plataformas multilaterais são diferentes: precisam atrair dois ou mais tipos de clientes e possibilitar sua interação.
A explicação para esse modelo começou a ser desenhada apenas no ano 2000, pelos economistas Jean-Charles Rochet e Jean Tirole, da Universidade de Toulouse, no sul da França (um dos agraciados com o Nobel de Economia, em 2014). Eles estudavam telecomunicações, cartões de pagamento e sistemas operacionais de computadores, e perceberam que todos tinham algo em comum: facilitavam interações entre diferentes tipos de clientes.
Por ser tão novo, esse campo ainda guarda algumas contradições. No livro Platform Scale: How an emerging business model helps startups build large empires with minimum investment (“A Escala das Plataformas: como um novo modelo de negócios ajuda startups a construir impérios com investimento mínimo”, numa tradução livre), lançado em setembro passado, o cingalês Sangeet Choudary, pesquisador e consultor especializado em plataformas, faz uma distinção diferente da de Evans e Schmalensee entre negócios tradicionais e plataformas.
Para Choudary, empresas tradicionais são como dutos. “As empresas fazem produtos ou elaboram serviços e os vendem aos consumidores (…) criando um fluxo linear de valor, parecido com o fluxo de água por um duto.” Da produção ao consumo, tudo funciona em linha reta. Já as plataformas cumprem dois papéis: construir a infraestrutura para produtores e consumidores se conectarem e instantaneamente interagir uns com os outros; e promover uma curadoria e governança das relações.
Pela definição de Choudary, revistas, por exemplo, pertencem ao modelo tradicional, porque seu modo de produção é linear (o conteúdo é feito para o leitor). Para Evans e Schmalensee, elas são uma espécie de plataforma, porque atendem a distintos grupos de clientes.
Apesar das pequenas diferenças, a base do modelo de plataformas está já assentada. Ela inclui as seguintes mudanças:
- De mercado: nas plataformas o negócio não cria o valor final, ele apenas permite a criação de valor.
- Do que é vantagem competitiva: não são recursos o que importa, e sim o ecossistema.
- Na criação de valor: empresas tradicionais se tornam mais eficientes por meio dos processos com os quais transformam seus recursos em bens e serviços; para plataformas, o valor está na gestão do ecossistema, que envolve o design e a otimização das interações;
Isso implica várias mudanças, conforme Choudary. Uma plataforma não tem como implementar um controle de qualidade nos moldes das empresas tradicionais. Isso tem de ser feito por vias diversas. O Uber, por exemplo, faz uma pesquisa de antecedentes criminais dos motoristas que aceita em sua base. Depois disso, usa um mecanismo de avaliações dos clientes (que leva à construção de reputação). No YouTube e no site Quora, os usuários votam pelos melhores conteúdos.
Outra diferença crucial é o poder dos algoritmos. Nas plataformas, são eles, e não gestores humanos, os responsáveis pelas decisões de alocação de recursos e concessão de reputação.
A criação de uma plataforma também tem desafios muito diferentes. Numa empresa tradicional, você sabe mais ou menos como precificar seu produto. “Os Matchmakers (empresas que usam o modelo de plataforma) encaram problemas muito maiores de precificação, porque têm de equilibrar os interesses de todos os grupos, para que eles ingressem na plataforma, para mantê-los a bordo e para estimulá-los a fazer negócios com membros dos demais grupos”, dizem Evans e Schmalensee.
A lógica do Tostines, ou o ovo e a galinha
Toda plataforma, para ser bem-sucedida, precisa resolver o problema do ovo ou da galinha. Imagine um serviço de reservas de mesas em restaurantes. Os clientes só vão instalar o app em seus smartphones se houver um número considerável de restaurantes cadastrados em sua área. Da mesma forma, os restaurantes só vão se dar ao trabalho de se associar caso haja clientes suficientes usando o serviço.
A solução desse problema envolve uma série de estratégias. Pode haver uma espécie de ingresso condicional – cumprido caso haja suficientes integrantes de outro grupo. Mas, em geral, um dos lados da plataforma é subsidiado (o outro, ou outros lados, é a parte pagante). Em seu início, o YouTube chegou a oferecer dinheiro para que mulheres postassem vídeos no canal (sem sucesso). O sistema de pagamentos online Paypal distribuiu dinheiro para angariar uma base de clientes, segundo um de seus fundadores, Peter Thiel, no livro De Zero a Um.
Quando montou o comparador de preços Buscapé, o fundador Romero Rodrigues listava preços das empresas manualmente. Um dos grandes varejistas não aceitava que ele publicasse seus preços ao lado da concorrência e não lhes fornecia sua tabela. Até que ele e os sócios decidiram tirá-lo do site. Bastou isso para o varejista telefonasse exigindo equiparação com os concorrentes.
Se conseguem atingir uma “massa crítica”, as plataformas passam a se beneficiar do efeito Tostines (o efeito circular citado no antigo anúncio: vendem mais porque são fresquinhos, são mais fresquinhos porque vendem mais). Se não, “flopam”, descarrilham. Foi o que aconteceu com a Microsoft. No mês passado, a empresa reconheceu perda de valor em sua divisão de celulares, montada com a compra da Nokia: não conseguiu atrair programadores de apps suficientes para seu ecossistema, o que tornou seus produtos menos atraentes para os clientes, o que levou seu ecossistema a ser menos interessante para os programadores.
As vantagens da plataforma
Quando é bem-sucedida, porém, uma plataforma tem muitas vantagens em relação a um negócio tradicional. Os aplicativos Hipstamatic e Instagram têm aparentemente o mesmo negócio: prover filtros para fotos. Mas o Hipstamatic, como companhia de software, obtém lucro pela venda do app e dos filtros mais sofisticados. O Instagram focou na rede, através de sua integração com o Facebook. Ironicamente, uma das mais populares etiquetas do Instagram é a hashtag #hipstamatic. As pessoas tiram fotos com o Hipstamatic, mas compartilham-nas pelo Instagram.
A expansão também é mais barata em uma plataforma (o que explica o título do livro de Choudary). Uma cadeia de hotéis cresce construindo mais hotéis e criado mais quartos. Tem um custo marginal de manter e administrar esses quartos. O site de hospedagem Airbnb se expande com custo marginal próximo de zero. Os novos quartos são adicionados e mantidos pelos anfitriões.
Para negócios tradicionais, a vida pode ficar muito difícil se tiverem que concorrer com a parte subsidiada de uma plataforma. Pense nos agentes de viagem, frente a serviços de agendamento pela internet, ou nos próprios hotéis em relação ao Airbnb.
Isso não quer dizer que as plataformas sejam a solução em todos os casos. Em 2014, a Apple lançou o Apple Pay, um sistema de pagamentos via celular com que pretende tomar o espaço ocupado pelos cartões de plástico. Mas o sistema existente funciona bem, e trocar uma operação que dura dez segundos por uma que dura três ou quatro não parece representar redução de atrito suficiente para garantir o sucesso da iniciativa.
Manter-se como plataforma também exige habilidade. Os matchmakers não apenas chacoalham o mundo das empresas que têm o azar de concorrer com eles. Estão inseridos em um ecossistema mais amplo, que inclui reguladores, governos e outras instituições. Tome-se o Uber como exemplo. Concebido como uma plataforma que une motoristas independentes e usuários, a empresa tem enfrentado uma série de processos. Seus motoristas preferem ser considerados empregados, e ter os direitos trabalhistas associados a esse status. Também para o estado a questão é sensível: com o Uber, as licenças que ele emite para o serviço de táxis perdem valor. Sem falar nos impostos que deixa de arrecadar.
Para os novos “casamenteiros”, o lema mais adequado talvez seja um verso do samba que João Bosco e Aldir Blanc compuseram em 1977, com o título de Plataforma: “não traz lema nem divisa, que a gente não precisa que organizem nosso carnaval”.
(David Cohen)