A origem da economia compartilhada? A favela e a periferia
Por que as duas estão cada vez mais afinadas com a vanguarda do pensamento social e econômico
Daniel Salles
Publicado em 6 de setembro de 2020 às 07h11.
“Passei a perceber a favela não mais como problema social, mas como um tipo de produção de localidade que possui um ‘enraizamento’ sociocultural próprio”
Antes da pesquisa de campo para o doutoramento, eu era uma estudante de Antropologia convencida de que o problema da favela se resolvia plenamente no âmbito dos estudos urbanos, das teorias antropológicas voltadas para as sociedades complexas, geralmente vinculadas à questão da pobreza em contextos de desigualdade. Eram aglomerados que, apesar de complexos e urbanizados, sofriam com os estigmas relacionados às falhas do “desenvolvimento e progresso”.
Sem desmerecer esta abordagem e todos os frutos que ela produziu no âmbito dos estudos urbanos recentes, não pude deixar de observar, como “moradora de favela” – sim, eu fui morar lá – que a exclusividade desta perspectiva obscurecia aspectos que diziam respeito à riqueza e à singularidade positiva das relações sociais que ali ocorrem.
Em dado momento, pareceu-me que a favela ou periferia (como se diz em São Paulo) não poderia ser explicada somente a partir da pobreza, da falta, da carência e da precarização – neste ponto, discordo da categoria “sobrevivência” por ser um termo carregado de implicações sociológicas de carência – ou, então, pelo viés da ilegalidade e da informalidade.
Ao contrário, sob vários aspectos que pude constatar, a favela apresenta expressões sociais que, apesar de informais ou ainda não legitimadas pelas instituições estatais, estão cada vez mais afinadas com a vanguarda do pensamento social e econômico contemporâneo.
Ou seja, de muitas maneiras, sem mesmo ter consciência do seu estilo de vida calcado nas “sustentabilidades” – social, econômica, ambiental etc – os moradores das favelas já ultrapassaram e superaram dilemas da própria sociedade. Esta, por sua vez, continua a compreendê-la como um “problema social”, anunciando soluções locais para dificuldades da vida em comum em termos econômicos e de governança – mesmo quando os próprios moradores não possuem esta consciência –, em contextos metropolitanos cada vez mais populosos, que se afastam do modelo ocidental europeu da cidade moderna do início do século XX.
Assim, em determinado momento, passei a perceber a favela não mais como “problema social”, mas como um tipo de produção de localidade que possui um “enraizamento” sociocultural próprio. Não são, portanto, espaços e populações que precisam ser beneficiadas por regimes de ordenamento ou mesmo “pacificadas”, “civilizadas”, mas, antes de tudo, compreendidas em suas capacidades transformadoras e regeneradoras do próprio tecido social urbano em contextos metropolitanos de países como o Brasil, China, Índia e, sobretudo, países africanos.
Essa mudança de perspectiva não ocorreu naturalmente, mas resultou de um regime de proximidade “situado”, isto é, fundado na hospitalidade e no meu acolhimento como “moradora da favela” em diferentes ocasiões nas quais me “submeti” aos códigos locais. Percebi, ao longo do trabalho de campo, que os conflitos estão sempre presentes, na maior parte das vezes resolvidos ali mesmo, com o apoio de lideranças locais, oficiais (Associação de Moradores) ou não.
O que aprendi é que entre ambiguidades e conflitos, a vida na favela segue. As pessoas vão encontrando meios para torná-la viável a partir de uma organização social própria, concebida com base em lógicas e valores próprios que, na maioria das vezes, se opõem às perspectivas e anseios “oficiais” propostos pelo Estado – pautadas em uma linguagem ética. Existe um tipo de mercado local – podemos chamá-lo de “criativo”, “alternativo” ou “colaborativo”.
Convido o leitor a apostar nas incertezas e descortinar certos estereótipos.
As “economias de compartilhamento”, no entanto, revelam mais do que técnicas e arranjos para suprir necessidades. Elas expõem os fios que formam a malha social da favela, com seus valores morais, suas dificuldades e também suas histórias de superação. Elas existem porque se constituíram como um valor importante dessas populações, tornaram-se uma lógica não apenas alternativa ineficiência do Estado, mas, talvez, uma lógica alternativa contra a lógica estatal.
Nem tudo que parecer ser é.
Nem tudo que é parece ser.
Procure ver de perto e de dentro, busque traduções reais, vivências genuínas e aprenda a comunicar com a maior parte da população, usando a autenticidade como mote principal da sua narrativa. Vai lá e testa, depois você me conta. Fica o convite.
Hilaine Yaccoub é doutora em Antropologia do Consumo. Atua como palestrante e consultora, realizando estudos que promovem ligação entre o mercado consumidor, o conhecimento acadêmico e as empresas. Para seguir nas redes sociais: @hilaine
“Passei a perceber a favela não mais como problema social, mas como um tipo de produção de localidade que possui um ‘enraizamento’ sociocultural próprio”
Antes da pesquisa de campo para o doutoramento, eu era uma estudante de Antropologia convencida de que o problema da favela se resolvia plenamente no âmbito dos estudos urbanos, das teorias antropológicas voltadas para as sociedades complexas, geralmente vinculadas à questão da pobreza em contextos de desigualdade. Eram aglomerados que, apesar de complexos e urbanizados, sofriam com os estigmas relacionados às falhas do “desenvolvimento e progresso”.
Sem desmerecer esta abordagem e todos os frutos que ela produziu no âmbito dos estudos urbanos recentes, não pude deixar de observar, como “moradora de favela” – sim, eu fui morar lá – que a exclusividade desta perspectiva obscurecia aspectos que diziam respeito à riqueza e à singularidade positiva das relações sociais que ali ocorrem.
Em dado momento, pareceu-me que a favela ou periferia (como se diz em São Paulo) não poderia ser explicada somente a partir da pobreza, da falta, da carência e da precarização – neste ponto, discordo da categoria “sobrevivência” por ser um termo carregado de implicações sociológicas de carência – ou, então, pelo viés da ilegalidade e da informalidade.
Ao contrário, sob vários aspectos que pude constatar, a favela apresenta expressões sociais que, apesar de informais ou ainda não legitimadas pelas instituições estatais, estão cada vez mais afinadas com a vanguarda do pensamento social e econômico contemporâneo.
Ou seja, de muitas maneiras, sem mesmo ter consciência do seu estilo de vida calcado nas “sustentabilidades” – social, econômica, ambiental etc – os moradores das favelas já ultrapassaram e superaram dilemas da própria sociedade. Esta, por sua vez, continua a compreendê-la como um “problema social”, anunciando soluções locais para dificuldades da vida em comum em termos econômicos e de governança – mesmo quando os próprios moradores não possuem esta consciência –, em contextos metropolitanos cada vez mais populosos, que se afastam do modelo ocidental europeu da cidade moderna do início do século XX.
Assim, em determinado momento, passei a perceber a favela não mais como “problema social”, mas como um tipo de produção de localidade que possui um “enraizamento” sociocultural próprio. Não são, portanto, espaços e populações que precisam ser beneficiadas por regimes de ordenamento ou mesmo “pacificadas”, “civilizadas”, mas, antes de tudo, compreendidas em suas capacidades transformadoras e regeneradoras do próprio tecido social urbano em contextos metropolitanos de países como o Brasil, China, Índia e, sobretudo, países africanos.
Essa mudança de perspectiva não ocorreu naturalmente, mas resultou de um regime de proximidade “situado”, isto é, fundado na hospitalidade e no meu acolhimento como “moradora da favela” em diferentes ocasiões nas quais me “submeti” aos códigos locais. Percebi, ao longo do trabalho de campo, que os conflitos estão sempre presentes, na maior parte das vezes resolvidos ali mesmo, com o apoio de lideranças locais, oficiais (Associação de Moradores) ou não.
O que aprendi é que entre ambiguidades e conflitos, a vida na favela segue. As pessoas vão encontrando meios para torná-la viável a partir de uma organização social própria, concebida com base em lógicas e valores próprios que, na maioria das vezes, se opõem às perspectivas e anseios “oficiais” propostos pelo Estado – pautadas em uma linguagem ética. Existe um tipo de mercado local – podemos chamá-lo de “criativo”, “alternativo” ou “colaborativo”.
Convido o leitor a apostar nas incertezas e descortinar certos estereótipos.
As “economias de compartilhamento”, no entanto, revelam mais do que técnicas e arranjos para suprir necessidades. Elas expõem os fios que formam a malha social da favela, com seus valores morais, suas dificuldades e também suas histórias de superação. Elas existem porque se constituíram como um valor importante dessas populações, tornaram-se uma lógica não apenas alternativa ineficiência do Estado, mas, talvez, uma lógica alternativa contra a lógica estatal.
Nem tudo que parecer ser é.
Nem tudo que é parece ser.
Procure ver de perto e de dentro, busque traduções reais, vivências genuínas e aprenda a comunicar com a maior parte da população, usando a autenticidade como mote principal da sua narrativa. Vai lá e testa, depois você me conta. Fica o convite.
Hilaine Yaccoub é doutora em Antropologia do Consumo. Atua como palestrante e consultora, realizando estudos que promovem ligação entre o mercado consumidor, o conhecimento acadêmico e as empresas. Para seguir nas redes sociais: @hilaine