Economia

"Sem mexer nos impostos, vamos crescer menos", diz Appy

De saída do Ministério da Fazenda, o responsável por tocar a reforma tributária dá sua versão para o fracasso do projeto

Appy: "As principais resistências da reforma vêm dos estados que não querem perder a possibilidade de usarem incentivos fiscais como forma de atração de investimentos". (--- [])

Appy: "As principais resistências da reforma vêm dos estados que não querem perder a possibilidade de usarem incentivos fiscais como forma de atração de investimentos". (--- [])

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Da Redação

Publicado em 20 de agosto de 2009 às 09h00.

Depois de sete anos no Ministério da Fazenda, o economista Bernard Appy deixa o governo no final de agosto. Segundo ele, sua saída foi motivada por questões estritamente pessoais. Mas Appy, cuja principal missão era tocar o projeto de reforma tributária - que previa a criação de um imposto sobre o valor agregado (IVA) para substituir o ICMS -, não esconde a frustração. E culpa a todos que considera responsáveis pelo fiasco da reforma: dos políticos e empresários à imprensa.

EXAME - Por que a reforma tributária ainda não foi aprovada e, ao que tudo indica, não será até o final do governo Lula?
Appy - Ainda acredito que seja possível aprová-la este ano, desde que haja um empenho muito grande do Congresso, do governo e da sociedade. É verdade que à medida que o tempo passa, a chance é cada vez menor, porque ficamos mais próximos das eleições, e vai ficando mais difícil. Mas por que é difícil aprovar o projeto? Porque os benefícios da reforma são difusos. Ou seja, quem ganha com a reforma tributária? Ganha o conjunto do país através da simplificação do sistema tributário e na eliminação de uma série de distorções que existem nele, inclusive a guerra fiscal. Essas distorções acabam debilitando a estrutura produtiva e reduzindo o crescimento econômico do país.

A reforma tributária tem três objetivos principais. O primeiro é criar condições para um crescimento maior. O segundo é um maior avanço no sentido de uma justiça federativa, à medida que a tributação beneficia o estado que consome as mercadorias, e não no estado que produz as mercadorias. Ela é mais justa do ponto de vista das unidades da federação e aqui, só para dar um exemplo, todo estado transfere 25% do ICMS para os municípios. Desses recursos, três quartos são divididos proporcionalmente ao valor adicionado do município, proporcionalmente à produção, e não ao consumo. Mas acontece que em todos os estados, um município pequeno, como Paulínia, onde você tem refinaria de petróleo, que recebe uma quantidade monumental de transferência. Em 2006, a cidade recebeu 8 500 reais per capita de transferência de ICMS/ano, enquanto Carapicuíba, que é uma cidade dormitório, com uma população muito maior, recebeu pouco mais de 60 reais per capita/ano. Esses exemplos mostram que a distribuição da receita tributária sobre a produção e não ao consumo acaba levando a injustiças. Logo, ao propor a transição no estado produtor, de origem, para o estado consumidor, que é a tributação no destino - e um dos objetivos é acabar com a guerra fiscal - a reforma tributária também contribui para uma maior justiça federativa. E finalmente, tem o objetivo que é aumentar a justiça social.

Isso aconteceria em dois momentos na redefinição das alíquotas federais: o primeiro é a redefinição do Imposto sobre Valor Agregado, o IVA federal, na tributação e no consumo no âmbito federal. A idéia era nesse momento avançar na divulgação da cesta básica. Esse é o mesmo processo na hora de redefinir as alíquotas do ICMS quando da unificação do imposto. Retomando, a reforma tributária tem três objetivos: eliminar distorções que prejudicam o crescimento da economia, e aqui estamos falando de distorções importantes, em passado um período de transição, que pode ser entre dez e vinte anos, em que se poderia ter um PIB de 15% a 20% maior. O segundo objetivo é avançar no sentido de uma maior justiça federativa e o terceiro, no sentido de uma maior justiça social. Agora, esses benefícios são benefícios difusos. E as resistências são localizadas. (Continua)


EXAME - Quem é contra a reforma?
Appy - As principais resistências vêm dos estados que não querem perder a possibilidade de usarem incentivos fiscais como forma de atração de investimentos. São os estados da região centro-oeste, o estado do Espírito Santo, que tem hoje um incentivo portuário às importações, através do porto de Vitória, e o estado de São Paulo. No caso de São Paulo a resistência é mais centrada no relatório do deputado Sandro Mabel [relator do projeto de lei na Câmara], que estabelece um período de transição menor e uma maior garantia aos incentivos fiscais que foram concedidos no passado. Eventualmente, há também resistências de São Paulo de caráter político. Existe ainda certa resistência à reforma que vem da área de seguridade social - é uma resistência pouco justificada, mas forte, que tem os parlamentares dessa área, em função da proposta de reforma tributária, que propõe o fim das contribuições sociais e o financiamento da seguridade social através de uma porcentagem de uma base ampla de tributos. O objetivo é simplificar o sistema e isso não acarretaria perdas para a seguridade social.

EXAME - Mas se o senhor estivesse começando a trabalhar no projeto da reforma tributária, o que faria de forma diferente?
Appy - No processo da reforma, ao longo de 2007 fizemos uma série de reuniões e o governo tinha um projeto que era o ideal. Ele previa uma única legislação tanto para o IVA federal quanto para o IVA estadual, com alíquotas diferenciadas, mas num único sistema. O projeto propunha também a unificação do ISS dentro do IVA estadual. Mas em função das reuniões que tivemos em 2007, o governo acabou fugindo um pouco do ideal para ter um projeto mais realista, que minimizasse as resistências. Mas o que eu percebi no Congresso é que as resistências aparecem mesmo quando você manda um projeto que assimilava as sugestões que recebemos. Ou seja, as resistências continuaram aparecendo no Congresso, independentemente do processo, e ao mesmo tempo você começa a sofrer críticas que vêm da área empresarial dizendo que o projeto poderia ser mais ousado. Na verdade, ele foi um pouco menos ousado justamente para reduzir as resistências. Logo, a lição que eu aprendi é que esses ajustes que fizemos antes poderiam ter sido feitos no Congresso e mandar um projeto mais próximo do ideal.

A segunda coisa é uma crítica que eu faço às entidades empresariais de classe, que têm interesse na área, como o setor industrial, e à própria imprensa. Eu acho que o projeto não recebeu o apoio que deveria ter recebido da imprensa. Esse apoio teria ajudado a criar uma força, um ambiente político, uma pressão social pela reforma tributária que não ocorreu. Em parte isso é responsabilidade nossa, nós teríamos que ter construído isso melhor e em parte é uma postura da imprensa, que sempre procura o contraditório e não procura ressaltar de fato a importância e os benefícios que existem no projeto. Do ponto de vista das entidades, que tem interesse e apoiam o projeto, eles sempre dizem que poderia ser melhor, e de fato poderia. Faltou da parte delas um apoio mais explícito. A reforma tributária ideal não existe - ela só existe na cabeça das pessoas. Como você tem que acomodar os interesses dos empresários, dos estados, da federação, dos trabalhadores, tudo isso leva a que você faça um projeto factível, e isso foge do ideal.

EXAME - O que vai acontecer se a reforma não sair, como tudo indica que vai acontecer?
Appy -
Esta seria uma opção por um menor crescimento econômico. Nossos modelos indicam uma diferença de crescimento de 12% no PIB de longo prazo do país - entre dez a quinze anos. Mas não é possível quantificar todos os benefícios que a reforma traria, com o fim da guerra fiscal. Logo, o país poderia crescer de 0,5% a 1% a mais numa janela de até vinte anos. E esse crescimento se daria de forma sustentável, sem gerar desequilíbrios macroeconômicos, como inflação ou desequilíbrios nas contas externas. (Continua)


EXAME - Quais são os principais prejuízos causados pela guerra fiscal?
Appy - Ela reduz de forma desordenada a carga tributária. Ela é casuística, porque é feita caso a caso - e tem uma série de conseqüências negativas. A primeira é que leva a uma organização ineficiente da estrutura produtiva. Temos hoje estados pobres, dando incentivos para atrair empresas que normalmente estariam num estado rico. E temos estados ricos dando incentivos para empresas que deveriam estar se instalando em estados pobres. São Paulo, por exemplo, dá incentivo para frigorífico que deveria estar em Mato Grosso, perto de onde está o boi. Não é só Goiás que dá incentivo para atrair indústria automobilística. Logo, as empresas estão se instalando no lugar errado e isso aumenta o custo Brasil.

O segundo efeito perverso é que a guerra fiscal incentiva a importação em detrimento da produção nacional. É o caso de incentivos portuários. Um terceiro problema é que a guerra fiscal gera uma forte insegurança jurídica para as empresas. Isso acontece para as empresas que se instalam num estado sem receber incentivo. O concorrente dela pode se instalar no estado vizinho recebendo incentivo e comprometendo a capacidade da empresa de competir no mercado. E gera também insegurança jurídica para as empresas que recebem o incentivo porque eles são ilegais. Para serem legais eles teriam que ser aprovados por todos os secretários de Fazenda do Confaz. E na verdade, tem-se as retaliações entre os estados aos incentivos concedidos pelos demais. Isso acontece com os estados que não aceitam o crédito de ICMS de produtos que receberam incentivos dos estados, e acabam tendo esses incentivos glosados ao tentar exportar para outros estados. Logo, na hora da verdade, aquele incentivo sumiu.

E tem também a insegurança jurídica causada pelo judiciário. De alguns anos para cá, o Supremo Tribunal Federal começou a tomar decisões contrárias a incentivos. E numa situação de insegurança, o investidor tem duas reações: ou ele não investe ou ele só investe com uma perspectiva de rentabilidade mais elevada. Logo, na prática, a guerra fiscal é praticada pelos estados como forma de atração de investimentos, mas o efeito agregado da guerra fiscal é diminuir o volume de investimentos do país.

EXAME - Todos os estados praticam?
Appy - Sim. Não existe estado inocente, todos os entes da federação praticam a guerra fiscal de uma forma ou de outra no país. Há formas diferentes de fazer. Há os estados que fazem caso a caso e aqueles que fazem setorialmente, mas todo mundo faz. (Continua)


EXAME - É verdade que há também casos em que as Fazendas estaduais praticam conluio com as empresas que produzem notas frias, em que declaram pagar 12% de ICMS, mas na verdade o estado só arrecada 2% desse tributo?
Appy - Esse é um mecanismo típico de guerra fiscal. Existem estados que promovem a guerra de forma mais transparente e os que fazem de forma menos transparente, como você citou. Em todos os estados existe algum tipo de legislação guarda-chuva que permite conceder incentivos. Em alguns casos, eles são concedidos de forma transparente, com decretos e, em outros, são contratos de gaveta entre o estado e a empresa. O mais comum é o incentivo de natureza financeira, em que o pagamento do ICMS é financiado por um prazo muito longo, por vinte anos e sem juros. Tudo isso acaba gerando processos judiciais imensos e longos, em que os compradores de produtos de outros estados, que têm o crédito do ICMS glosado, tem um enorme custo administrativo, e isso também gera mais custo Brasil.

EXAME - Como surgiu a guerra fiscal?
Appy - Como uma alternativa à não-existência de uma política de desenvolvimento regional mais efetiva. No começo, nos anos 80, ela era praticada por estados mais pobres, mas como ela se generalizou, ela hoje gera absurdos como os incentivos apenas para a mercadoria passear. São os incentivos comerciais, em que um estado, como os do Sul e Sudeste à exceção do Espírito Santo, vendem para os demais estados com uma alíquota de ICMS de 7%. Logo, o produto sai do estado que cobra 7%, vai para um estado que cobra 1% de ICMS, como Nordeste, e a mercadoria volta muitas vezes para o próprio estado de onde saiu, gerando um crédito de 12%. Logo, você tem um ganho de 4% só para a mercadoria passear. Além de ser ilegal e ineficiente, isso sobrecarrega as estradas e queima mais óleo diesel nesses passeios de caminhão. Às vezes é só a nota fiscal que passeia.

EXAME - Em função de todo esse custo, qual será o tempo necessário para que haja um consenso político para a aprovação da reforma tributária?
Appy -
É difícil prever, mas acho que estamos caminhando para uma situação em que as distorções estão se acumulando e elas são cada vez mais disfuncionais. Em algum momento isso vai ser percebido de uma forma mais incisiva do que tem sido até hoje. Vai ficar claro que a guerra fiscal tem um impacto negativo para o crescimento do país. Hoje os estados que costumam conceder mais benefícios ainda olham para o benefício como um instrumento de desenvolvimento regional.

EXAME - Na sua opinião, a reforma tributária é "a mãe de todas as reformas". Ou seja, uma vez aprovada, ela poderia facilitar a aprovação de outras reformas, como a da previdência e a trabalhista?
Appy - Acho que cada uma tem seu momento. Cada uma tem um objetivo. A necessidade do aprimoramento institucional está sempre colocada, como a questão da sustentabilidade da previdência em longo prazo e o custo de um sistema obviamente generoso com distorções. Mas eu não diria que uma reforma é mais importante do que a outra. Pode-se pensar numa grande reforma fiscal que abarcaria outras questões, como a previdenciária. O lado bom é que, com isso, se enfrentaria o problema no atacado. Mas isso teria um lado negativo que seria o aumento ainda maior das resistências contra a reforma.


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