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Seria o sadomasoquismo a essência do futebol?

O ato de “secar” um adversário para poder zoar a torcida do time rival é uma expressão única e pura de sadismo

 (Fernando Torres/CBF/Agência Brasil)
(Fernando Torres/CBF/Agência Brasil)

Certo dia à noite e em frente à minha televisão assistia, ávido, a uma disputa de pênaltis. Minha esposa então, dado o adiantado da hora e ciente de que nenhum dos clubes envolvidos tinha relação comercial ou emocional (pelo menos imediata) comigo, perguntou o que estava me atraindo naquele jogo ao ponto de trocá-lo por qualquer outra opção de entretenimento ou do desfrute da valiosa presença dela.

Achei a pergunta instigante, mas fui evasivo e dei a resposta superficial padrão: falei que gosto de ver futebol, independente de quem sejam os atores, pois o espetáculo da competitividade sempre me atrai. Isso não deixa de ser (uma) verdade, no entanto, após assistir as cobranças e aproveitar as horas de sono que me restaram, me aprofundei em meus sentimentos.

O que me atraía e me deixava desproporcionalmente satisfeito com aquela situação de jogo era, na verdade, um outro sentimento. O sadismo é um transtorno da personalidade (ou mais modernamente, uma “condição subjetiva emocional”) em que um indivíduo encontra prazer ou satisfação com o sofrimento alheio. Estaria eu encontrando alegria no sofrimento das duas torcidas envolvidas nesse momento que é um dos mais tensos no futebol? Bem, fato é que no mundo dos torcedores, o sentimento sádico talvez seja o mais popular. O ato de “secar” um adversário para poder zoar a torcida do time rival é uma expressão única e pura de sadismo.

Uma outra condição emocional altamente correlacionada com o sadismo e muito encontrada no futebol é o “masoquismo”. Masoquista é aquela pessoa que encontra prazer ou satisfação com o próprio sofrimento. Afinal, o ato de torcer parece só encontrar sua essência se conjugado com o ato de sofrer! Vamos ao estádio, ou mesmo nos postamos diante de nossa televisão, de forma apaixonada e nervosa, e transferimos todos os nossos problemas mundanos para aquele espetáculo metafísico que não podemos participar concretamente. Sofremos e, muitas vezes, nos vangloriamos do nosso sofrimento valorizando nossas conquistas e nos amparando nas decepções. Não assistiu ao jogo? Não sofreu com e pelo seu time? Você é um pária, um “meio-torcedor” ou como se diz hoje em dia, um “torcedor Nutella”!

A verdade é que esses chamados transtornos da personalidade estão no cerne de nossa paixão pelo futebol. A relação entre duas torcidas disputando uma partida de futebol e até daquelas que não estão envolvidas nessa partida, é o que podemos chamar psicanaliticamente como “sadomasoquista” ou popularmente “sado-masô”. Em outras palavras, uma das partes ao menos disposta a aceitar o próprio sofrimento e a(s) outra(s) interessada(s) em encontrar satisfação em detrimento do sofrimento da outra parte.

Essa relação de contraposição constante de sentimentos sádico-masoquistas é o principal fator que movimenta, inclusive, a economia do futebol: cânticos, memes, postagens e chamadas televisivas instigam esses sentimentos, baseados na rivalidade. Quando um time perde, as redes sociais e os influenciadores trabalham mais o lado sádico do derrotado do que os louros do time vitorioso. Sofrimento vende mais jornal do que a euforia e atinge a um público muito maior, afinal atinge também todos os sádicos torcedores dos outros times.

Voltando à disputa de pênaltis do início dessa coluna e mergulhando ainda mais fundo no meu subconsciente, acredito que minha alegria vinha não do sofrimento de terceiros, mas do alívio de não estar participando daquele momento tão tenso. Afinal, sou sádico, mas não sou masoquista!