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Seu emprego não te pertence

O que você tem são competências e valores que atraem empresas ou projetos nos quais é possível se sentir realizado. E com dinheiro no bolso

Adriano Lima: Empregabilidade mudou para trabalhabilidade. O emprego pertence ao empregador. O que pertence a você são suas competências, seus valores, seus resultados, sua ética (Klaus Vedfelt/Getty Images)
Adriano Lima

Autor do livro "Você em Ação"

Publicado em 30 de janeiro de 2024 às 16h31.

Última atualização em 30 de janeiro de 2024 às 16h32.

Dois amigos entram em um bar. Há muito tempo não se viam. No meio da conversa, um deles pergunta se o outro está empregado. A resposta é um sonoro “não”. O primeiro ficou desconcertado, espantado. E digo mais: ultrapassado. Se isso já aconteceu com você, calma. Conte outra história.

Na série The Marvelous Mrs. Maisel, no Prime Video, há uma cena que marca esse novo momento em relação ao emprego, embora ela seja ambientada nos anos 1950. Depois de realizar o sonho de trabalhar em um laboratório de pesquisa em tecnologia, Abe Weissman, pai da protagonista Miriam Maisel e interpretado por Tony Shalhoub, acaba demitido. Ele busca recuperar suas anotações para um projeto e ouve de um dos antigos diretores que “todos os pensamentos dele eram da empresa”.

Ledo engano. Uma organização que acredita que as competências de uma pessoa são dela está fadada ao fracasso. Se a pessoa sai, com ela vão suas competências e a capacidade de, a partir delas, serem criadas outras. Porque o mundo, em especial do trabalho, é dinâmico – ainda mais nestes tempos.

Uma organização que apenas foca o emprego fica limitada – e não no sentido de LTDA, se me entendem. Pode virar até motivo de piada de Mrs. Maisel, uma jovem que um dia vê seu casamento acabar e a necessidade de reinventar sua vida – optando pelas comédias de stand up sobre o dia a dia. “Hoje passei pela porta de uma fábrica e lá estava um cartaz com a frase ‘procura-se’ e embaixo dois cargos. Não sei se é a melhor maneira de contratar ou de prender alguém – e isso não é reter da forma certa”.

Em como e o quê fazer

Não por acaso, empregabilidade mudou para trabalhabilidade. O emprego pertence ao empregador, é ele quem concede uma determinada condição de trabalho, numa relação mediada de troca de serviços com um profissional.

O que pertence a você são suas competências, seus valores, seus resultados, sua ética. Esses pontos ganham cada vez mais foco nesse conceito que se traduz na nossa capacidade de gerar trabalho e renda, seja em alguma empresa ou projeto.

Ao colocar valores e ética nessa equação, é possível entender que trabalhabilidade vai muito além de saber fazer alguma coisa: mas em “como” fazer essa coisa. A pessoa como um todo passa a fazer parte desse conceito, ao contrário de empregabilidade que focava em uma parte dela (as competências, geralmente técnicas).

Falar em trabalhabilidade é falar, digamos, de dentro para fora, do ser humano para a empresa ou para o mercado, esperando um outro olhar – como numa conquista, que dá um frio na barriga, mas não de medo, claro! Há uma cumplicidade diferente na relação comparando-se com a dos tempos de empregabilidade: acabava o emprego, acabava o amor, acabava a pessoa. Muitas vezes literalmente.

Isso não quer dizer que para melhorar nossa trabalhabilidade não devemos compreender as necessidades do mercado. Essa preocupação continua, agora mais abrangente. A questão é que o próprio mercado, no caso as empresas, procura se moldar para ter as melhores pessoas orbitando em volta de si. Um movimento que cresceu com a pandemia, ao mesmo passo em que as competências e expectativas para o futuro do trabalho no pós-covid mudaram – impactando a trabalhabilidade.

É para casar?

Falando em empregabilidade e conquista: podemos refletir em um ponto extremamente caro para as empresas, que é o engajamento. Será que ela garantia bons índices, verdadeiros, de comprometimento?

Havia match e era para casar? E se surgisse uma proposta melhor, o profissional usaria sua empregabilidade para pular o muro e iria para outra organização? Teríamos uma The Marvelous Mrs. Ex-Company?

Não que isso não possa ocorrer em tempos de trabalhabilidade. No entanto, é de se imaginar que o comprometimento do profissional tende a ser maior, justamente em função daqueles quesitos que antes não faziam parte do script: ética, valores etc.

É o alinhamento que a trabalhabilidade impõe nessa relação profissional-projeto/empresa que acena para uma relação mais duradoura. Porque se trata de uma troca que faz sentido e traz significado e renda. Em alguns casos, apenas o significado já basta, a exemplo de quem se dedica a uma organização não governamental, por exemplo.

Neste caso, ela também desenvolve suas capacidades, seus talentos. Vivencia seus valores no dia a dia, mas não recebe um salário. Ela deixa de ter menos trabalhabilidade? Nem um pouco.

Merece seu talento?

Muitas certezas que tínhamos anteriormente sobre o que era considerado certo no ambiente de trabalho estão sendo questionadas com maior intensidade. O que antes parecia impossível e inimaginável tornou-se uma parte cotidiana de nossas vidas, tanto dentro quanto fora das organizações.

A pandemia desencadeou uma introspecção significativa por parte de muitos profissionais. Com o futuro ameaçado pela covid-19, houve uma reflexão profunda sobre o significado de suas vidas.

Questões relacionadas ao equilíbrio entre a vida pessoal e profissional ganharam destaque. Objetivos organizacionais foram revisados repetidamente para avaliar se ainda faziam sentido. Surgiu a pergunta: valeria a pena ficar em uma empresa onde não se vislumbra um futuro em que a realização pessoal seja alcançada plenamente?

Um levantamento do Gartner mostra que 65% dos colaboradores disseram que a pandemia os fez repensar o lugar que o trabalho deveria ocupar nas suas vidas e 52% dos colaboradores afirmaram que isso os fez questionar o propósito do seu trabalho diário.

E 82% dos funcionários concordaram que é importante que a sua organização os veja como pessoas, não apenas como funcionários... As pessoas querem saber se suas organizações são dignas de seu compromisso. Se elas são merecedoras de seus talentos, habilidades e competências que somente elas, as pessoas, têm e que são intransferíveis.

Com a trabalhabilidade, vista de forma ampla, incluindo o ser humano em si, e colocando-o no centro de sua estratégia, a empresa ganha. Ao criar um ambiente de trabalho centrado no ser humano, a empresa tem 3,1 vezes mais probabilidade de observar baixos níveis de fadiga entre os funcionários; estes, por sua vez, têm 3,2 vezes mais probabilidade de ter alta intenção de permanecer na companhia e 3,8 vezes mais probabilidade de exibir alto desempenho, de acordo com o Gartner. A trabalhabilidade atua como uma santa casamenteira – profissão que a mãe de Mrs. Maisel passa a exercer (não é spoiler).

Que mercado é esse?

Para os profissionais, o conceito de trabalhabilidade ajuda a entender mais o que e o se como quer, ainda mais em um mercado em constante ebulição – por exemplo, o relatório do Fórum Econômico Mundial Future of Jobs 2023 mostra que as habilidades cognitivas estão crescendo mais rapidamente em importância. Isso decorre da também crescente importância da resolução de problemas complexos no local de trabalho. Algo cada vez mais natural em um ambiente BANI e VUCA.

As empresas que foram pesquisadas para o estudo relataram que o pensamento criativo está ganhando destaque com um pouco mais de força do que o pensamento analítico. As habilidades na área tecnológica são a terceira competência essencial com crescimento mais rápido.

De outro lado, a IA vem impactando nossas carreiras e a forma como trabalhamos e vamos trabalhar. Em particular a IA Generativa. A pesquisa Work reimagined survey, da EY, revela que a GenAI terá um impacto enorme, aumentando, nos próximos cinco anos, o número de empregos especializados em IA e aprendizado de máquina.

O número de anúncios de emprego que mencionam o ChatGPT como um requisito desejável aumentou 21 vezes no LinkedIn, algo em torno de 75% a cada mês dede janeiro de 2023, em média.

E mais: no estudo Força de trabalho do futuro - as forças concorrentes que moldam 2030, da PwC, temos que 37% dos profissionais entrevistados estão preocupados com o fato de a automatização colocar os empregos em risco; 74% estão prontos para aprender novas habilidades ou treinar novamente para permanecerem empregáveis no futuro; 60% pensam que poucas pessoas terão um emprego estável e duradouro no futuro; e 73% acreditam que a tecnologia nunca poderá substituir a mente humana.

O que isso quer dizer?

O discurso comum é que a tecnologia veio liberar o melhor da pessoa ao realizar aquele trabalho chato e repetitivo. Seremos mais humanos em nossos projetos, nossas competências mais humanas serão fundamentais para este e os novos tempos. Nossa trabalhabilidade estará mais calcada nisso: as competências que crescem em demanda são essas em um mercado automatizado.

Desenvolver e fortalecer nossa trabalhabilidade é focar esse nosso lado. É buscar ser autêntico, um eterno aprendiz, empático e eficiente.

É como subir no palco: é preciso entender a plateia, acompanhar o que acontece no mundo, pois às vezes é preciso improvisar a partir de um comentário do público. Sobretudo, é preciso ter coragem para se expor.

Não é algo fácil, pode machucar ou frustrar em alguns momentos. Mas esse é o sentido do show business, que deve continuar. Como todo business, não? Vamos lá: quando encontrar aquele amigo, banque Mr. Maisel e comece assim: “dois amigos entraram em um bar...”

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Dois amigos entram em um bar. Há muito tempo não se viam. No meio da conversa, um deles pergunta se o outro está empregado. A resposta é um sonoro “não”. O primeiro ficou desconcertado, espantado. E digo mais: ultrapassado. Se isso já aconteceu com você, calma. Conte outra história.

Na série The Marvelous Mrs. Maisel, no Prime Video, há uma cena que marca esse novo momento em relação ao emprego, embora ela seja ambientada nos anos 1950. Depois de realizar o sonho de trabalhar em um laboratório de pesquisa em tecnologia, Abe Weissman, pai da protagonista Miriam Maisel e interpretado por Tony Shalhoub, acaba demitido. Ele busca recuperar suas anotações para um projeto e ouve de um dos antigos diretores que “todos os pensamentos dele eram da empresa”.

Ledo engano. Uma organização que acredita que as competências de uma pessoa são dela está fadada ao fracasso. Se a pessoa sai, com ela vão suas competências e a capacidade de, a partir delas, serem criadas outras. Porque o mundo, em especial do trabalho, é dinâmico – ainda mais nestes tempos.

Uma organização que apenas foca o emprego fica limitada – e não no sentido de LTDA, se me entendem. Pode virar até motivo de piada de Mrs. Maisel, uma jovem que um dia vê seu casamento acabar e a necessidade de reinventar sua vida – optando pelas comédias de stand up sobre o dia a dia. “Hoje passei pela porta de uma fábrica e lá estava um cartaz com a frase ‘procura-se’ e embaixo dois cargos. Não sei se é a melhor maneira de contratar ou de prender alguém – e isso não é reter da forma certa”.

Em como e o quê fazer

Não por acaso, empregabilidade mudou para trabalhabilidade. O emprego pertence ao empregador, é ele quem concede uma determinada condição de trabalho, numa relação mediada de troca de serviços com um profissional.

O que pertence a você são suas competências, seus valores, seus resultados, sua ética. Esses pontos ganham cada vez mais foco nesse conceito que se traduz na nossa capacidade de gerar trabalho e renda, seja em alguma empresa ou projeto.

Ao colocar valores e ética nessa equação, é possível entender que trabalhabilidade vai muito além de saber fazer alguma coisa: mas em “como” fazer essa coisa. A pessoa como um todo passa a fazer parte desse conceito, ao contrário de empregabilidade que focava em uma parte dela (as competências, geralmente técnicas).

Falar em trabalhabilidade é falar, digamos, de dentro para fora, do ser humano para a empresa ou para o mercado, esperando um outro olhar – como numa conquista, que dá um frio na barriga, mas não de medo, claro! Há uma cumplicidade diferente na relação comparando-se com a dos tempos de empregabilidade: acabava o emprego, acabava o amor, acabava a pessoa. Muitas vezes literalmente.

Isso não quer dizer que para melhorar nossa trabalhabilidade não devemos compreender as necessidades do mercado. Essa preocupação continua, agora mais abrangente. A questão é que o próprio mercado, no caso as empresas, procura se moldar para ter as melhores pessoas orbitando em volta de si. Um movimento que cresceu com a pandemia, ao mesmo passo em que as competências e expectativas para o futuro do trabalho no pós-covid mudaram – impactando a trabalhabilidade.

É para casar?

Falando em empregabilidade e conquista: podemos refletir em um ponto extremamente caro para as empresas, que é o engajamento. Será que ela garantia bons índices, verdadeiros, de comprometimento?

Havia match e era para casar? E se surgisse uma proposta melhor, o profissional usaria sua empregabilidade para pular o muro e iria para outra organização? Teríamos uma The Marvelous Mrs. Ex-Company?

Não que isso não possa ocorrer em tempos de trabalhabilidade. No entanto, é de se imaginar que o comprometimento do profissional tende a ser maior, justamente em função daqueles quesitos que antes não faziam parte do script: ética, valores etc.

É o alinhamento que a trabalhabilidade impõe nessa relação profissional-projeto/empresa que acena para uma relação mais duradoura. Porque se trata de uma troca que faz sentido e traz significado e renda. Em alguns casos, apenas o significado já basta, a exemplo de quem se dedica a uma organização não governamental, por exemplo.

Neste caso, ela também desenvolve suas capacidades, seus talentos. Vivencia seus valores no dia a dia, mas não recebe um salário. Ela deixa de ter menos trabalhabilidade? Nem um pouco.

Merece seu talento?

Muitas certezas que tínhamos anteriormente sobre o que era considerado certo no ambiente de trabalho estão sendo questionadas com maior intensidade. O que antes parecia impossível e inimaginável tornou-se uma parte cotidiana de nossas vidas, tanto dentro quanto fora das organizações.

A pandemia desencadeou uma introspecção significativa por parte de muitos profissionais. Com o futuro ameaçado pela covid-19, houve uma reflexão profunda sobre o significado de suas vidas.

Questões relacionadas ao equilíbrio entre a vida pessoal e profissional ganharam destaque. Objetivos organizacionais foram revisados repetidamente para avaliar se ainda faziam sentido. Surgiu a pergunta: valeria a pena ficar em uma empresa onde não se vislumbra um futuro em que a realização pessoal seja alcançada plenamente?

Um levantamento do Gartner mostra que 65% dos colaboradores disseram que a pandemia os fez repensar o lugar que o trabalho deveria ocupar nas suas vidas e 52% dos colaboradores afirmaram que isso os fez questionar o propósito do seu trabalho diário.

E 82% dos funcionários concordaram que é importante que a sua organização os veja como pessoas, não apenas como funcionários... As pessoas querem saber se suas organizações são dignas de seu compromisso. Se elas são merecedoras de seus talentos, habilidades e competências que somente elas, as pessoas, têm e que são intransferíveis.

Com a trabalhabilidade, vista de forma ampla, incluindo o ser humano em si, e colocando-o no centro de sua estratégia, a empresa ganha. Ao criar um ambiente de trabalho centrado no ser humano, a empresa tem 3,1 vezes mais probabilidade de observar baixos níveis de fadiga entre os funcionários; estes, por sua vez, têm 3,2 vezes mais probabilidade de ter alta intenção de permanecer na companhia e 3,8 vezes mais probabilidade de exibir alto desempenho, de acordo com o Gartner. A trabalhabilidade atua como uma santa casamenteira – profissão que a mãe de Mrs. Maisel passa a exercer (não é spoiler).

Que mercado é esse?

Para os profissionais, o conceito de trabalhabilidade ajuda a entender mais o que e o se como quer, ainda mais em um mercado em constante ebulição – por exemplo, o relatório do Fórum Econômico Mundial Future of Jobs 2023 mostra que as habilidades cognitivas estão crescendo mais rapidamente em importância. Isso decorre da também crescente importância da resolução de problemas complexos no local de trabalho. Algo cada vez mais natural em um ambiente BANI e VUCA.

As empresas que foram pesquisadas para o estudo relataram que o pensamento criativo está ganhando destaque com um pouco mais de força do que o pensamento analítico. As habilidades na área tecnológica são a terceira competência essencial com crescimento mais rápido.

De outro lado, a IA vem impactando nossas carreiras e a forma como trabalhamos e vamos trabalhar. Em particular a IA Generativa. A pesquisa Work reimagined survey, da EY, revela que a GenAI terá um impacto enorme, aumentando, nos próximos cinco anos, o número de empregos especializados em IA e aprendizado de máquina.

O número de anúncios de emprego que mencionam o ChatGPT como um requisito desejável aumentou 21 vezes no LinkedIn, algo em torno de 75% a cada mês dede janeiro de 2023, em média.

E mais: no estudo Força de trabalho do futuro - as forças concorrentes que moldam 2030, da PwC, temos que 37% dos profissionais entrevistados estão preocupados com o fato de a automatização colocar os empregos em risco; 74% estão prontos para aprender novas habilidades ou treinar novamente para permanecerem empregáveis no futuro; 60% pensam que poucas pessoas terão um emprego estável e duradouro no futuro; e 73% acreditam que a tecnologia nunca poderá substituir a mente humana.

O que isso quer dizer?

O discurso comum é que a tecnologia veio liberar o melhor da pessoa ao realizar aquele trabalho chato e repetitivo. Seremos mais humanos em nossos projetos, nossas competências mais humanas serão fundamentais para este e os novos tempos. Nossa trabalhabilidade estará mais calcada nisso: as competências que crescem em demanda são essas em um mercado automatizado.

Desenvolver e fortalecer nossa trabalhabilidade é focar esse nosso lado. É buscar ser autêntico, um eterno aprendiz, empático e eficiente.

É como subir no palco: é preciso entender a plateia, acompanhar o que acontece no mundo, pois às vezes é preciso improvisar a partir de um comentário do público. Sobretudo, é preciso ter coragem para se expor.

Não é algo fácil, pode machucar ou frustrar em alguns momentos. Mas esse é o sentido do show business, que deve continuar. Como todo business, não? Vamos lá: quando encontrar aquele amigo, banque Mr. Maisel e comece assim: “dois amigos entraram em um bar...”

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