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Procura-se liderança global em vacinas

O plano de vacinação global está muito "danificado" e parece que ninguém quer consertá-lo, apesar das consequências desastrosas para vidas e economia

Vacina: adotar um caminho melhor no combate à pandemia exigirá uma liderança global forte (MARTIN BERNETTI/AFP)
Vacina: adotar um caminho melhor no combate à pandemia exigirá uma liderança global forte (MARTIN BERNETTI/AFP)
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Visão Global

Publicado em 1 de maio de 2021 às, 13h07.

CAMBRIDGE – Se não estiver quebrado, não conserte, diz o velho ditado. Mas o plano de vacinação do mundo está muito "danificado" e parece que ninguém quer consertá-lo, apesar das consequências desastrosas para vidas, meios de subsistência e economia global.

Este deveria ser o ano da recuperação. Mas, do ponto de vista epidemiológico, parece ser pior do que 2020, e a dinâmica atual sugere que 2022 não será melhor.

Não precisa ser assim. Mas adotar um caminho melhor exigirá uma liderança global forte que, pela primeira vez, foge do pensamento positivo.

Vejamos os fatos. Os casos diários confirmados de COVID-19 e as mortes estão em mais de 800.000 e 12.000, respectivamente. E estão caminhando para superar os picos alcançados em janeiro de 2021. A Índia não está apenas nas garras de uma devastadora onda de vírus; outros países que foram poupados até agora, incluindo Ásia e África, também devem enfrentar surtos graves.

O mundo tem várias vacinas eficazes disponíveis. Mas não está se mexendo rápido o suficiente para administrá-las: cerca de 18 milhões de doses estão sendo administradas diariamente, menos do que os 18,6 milhões de duas semanas atrás. Como a maioria das vacinas deve ser administrada em duas doses, isso significa que levará dois anos para vacinar 80% da população mundial.

Esses dois anos provavelmente não serão agradáveis. A campanha de vacinação altamente bem-sucedida de Israel trouxe um dramático declínio nos casos e mortes, permitindo que a economia se reabrisse quase completamente. Mas outros vacinadores especiais — como Estados Unidos, Reino Unido, Emirados Árabes Unidos, Chile, Uruguai, Hungria e Sérvia — ainda precisam ver efeitos semelhantes.

No Reino Unido, os casos diminuíram significativamente, mas isso se deveu principalmente a um bloqueio rígido e caro. O Chile também passou por um bloqueio difícil, mas seus níveis de infecção ainda não caíram significativamente. Novos casos nos EUA e nos Emirados Árabes Unidos permanecem persistentemente altos.

Isso pode ser explicado pela matemática do contágio. Os casos diminuem quando a taxa de reprodução (R) – o número de pessoas para as quais cada pessoa infectada transmite – cai para menos de um. Assumindo-se (otimisticamente) que nem os vacinados nem os recuperados disseminem o coronavírus, a parcela remanescente da população deve ser menor que a taxa de reprodução do vírus (RO), que, sem distanciamento social, gira em torno de quatro.

Em outras palavras, a menos que pelo menos 75% da população esteja imune, R excederá 1 e os casos continuarão a aumentar exponencialmente. Manter as regras de distanciamento social continuará sendo, portanto, essencial para limitar a transmissão. Mas os bloqueios são caros, e recentes pesquisas sugerem que eles estão se tornando menos eficazes, devido à "fadiga do bloqueio".

Mesmo depois de 75% do mundo estar vacinado, no entanto, não teremos terminado a tarefa. De acordo com o CEO da Pfizer, Albert Bourla, é provável que uma terceira dose de “reforço” da vacina seja necessária dentro de um ano, a fim de garantir a imunidade contínua em meio a novas variantes do vírus. Simplificando, deveríamos planejar a vacinação de todo o mundo anualmente e certamente estamos no caminho para levar o dobro do tempo. Essa é uma receita para um vírus endêmico.

E, no entanto, dificilmente estamos diante de uma situação impossível. Ao contrário, a economia da solução é direta e surpreendentemente incontroversa, pelo menos entre os economistas.

O desenvolvimento de uma nova vacina — incluindo a comprovação de sua segurança e eficácia — acarreta um enorme custo fixo. A fabricação de cópias dessa vacina implica um custo variável muito menor. Do jeito que está, uma empresa que desenvolve uma nova vacina (um “desenvolvedor”) recupera seus custos fixos com a venda de suas doses. Também evita que outras pessoas fabriquem sua vacina ao patentear sua invenção. O resultado são preços altos e oferta restrita — a última coisa de que precisamos durante uma pandemia.

Uma solução muito melhor seria os desenvolvedores receberem um pagamento único em troca da propriedade intelectual. Qualquer empresa capaz poderia então fabricar a vacina sob licença livre, aumentando a oferta e reduzindo os preços.

Como a vacinação de uns beneficia outros (no discurso dos economistas, tem “externalidades positivas”), justifica-se subsidiar – até doar – doses. Alguém — sejam os EUA, a União Europeia ou um consórcio de países ricos – deveria a quantia remuneratória aos desenvolvedores. O custo de fabricação das doses não deveria ser um obstáculo, exceto para os países mais pobres. Na verdade, os custos para o mundo são insignificantes, especialmente em comparação com os benefícios que os países ricos colheriam de uma bem-sucedida campanha de vacinação global.

Esta solução não deixaria os desenvolvedores em situação ruim. Mas, ao tornar o processo de vacinação muito mais rápido e eficiente, deixaria o mundo muito melhor.

Infelizmente, esta não é a abordagem que está sendo adotada pelo COVAX,  COVID-19 Vaccine Global Access, uma louvável aliança internacional, mas modesta, comprometida em garantir amplo acesso às vacinas contra o coronavírus. Na verdade, os objetivos do COVAX são muito modestos e inadequados para aquilo que o mundo precisa, especialmente se novas vacinas se tornarem necessárias à medida que o vírus sofre mutação. Não cobre pagamentos de quantia total para desenvolvedores ou entrada gratuita na fabricação. Lida mais com a questão de organizar uma fila justa, em virtude do limitado fornecimento.

Visto que devemos nos preparar para um mundo no qual precisaremos periodicamente de novas vacinas, precisamos de empresas farmacêuticas fortes e lucrativas, capazes de levantar capital e garantir os recursos para desenvolvê-las. Isso deveria ser garantido por meio da realização de concursos ou ofertas públicas de aquisição da propriedade intelectual dessas vacinas e talvez até mesmo da assistência técnica para garantir a produção dentro dos adequados padrões de qualidade. As empresas competiriam nesses concursos, que seriam organizados com o máximo de informações sobre a genética das variantes emergentes do vírus, algo que requer um esforço global de vigilância.

Mas o mundo também precisa aumentar a capacidade de produção para apoiar a vacinação em dobro da taxa atual. Além disso, por conta da experiência recente com países que acumulam vacinas e proíbem as exportações, é fundamental permitir a entrada gratuita na fabricação de vacinas, para que os países possam garantir o acesso à vacina aumentando sua própria capacidade de produção.

O mundo precisa de mais vacinas contra o COVID-19. Mas, primeiro, é necessária a liderança política global que dará os passos simples, mas necessários, para assegurá-las.

Ricardo Hausmann, ex-Ministro de Planejamento da Venezuela e ex-Economista-Chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento, é Professor da Escola de Governo John F. Kennedy de Harvard e Diretor do Laboratório de Crescimento de Harvard.

Direitos Autorais: Project Syndicate, 2021. www.project-syndicate.org