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Para que serve um debate político?

Ninguém vota ou elege ideias; votamos em pessoas. O debate tem que ter outra finalidade: nos dar alguma noção das pessoas que estão na disputa

Modelo americano funcionava bem quando havia alguma expectativa de decoro e respeito mínimos nos candidatos. (Morry Gash/Reuters)
Modelo americano funcionava bem quando havia alguma expectativa de decoro e respeito mínimos nos candidatos. (Morry Gash/Reuters)
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Joel Pinheiro da Fonseca

Publicado em 3 de outubro de 2020 às, 11h41.

Numa mesma semana, tivemos duas experiências opostas do mesmo tipo de evento: o debate político. Um, dos candidatos à presidência dos EUA; o outro, dos candidatos a prefeito em diversas cidades brasileiras. Assisti o de São Paulo, mas outros não fugiram à regra.

O debate brasileiro é marcado pelo apego ao cumprimento estrito das regras da Justiça Eleitoral. Isso vai desde a seleção dos participantes (em São Paulo, foram onze participantes; mesmo número do Rio), pautada em regras isonômicas judicializadas e que incluem a maioria dos candidatos, até vários sem nenhuma expressão eleitoral. A formatação do debate em si é previamente concordada e absolutamente engessada: os tempos de pergunta, resposta, réplica, tréplica e comentário de cada um são cronometrados e cumpridos à risca. Quando um candidato fala, os microfones dos demais estão desligados, de modo que é impossível fazer qualquer tipo de interrupção, interjeição ou resposta espontânea.

 

Qual o resultado do debate brasileiro para o espectador? Uma experiência completamente maçante e que em nada nos informa. A quantidade de candidatos garante que o tempo de cada um será irrisório: e o formato engessado impede qualquer conversa e qualquer mostra da personalidade deles em alguma interação espontânea. O que temos são micro-discursos de cada um, todos ensaiadinhos. Se o objetivo do debate é informar a população, esse formato falha: ele até permite identificar alguns picaretas muito evidentes, mas no geral somos apresentados a um boneco de papelão feito sob demanda para consumo de seu público-alvo. É difícil resistir acordado até o fim.

O debate americano se guia por critérios opostos. Estão presentes apenas os dois candidatos que importam na disputa (embora existam candidaturas minoritárias, inexpressivas, concorrendo também). As regras foram desenhadas para promover uma divisão justa do espaço, mas não uma igualdade formal estrita. Ao moderador cabe garantir que os tempos de cada um sejam aproximadamente iguais e lançar perguntas para ambos. Os microfones de ambos ficam ligados o tempo todo, de modo que interrupções, interjeições e respostas espontâneas são não apenas possíveis como em alguma medida bem-vindas. O objetivo do debate não é servir apenas de palanque para o discurso ensaiado de cada um, mas mostrar ao público como ambos se comportam num contexto de embate direto, tendo que se colocar com força e improvisar em alguma medida.

Qual o resultado do debate americano para o espectador? Foi um verdadeiro circo vexaminoso, em que a conduta vergonhosa de Donald Trump, interrompendo, acusando e mentindo o tempo todo tornou inviável qualquer discussão. Vimos um candidato, Joe Biden, tentando trazer algum conteúdo para a discussão, mas incapaz de competir com os assédios constantes de Trump, que não pouparam nem sequer seus filhos. Mesmo o moderador, talvez por fraqueza pessoal (não deve ser fácil dar uma reprimenda pública no Presidente da República), talvez por falta de instrumentos, foi incapaz de controlar a conduta histriônica do Presidente, que o interrompia e antagonizava sem freios.

O objetivo do debate é duplo: um deles, que é o geralmente levantado, é dar aos candidatos a chance de comunicarem suas propostas e discuti-las com os demais. Mas ninguém vota ou elege ideias; votamos em pessoas. Portanto, o debate tem que ter outra finalidade também: nos dar alguma noção das pessoas que estão na disputa, e como elas interagem e improvisam sob pressão. O modelo americano, a princípio, é mais propício a essa finalidade.

 

Só que, justamente por dar mais liberdade aos envolvidos, ele depende em maior grau da disposição ética dos participantes. Alguém que chegue de má fé, como Trump fez, pode inviabilizar a discussão de uma maneira que seria impossível no estilo de debate brasileiro. A figura do moderador ganha mais peso também. No Brasil, ele basicamente comunica as regras e marca as etapas do debate. Nos EUA, ele precisa intervir e não raro discutir e até provocar os candidatos.

O modelo americano funcionava bem quando havia alguma expectativa de decoro e respeito mínimos nos candidatos. Hoje, ela não existe mais. A conduta antes tida por vergonhosa pode até ser premiada. Sendo assim, e para não cair na chatice das regrinhas brasileiras, a saída é dar ao moderador americano a ferramenta para fazer valer sua vontade, mesmo contra a intransigência de um candidato mal intencionado. Ele precisa do botãozinho que o moderador brasileiro já tem: silenciar os microfones. Onde não há um mínimo ética, o peso frio da lei e da autoridade é nossa última linha de proteção contra a barbárie.