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Como se prepara um apagão

Sem novos investimentos em centrais de grande porte no governo Lula, o setor elétrico afugenta empreendedores e já vive a ameaça de um novo racionamento em 2009

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 10h53.

A hipótese de um novo apagão pode parecer distante e catastrofista num momento em que o país festeja um crescimento estimado do Produto Interno Bruto acima de 5% em 2004 e que convive com uma oferta de eletricidade superior à demanda. Mas, a continuar nesse ritmo, a expansão da economia não tardará a esgotar os excedentes. Uma usina privada leva três a quatro anos para ficar pronta enquanto uma estatal demora de cinco a sete, e nenhuma hidrelétrica de porte, seja privada ou estatal, foi licitada ou começou a ser construída nos dois anos que já se foram do governo Lula. O resultado previsível desse cenário é que a falta de combustível para turbinar o crescimento econômico poderá levar o Brasil a perder, mais uma vez, a oportunidade de embarcar num ciclo de desenvolvimento sustentado.

A partir de 1995, com o início da privatização do setor elétrico, 55 centrais hidrelétricas foram licitadas ao longo dos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso, somando uma potência total de 12 mil megaWatts (mW). De acordo com levantamento da Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Energia Elétrica (Apine), somente 10 desses empreendimentos entraram em operação, contribuindo com 2.300 mW. Outros 19 (que somam 4.300 mW) têm obras em andamento lento, enquanto 26 projetos (que produziriam 5.400 mW) sequer saíram do papel. A maioria deles permanece enredada no cipoal das licenças ambientais e outra parte aguarda uma solução que equalize seus custos de investimento ao das usinas a serem licitadas sob as regras do novo modelo do setor elétrico, instituído em março de 2004. Estas não terão de pagar ágio pela concessão, como fizeram as primeiras.

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Mesmo o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia (Proinfa), lançado por FHC em abril de 2002 e transformado na menina dos olhos do governo Lula que o remodelou , ainda não conseguiu sair do papel, embora seja contabilizado pelo Ministério das Minas e Energia como uma das principais realizações em 2004. Só em dezembro último, foi concluída a contratação dos empreendimentos: 49 eólicos, 59 pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) e 33 de biomassa cada fonte contribuindo com a produção de 1.100 mW, que será contratada pela Eletrobrás pelo prazo de 20 anos. Com entrada em funcionamento prevista inicialmente para dezembro de 2006 e prorrogada para até 2008, as usinas do Proinfa devem somar 9,2 bilhões de reais em investimentos e contarão com financiamento do Fundo de Investimento em Participações (FIP) Brasil Energia, constituído pelo BNDES e fundos de pensão e gerido pelo Banco Pactual. O fundo dispõe de um aporte inicial de 740 milhões de reais, com meta de chegar a 1,5 bilhão. Até meados de janeiro, 27 pedidos de crédito já haviam chegado ao BNDES, mas o banco aprovara somente um desembolso, de 76,7 milhões de reais para a Amper Energia, que construirá uma pequena central hidrelétrica em Canoa Quebrada, no Mato Grosso.

Apesar da estagnação de investimentos, vai sobrar energia até 2007. Contribuíram para isso o fato de a economia brasileira não ter crescido entre 2001 e 2003 e a fartura de chuvas. No início deste mês, os níveis dos reservatórios estavam muito acima dos índices de aversão ao risco de racionamento estabelecidos pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). O perigo de desabastecimento começa em 2008. Aparentemente, o governo aposta na sorte para impedir o desastre. A ministra de Minas e Energia, Dilma Roussef, garante que o país está livre de sobressaltos na área elétrica. O lastro viria do novo modelo regulatório do setor, que, em seu entender, dá maior estabilidade às condições de investimento. Primeiro, por introduzir o planejamento do mercado as distribuidoras são obrigadas a atender 100% da demanda de sua área de concessão e têm de repassar ao ministério suas projeções de consumo para cinco anos para que seja programada a necessidade de expansão na oferta de geração e transmissão. Segundo, por instituir os contratos de longo prazo (oito anos para os das usinas em operação e 20 para aquelas a serem construídas).

Será preciso muito mais que a fé do governo, porém, para desarmar a bomba do apagão. Estudos recentes da Câmara Brasileira de Investidores em Energia Elétrica (CBIEE) indicam, para os próximos dez anos, a necessidade de investimentos médios anuais de 13 bilhões na geração de energia elétrica, para alavancar um acréscimo na oferta de 3 mil mW por ano e garantir o crescimento sustentado da economia brasileira no médio e longo prazos. Se forem somadas as demandas de investimentos em transmissão e distribuição, chega-se a 20 bilhões por ano até 2015, com três eleições presidenciais no caminho (2006, 2010 e 2014). Ao todo, serão 200 bilhões de reais em dez anos para impedir um novo apagão.

A questão é de onde vai sair essa dinheirama toda. O Estado não tem recursos e o setor privado não mostra nenhuma disposição de partir para novos empreendimentos. Ele ainda amarga nos balanços os resultados da crise cambial de 1998 e do encolhimento do mercado a partir do racionamento de 2001. Anda tão ressabiado que vem represando ao máximo os investimentos e alguns investidores já estariam ansiosos para deixar o Brasil. Especula-se no mercado sobre a possível saída das empresas americanas CMS Energy que possui redes de distribuição de eletricidade no interior de São Paulo e chegou a colocá-las à venda um ano atrás e Alliant Energy, sócia da Cataguazes Leopoldina. Também há dúvidas sobre a permanência no País da francesa Eletricité de France (EDF), dona da Light e da Eletropaulo e de uma dívida de 1,5 bilhão de dólares; da americana Duke Energy, controladora da Companhia de Geração de Energia Elétrica Paranapanema; e da espanhola Endesa, que opera a Cerj, a Coelce e a Cien. Segundo se comenta, todas essas empresas só não venderam seus ativos ainda porque não há compradores e porque os preços seriam deprimidos pela recente desvalorização do dólar. Procuradas, as empresas não comentaram o assunto.

Não faltam razões para a indisposição dos investidores privados do setor elétrico. Uma das principais é a incerteza regulatória introduzida pelo governo Lula, a partir do novo modelo do setor elétrico o terceiro desde 1995 e do projeto de lei que retira autonomia das agências reguladoras. "Com instabilidade regulatória, como é que alguém pode investir em infra-estrutura se só amortizará o capital em 20 ou 30 anos?", questiona Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O modelo elétrico está baseado em três pilares: a centralização de poder no Ministério de Minas e Energia, o que politiza as decisões; a retirada da autonomia da agência reguladora do setor (a Aneel), que perdeu o poder concedente; e a modicidade tarifária antes, ganhava a concessão quem pagasse mais pelo Uso do Bem Público, um parâmetro responsável por ágios de até 3.000% em algumas concessões; agora, leva quem oferecer a menor tarifa. Só que a energia elétrica tem custo crescente em todo o mundo porque as restrições ambientais vêm aumentando, as novas hidrelétricas ficam cada vez mais longe dos centros consumidores elevando as despesas com transmissão, o gás usado nas usinas térmicas é caro, e a energia nuclear, também. A equação custo em alta e remuneração em baixa logicamente desanima investidores.

Para poder baixar tarifas no curto prazo, o governo inventou os conceitos de energia velha (aquela que excedia o consumo antes da instituição do novo modelo) e de energia nova, a das usinas que ainda vão ser construídas. Daí, promoveu em dezembro um gigantesco leilão de energia velha para suprir a demanda até 2007, período em que haverá excesso de oferta. Os preços, claro, despencaram. Na média, ficaram em 57,51 reais por megaWatt/hora (mWh) para entrega da energia em 2005, 67,33 reais para 2006 e 75,46 reais em 2007. São níveis capazes de sustentar o fluxo de caixa das geradoras, mas muito abaixo da tarifa média necessária para garantir rentabilidade adequada e bancar novos investimentos. Chamada de custo marginal de expansão, essa tarifa é estimada atualmente em cerca de 100 reais por mWh. Diante dos preços oferecidos no leilão, as geradoras privadas se retraíram, e as estatais acabaram respondendo por 94% das vendas. "O governo preferiu praticar populismo tarifário em vez de preservar a saúde financeira das estatais. Sem remunerar adequadamente os investimentos velhos, é impossível incentivar os novos", afirma Pires. Com um volume de energia contratada de quase 1,2 bilhão de mW e um total de transações de R$ 74,7 bilhões, o leilão permitirá reduzir em 5% as tarifas médias cobradas dos consumidores do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, mas derrubou o valor de mercado da Eletrobrás em 5 bilhões de reais. "O patrimônio das estatais foi lesado", acusa Sales, da CBIEE.

Por trás dos resultados do pregão de dezembro, está a desigualdade de condições na competição entre empresas privadas e estatais do setor elétrico. De acordo com estimativa da CBIEE, as empresas públicas respondem por 73% da geração de energia elétrica no Brasil, caracterizando quase um monopólio. Como a busca de rentabilidade não chega a ser sua prioridade máxima e já que a modicidade tarifária é meta de governo, elas praticamente açambarcaram os negócios. "Se o tratamento fosse equânime, seria natural que a partilha das vendas no leilão ficasse próxima da repartição da geração", pondera Claudio Salles, da CBIEE.

Um sintoma do favorecimento das estatais, acrescenta ele, foi a recente prorrogação por mais 20 anos das concessões de Furnas, Chesf e Eletronorte, sem que elas precisassem desembolsar 1 centavo, enquanto os investidores privados tiveram de pagar ágio por suas concessões. Com isso, as empresas do sistema Eletrobrás podem praticar preços mais baixos do que suas concorrentes do setor privado.

Para maio, está programado um leilão de "botox", apelido da energia ainda sem compradores proveniente de usinas que entraram em operação entre janeiro de 2000 e março de 2004 e que pode ser vendida como nova ou velha. Os investidores estarão muito atentos a esses dois pregões. Somente se a tendência dos preços da energia a longo prazo melhorar e se aproximar do custo marginal de expansão é que ficarão suficientemente motivados a participar dos dois primeiros leilões de usinas efetivamente novas do governo Lula, programados para junho e dezembro.

Nos dois pregões de energia nova deste ano, serão licitados 22 projetos de hidrelétricas, com uma potência total de 4.440 mW, a serem inaugurados entre 2009 e 2010. O governo vai ter de correr. Primeiro, porque a nova legislação estabelece que as centrais só podem ir a licitação depois de obter licença ambiental prévia e, por enquanto, somente 1 dos 22 projetos (o de Baquari, em Minas Gerais) já dispõe do aval do Ibama. Depois, porque ainda há decisões críticas a tomar. De acordo com Luiz Fernando Vianna, presidente da Apine, falta definir se o índice de reajuste das tarifas será o IGP-M ou o IPCA, se a licitação será feita pelo critério de quantidade ou pelo de disponibilidade de energia ou seja, se o governo contratará toda a produção da usina ou pagará somente pela energia produzida quando a central for chamada a operar e até quem vai financiar os investimentos. A própria ministra de Minas e Energia tem colocado a questão do financiamento como prioridade. Segundo sua contabilidade, o país precisa de 3 mil mW adicionais por ano, que exigem investimentos de 6 a 7 bilhões de dólares nos próximos anos. Ninguém pode imaginar que os investidores tenham esse dinheiro em caixa, admite Dilma. Ela tem esperanças também no potencial das Parcerias Público Privadas ainda que os empreendedores privados considerem o instrumento das PPPs praticamente inviável no setor elétrico, em função do elevado quilate dos investimentos e quer atrair o BNDES, os fundos de pensão e instituições de fomento internacionais para a montagem de um fundo de investimentos no setor elétrico semelhante ao que foi constituído para financiar o Proinfa. Nas contas de Carlos Martins, analista de investimentos do banco Brascan, o BNDES não conseguirá cobrir toda a necessidade de financiamento e os bancos privados não têm nada para oferecer diretamente ao setor elétrico. "O governo criou um ambiente negativo. As tarifas para a energia nova provavelmente serão baixas, comprometendo a atratividade dos empreendimentos", diz ele.

Adriano Pires, do CBIE, desconfia que, se o governo não abrir mão da tal modicidade tarifária, nenhum investidor privado comparecerá aos leilões de novas usinas. Talvez nem seja preciso. "A quantidade de energia a ser licitada é pequena e as estatais aparecerão com um apetite feroz", prevê Claudio Sales, da CBIEE. As empresas públicas, acrescenta ele, já vêm demonstrando sua voracidade nos leilões de novas linhas de transmissão com preços que não cobrem o custo. Por ironia, os sete apagões já registrados este ano ocorreram todos em subestações de transmissão de estatais. "Alega-se falha humana e técnica ou queda de raios, coisas que poderiam ser prevenidas com investimentos na renovação de equipamentos, na duplicação de circuitos e na automação. Em vez de fazer isso, elas preferem investir em novas linhas com rentabilidade negativa", argumenta o presidente da câmara de investidores. Até 2007, conforme estimativas do ONS, poderá haver 125 interrupções no abastecimento de energia. Em 2003, foram menos de 15.

Apesar da fome das estatais, os investimentos privados continuarão imprescindíveis para a saúde do setor elétrico, observa Salles. E o empreendedor privado sempre tem a prerrogativa de investir onde o ambiente for mais atraente. Hoje, no Brasil, ele é afugentado até pela conta salgada dos impostos e encargos que oneram o setor elétrico. Segundo cálculos da Aneel, 51% da tarifa paga pelo consumidor são tributos, tornando o Brasil campeão mundial nessa modalidade de taxação. Da receita do setor, estimada em 80 bilhões de reais em 2004, as empresas ficaram com menos da metade. "Isso não dá para bancar a geração, transmissão e distribuição de energia. O retorno do negócio está muito aquém do esperado", explica o presidente da CBIEE.

A falta de soluções a curto prazo para questões estruturais como essa ameaça o êxito das próximas licitações de centrais elétricas. "E se os leilões de energia nova não forem bem-sucedidos, o risco de apagão em 2009 aumentará substancialmente", alerta Evandro Coura, presidente da Associação Brasileira de Concessionárias de Energia Elétrica (ABCE). É verdade que o governo tem alternativas para suprir um eventual déficit, como a alavancagem dos investimentos da Eletrobrás e a ociosidade das usinas térmicas construídas a partir do Programa Prioritário de Termeletricidade, lançado em fevereiro de 2000. Segundo o especialista Adriano Pires, Brasília mostra que quer ter cartas para jogar num eventual racionamento com a autorização para a conclusão de Angra 3 e a aquisição pela Petrobras das participações de seus sócios em diversas térmicas. Resta saber de onde virá o bilhão de dólares necessário para as obras da central nuclear e se haverá gás e gasodutos para abastecer todas as térmicas.

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