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Quem somos nós, quando ninguém está olhando?

Pergunta fica na memória como um critério para avaliarmos a adequação (ou não) das nossas decisões

"Quisera a noção da transparência nos convide a sermos a melhor versão de nós mesmos" (Voyagerix/Thinkstock)
MF

Marina Filippe

Publicado em 24 de janeiro de 2021 às 12h34.

Uma pergunta clássica permeia quase todos os treinamentos de compliance nas empresas. Ela fica na memória como um critério para avaliarmos a adequação (ou não) das nossas decisões: se o que você está fazendo se tornasse trending topic nas mídias sociais, você ainda tomaria a mesma decisão? Faria as mesmas coisas? Diria as mesmas palavras?

Esta é uma reflexão incisiva pois sinaliza a transição de uma conduta pautada pela consciência, para uma conduta pautada pela honra, ou seu oposto, a vergonha. É como se ela nos conduzisse da dimensão da consciência moral (a voz interna que nos ajuda a discernir entre o certo e o errado) à dimensão da honra (a voz da sociedade). Se a consciência internaliza a noção de justiça, a visibilidade , com sua perspectiva de honra ou ameaça de vergonha, agrega ao algoritmo moral a voz do julgamento público.

A primeira dimensão revela o que somos de verdade, quando ninguém está olhando. A segunda, nos lembra que as fronteiras entre o privado e o público estão ao alcance de um post.

Um episódio, longe de raro, mas ainda assim emblemático, ilustrou esta questão nas últimas semanas. Em 17 de dezembro o Papo de Mãe, um canal sobre vida em família, trouxe à luz um julgamento na Vara de Família, conduzido pelo Juiz Rodrigo de Azevedo Costa.

Na audiência, ao ser questionado sobre o fato de uma das partes ser vítima do ex-companheiro em inquérito que apura violência doméstica, o juiz afirma: “Se tem lei Maria da Penha contra a mãe(sic) eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”.

Esta afirmação, entre outras indignidades proferidas pelo mesmo Juiz, gerou indignação em diversas plataformas sociais e reações por parte da Comissão da Mulher Advogada da OAB, da própria Maria da Penha e da Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Para quem acompanha a trajetória das mulheres vítimas de violência, o único aspecto deste episódio que o torna uma novidade é o fato de a audiência ter sido filmada e publicada.

Condutas graves como esta são recorrentes em tribunais de norte a sul deste país, reproduzindo a prática da revitimização que faz com que as mulheres coloquem em dúvida a eficácia do Sistema de Justiça, o que compromete o seu efeito emancipador.

Na semana passada, a última edição da tradicional pesquisa Trust Barometer publicada pela Edelman, revela a erosão da confiança em todo o mundo. O contexto que vivemos é caracterizado por uma verdadeira infodemia, gerando profunda desconfiança nas lideranças institucionais e nas diferentes fontes de informação. A pesquisa mostra ainda que as empresas substituíram o governo como a instituição mais confiável, além de serem consideradas duas vezes mais competentes na resolução de problemas.

Considerando que a confiança é o que viabiliza a cooperação entre as pessoas, o principal diferencial adaptativo da nossa espécie e ingrediente indispensável ao funcionamento das instituições, das empresas, da sociedade e da economia, como seremos capazes de lidar com os desafios excepcionais da recuperação pós-pandemia sem começarmos pela reconstrução da confiança? Reconstruir a confiança implica em repactuar o compromisso com os princípios que resguardam a dignidade das pessoas e impulsionam o desenvolvimento social.

Mas talvez exista um aspecto positivo nesta transparência radical trazida pelas audiências virtuais. Elas trazem a possibilidade da exposição dos profissionais e autoridades que trabalham no sentido inverso ao seu mandato público.

Talvez a noção de que tudo o que é dito, é dito em público, podendo ganhar repercussão global em questão de horas, possa dar voz e alcance aos cidadãos comuns, outrora desprovidos de influência, em cuja defesa e proteção as instituições foram criadas. Talvez a visibilidade aumentada das audiências virtuais possa trazer à consciência de um magistrado uma noção mais clara de que se sua fala em pleno exercício do poder que lhe confere a sociedade causa tamanha reação, talvez ele o esteja usando de forma personalista e não nos termos do bem comum.

Se esta noção, que deveria ser evidente pelo exercício da consciência, for resgatada pela sensibilidade à honra, ou seu oposto a vergonha, ainda assim, terá feito a diferença, e a transparência radical do novo mundo do trabalho poderá ser um vetor de resgate do compromisso com as leis e com os princípios éticos que ainda são a nossa melhor aposta para superarmos os desafios do novo ano.

Tempos sombrios realçam pequenos pontos de luz. Quisera a consciência de serem vistos fazer com que mais magistrados possam encarnar a justiça.  Quisera a noção da transparência nos convide a sermos a melhor versão de nós mesmos, até que se torne a nossa única maneira de agir no mundo, mesmo quando ninguém está olhando.

 

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Uma pergunta clássica permeia quase todos os treinamentos de compliance nas empresas. Ela fica na memória como um critério para avaliarmos a adequação (ou não) das nossas decisões: se o que você está fazendo se tornasse trending topic nas mídias sociais, você ainda tomaria a mesma decisão? Faria as mesmas coisas? Diria as mesmas palavras?

Esta é uma reflexão incisiva pois sinaliza a transição de uma conduta pautada pela consciência, para uma conduta pautada pela honra, ou seu oposto, a vergonha. É como se ela nos conduzisse da dimensão da consciência moral (a voz interna que nos ajuda a discernir entre o certo e o errado) à dimensão da honra (a voz da sociedade). Se a consciência internaliza a noção de justiça, a visibilidade , com sua perspectiva de honra ou ameaça de vergonha, agrega ao algoritmo moral a voz do julgamento público.

A primeira dimensão revela o que somos de verdade, quando ninguém está olhando. A segunda, nos lembra que as fronteiras entre o privado e o público estão ao alcance de um post.

Um episódio, longe de raro, mas ainda assim emblemático, ilustrou esta questão nas últimas semanas. Em 17 de dezembro o Papo de Mãe, um canal sobre vida em família, trouxe à luz um julgamento na Vara de Família, conduzido pelo Juiz Rodrigo de Azevedo Costa.

Na audiência, ao ser questionado sobre o fato de uma das partes ser vítima do ex-companheiro em inquérito que apura violência doméstica, o juiz afirma: “Se tem lei Maria da Penha contra a mãe(sic) eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”.

Esta afirmação, entre outras indignidades proferidas pelo mesmo Juiz, gerou indignação em diversas plataformas sociais e reações por parte da Comissão da Mulher Advogada da OAB, da própria Maria da Penha e da Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Para quem acompanha a trajetória das mulheres vítimas de violência, o único aspecto deste episódio que o torna uma novidade é o fato de a audiência ter sido filmada e publicada.

Condutas graves como esta são recorrentes em tribunais de norte a sul deste país, reproduzindo a prática da revitimização que faz com que as mulheres coloquem em dúvida a eficácia do Sistema de Justiça, o que compromete o seu efeito emancipador.

Na semana passada, a última edição da tradicional pesquisa Trust Barometer publicada pela Edelman, revela a erosão da confiança em todo o mundo. O contexto que vivemos é caracterizado por uma verdadeira infodemia, gerando profunda desconfiança nas lideranças institucionais e nas diferentes fontes de informação. A pesquisa mostra ainda que as empresas substituíram o governo como a instituição mais confiável, além de serem consideradas duas vezes mais competentes na resolução de problemas.

Considerando que a confiança é o que viabiliza a cooperação entre as pessoas, o principal diferencial adaptativo da nossa espécie e ingrediente indispensável ao funcionamento das instituições, das empresas, da sociedade e da economia, como seremos capazes de lidar com os desafios excepcionais da recuperação pós-pandemia sem começarmos pela reconstrução da confiança? Reconstruir a confiança implica em repactuar o compromisso com os princípios que resguardam a dignidade das pessoas e impulsionam o desenvolvimento social.

Mas talvez exista um aspecto positivo nesta transparência radical trazida pelas audiências virtuais. Elas trazem a possibilidade da exposição dos profissionais e autoridades que trabalham no sentido inverso ao seu mandato público.

Talvez a noção de que tudo o que é dito, é dito em público, podendo ganhar repercussão global em questão de horas, possa dar voz e alcance aos cidadãos comuns, outrora desprovidos de influência, em cuja defesa e proteção as instituições foram criadas. Talvez a visibilidade aumentada das audiências virtuais possa trazer à consciência de um magistrado uma noção mais clara de que se sua fala em pleno exercício do poder que lhe confere a sociedade causa tamanha reação, talvez ele o esteja usando de forma personalista e não nos termos do bem comum.

Se esta noção, que deveria ser evidente pelo exercício da consciência, for resgatada pela sensibilidade à honra, ou seu oposto a vergonha, ainda assim, terá feito a diferença, e a transparência radical do novo mundo do trabalho poderá ser um vetor de resgate do compromisso com as leis e com os princípios éticos que ainda são a nossa melhor aposta para superarmos os desafios do novo ano.

Tempos sombrios realçam pequenos pontos de luz. Quisera a consciência de serem vistos fazer com que mais magistrados possam encarnar a justiça.  Quisera a noção da transparência nos convide a sermos a melhor versão de nós mesmos, até que se torne a nossa única maneira de agir no mundo, mesmo quando ninguém está olhando.

 

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