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Quando precisamos fazer aquilo que não queremos

Faça um exame rápido do seu passado: muitas das coisas chatas que fez em sua vida foram importantes em sua formação ou em seu sucesso

Pensamentos (Thinkstock/Thinkstock)
BG

Bibiana Guaraldi

Publicado em 26 de janeiro de 2021 às 08h51.

Ontem, estava vendo um seriado na Netflix e ouvi uma frase que ficou em minha cabeça durante o resto do dia: “Às vezes, temos que fazer aquilo que não queremos”. Pode parecer uma sentença banal a princípio, mas ela tem um poder muito forte quando nos lembramos que estamos em uma sociedade que busca nos dar, via algoritmos e inteligência artificial, tudo aquilo que desejamos sem fazer força.

Ao nos acostumarmos com a tecnologia nos dando de bandeja até aquilo que nem sabíamos que ansiávamos, a tendência natural é procurar fazer apenas aquilo que nos satisfaz ou realizar atos não nos trarão desavenças.

Dentro deste universo, ocorre um fenômeno interessante: a busca pelos semelhantes. Não basta fazer apenas o que traz satisfação, mas também ouvir apenas aquelas pessoas que pensam como você. Esta atitude nos coloca em uma zona de conforto intelectual, na qual não precisamos discutir e encontrar argumentos plausíveis para fortalecer um determinado ponto de vista.

No fundo, ao renegarmos o debate, estamos optando por sentenciar nossas mentes a um estado intelectual inerte, sem curiosidade alguma. Sem o debate, não nos reciclamos nem com o propósito de fortalecer nossas argumentações. Afinal, quando entramos em uma discussão sempre estaremos em contato com novas opiniões contrárias às nossas e precisaremos produzir respostas inéditas.

Para aceitar uma discussão, no entanto, é preciso ter uma paciência que está cada vez mais escassa nos dias de hoje. Significa também se expor aos olhos alheios, nem que seja os dos colegas de grupo da mídia social. Para certas pessoas, ter fleuma e não se importar com o que os outros pensam podem ser dois desafios hercúleos.

Há alguns anos, tínhamos um enorme contingente de pessoas insatisfeitas com as informações que vinham através da mídia. De um lado, os conservadores que hoje ficam repetindo o bordão “Globolixo”; de outro, a esquerda, que dizia ser a mídia “golpista”.

Esses insatisfeitos, que compõem espectros ideológicos muito diferentes, deixaram de ler os veículos tradicionais. E encontraram sites ou grupos de mensageria com apenas o conteúdo que desejavam. Ou seja: não gostavam da imprensa porque a consideravam tendenciosa. E acabaram consumindo informações em outras fontes, também parciais. A diferença é que a parcialidade das fontes atuais está em sintonia total com o que pensam os descontentes com a imprensa.

Temos, no meio da rede social, outro fenômeno interessante: a racionalização de uma opinião tendenciosa, formada a partir de uma posição política. É possível perceber que a rixa entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador João Doria ganhou proporções enormes e inúmeros adeptos dos dois lados. Para quem apoia o presidente, percebe-se claramente uma má vontade com a CoronaVac e uma grande complacência com a cloroquina e a ivermectina. Entre os seguidores de Doria, há uma ojeriza total em relação às substâncias que fariam um eventual tratamento profilático (algo descartado pela Anvisa) e uma defesa sem limites da vacina produzida pelo Instituto Butantan.

Dentro desses dois grupos, recentemente, vem se buscando fundamentar as opiniões sobre qual o melhor tratamento sobre o coronavírus. Ou seja, a posição política é camuflada por uma miríade de estudos e argumentos técnicos (obviamente, existem aqueles que não são partidários de nenhum dos dois lados e têm suas opiniões estritamente racionais sobre as alternativas de tratamento ou prevenção da Covid-19). Temos, assim, algumas pessoas racionalizando opiniões que nascem enviesadas.

Ficar somente no ambiente das opiniões iguais pode ser confortável. Mas, no longo prazo, é uma escolha que não exercita o cérebro e provoca preguiça intelectual. Mas estamos onde estamos, hoje, porque fizemos coisas a contragosto no passado. Estudamos quando queríamos brincar. Fizemos exercício físico quando a vontade era de ficarmos descansando. Ou começamos uma dieta apesar do desejo de nos atracarmos com um sundae tamanho família.

Faça um exame rápido do seu passado. Você verá o inevitável: muitas das coisas chatas que fez em sua vida foram importantes em sua formação ou em seu sucesso.

Viver de forma hedonista o tempo todo reduz a percepção do prazer. Ouvir apenas aquilo que parece ter saído de sua própria mente é igual: parece ser maravilhoso no início, mas termina sendo algo maçante. Ao termos a disciplina de escutar aquilo que nos desagrada, estamos prestando um grande favor à massa cinzenta: exercitá-la o tempo todo. Com isso, evitamos o emburrecimento e ganhamos em empatia, compreensão e tolerância. Fazendo aquilo que não queremos.

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Ontem, estava vendo um seriado na Netflix e ouvi uma frase que ficou em minha cabeça durante o resto do dia: “Às vezes, temos que fazer aquilo que não queremos”. Pode parecer uma sentença banal a princípio, mas ela tem um poder muito forte quando nos lembramos que estamos em uma sociedade que busca nos dar, via algoritmos e inteligência artificial, tudo aquilo que desejamos sem fazer força.

Ao nos acostumarmos com a tecnologia nos dando de bandeja até aquilo que nem sabíamos que ansiávamos, a tendência natural é procurar fazer apenas aquilo que nos satisfaz ou realizar atos não nos trarão desavenças.

Dentro deste universo, ocorre um fenômeno interessante: a busca pelos semelhantes. Não basta fazer apenas o que traz satisfação, mas também ouvir apenas aquelas pessoas que pensam como você. Esta atitude nos coloca em uma zona de conforto intelectual, na qual não precisamos discutir e encontrar argumentos plausíveis para fortalecer um determinado ponto de vista.

No fundo, ao renegarmos o debate, estamos optando por sentenciar nossas mentes a um estado intelectual inerte, sem curiosidade alguma. Sem o debate, não nos reciclamos nem com o propósito de fortalecer nossas argumentações. Afinal, quando entramos em uma discussão sempre estaremos em contato com novas opiniões contrárias às nossas e precisaremos produzir respostas inéditas.

Para aceitar uma discussão, no entanto, é preciso ter uma paciência que está cada vez mais escassa nos dias de hoje. Significa também se expor aos olhos alheios, nem que seja os dos colegas de grupo da mídia social. Para certas pessoas, ter fleuma e não se importar com o que os outros pensam podem ser dois desafios hercúleos.

Há alguns anos, tínhamos um enorme contingente de pessoas insatisfeitas com as informações que vinham através da mídia. De um lado, os conservadores que hoje ficam repetindo o bordão “Globolixo”; de outro, a esquerda, que dizia ser a mídia “golpista”.

Esses insatisfeitos, que compõem espectros ideológicos muito diferentes, deixaram de ler os veículos tradicionais. E encontraram sites ou grupos de mensageria com apenas o conteúdo que desejavam. Ou seja: não gostavam da imprensa porque a consideravam tendenciosa. E acabaram consumindo informações em outras fontes, também parciais. A diferença é que a parcialidade das fontes atuais está em sintonia total com o que pensam os descontentes com a imprensa.

Temos, no meio da rede social, outro fenômeno interessante: a racionalização de uma opinião tendenciosa, formada a partir de uma posição política. É possível perceber que a rixa entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador João Doria ganhou proporções enormes e inúmeros adeptos dos dois lados. Para quem apoia o presidente, percebe-se claramente uma má vontade com a CoronaVac e uma grande complacência com a cloroquina e a ivermectina. Entre os seguidores de Doria, há uma ojeriza total em relação às substâncias que fariam um eventual tratamento profilático (algo descartado pela Anvisa) e uma defesa sem limites da vacina produzida pelo Instituto Butantan.

Dentro desses dois grupos, recentemente, vem se buscando fundamentar as opiniões sobre qual o melhor tratamento sobre o coronavírus. Ou seja, a posição política é camuflada por uma miríade de estudos e argumentos técnicos (obviamente, existem aqueles que não são partidários de nenhum dos dois lados e têm suas opiniões estritamente racionais sobre as alternativas de tratamento ou prevenção da Covid-19). Temos, assim, algumas pessoas racionalizando opiniões que nascem enviesadas.

Ficar somente no ambiente das opiniões iguais pode ser confortável. Mas, no longo prazo, é uma escolha que não exercita o cérebro e provoca preguiça intelectual. Mas estamos onde estamos, hoje, porque fizemos coisas a contragosto no passado. Estudamos quando queríamos brincar. Fizemos exercício físico quando a vontade era de ficarmos descansando. Ou começamos uma dieta apesar do desejo de nos atracarmos com um sundae tamanho família.

Faça um exame rápido do seu passado. Você verá o inevitável: muitas das coisas chatas que fez em sua vida foram importantes em sua formação ou em seu sucesso.

Viver de forma hedonista o tempo todo reduz a percepção do prazer. Ouvir apenas aquilo que parece ter saído de sua própria mente é igual: parece ser maravilhoso no início, mas termina sendo algo maçante. Ao termos a disciplina de escutar aquilo que nos desagrada, estamos prestando um grande favor à massa cinzenta: exercitá-la o tempo todo. Com isso, evitamos o emburrecimento e ganhamos em empatia, compreensão e tolerância. Fazendo aquilo que não queremos.

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