A Califórnia é o novo paraíso dos vinhos
Com qualidade incontestável e preços competitivos, os rótulos da costa oeste americana ganham mercado externo
Da Redação
Publicado em 26 de outubro de 2017 às 13h12.
Última atualização em 17 de outubro de 2018 às 05h58.
Não é de hoje que a Califórnia e os vizinhos da costa oeste americana, Oregon e Washington, produzem grandes vinhos.
São bebidas tão boas que, em algumas provas às cegas, venceram os maiores bordeaux, borgonhas e toscanos.
No entanto, pouca gente no Brasil sabe disso, pois, quando eram importados, os bons rótulos batiam cifras estratosféricas.
Esse quadro, porém, começa a mudar com o surgimento de novas regiões vinícolas, menos caras que Napa e Sonoma Valley. Em um ótimo timing, elas se aproveitam também de ocasiões como a geada que devastou a safra deste ano na Europa.
Sem a concorrência, avançam nas exportações, principalmente de rótulos premium e de média gama.
O preço a pagar
São muitos os fatores que encarecem um vinho. O custo da produção é um deles. A procura maior que a oferta, outro. "Há uma demanda interna grande pelo vinho americano, por isso os produtores nem precisariam exportar", diz Alykhan Karim, sócio do e-commerce de vinhos Sonoma.
O consumo acontece mesmo com a alta taxa de impostos - bons vinhos americanos não são baratos nem nos Estados Unidos.
O valor dos vinhedos também tem impacto no preço final. Nas regiões mais disputadas de Napa Valley, um hectare chega a custar 300 mil dólares, quase o mesmo de Bordeaux, na França.
O custo reflete a qualidade do terroir: clima mediterrâneo, diversidade de solos e anos de tradição. "Em regiões como Paso Robles, Santa Barbara ou Monterey, os vinhos são mais acessíveis", diz Karim.
Bom preço, no caso dos vinhos americanos, costuma girar entre 100 e 250 reais.
Toda a região oeste começou a produzir vinhos comercialmente em meados do século 19, mas sofreu dois grandes golpes: a praga da filoxera, uma mosca que quase dizimou os vinhedos, e a Lei Seca, que nos anos 20 e 30 derrubou plantações, fechou vinícolas e dispersou consumidores.
Depois do fim da lei é que Napa passou a se destacar.
A hora da virada
Contratado pelo Château Beaulieu, o enólogo russo André Tchelistcheff apostou na casta cabernet sauvignon e trouxe várias inovações: no campo, o sistema de proteção contra geadas; na vinícola, a fermentação a frio e o amadurecimento em pequenas barricas de carvalho — que proporciona aromas de baunilha e coco à bebida.
Logo, Tchelistcheff virou consultor de outras vinícolas na Califórnia, no Oregon e em Washington. Foi ele quem deu nova cara ao vinho americano: estruturado e tânico.
Porém, quem o consagrou foi Robert Mondavi, que fundou a vinícola homônima em 1966, em Napa, com o objetivo de fazer vinhos parecidos com os de Bordeaux, o que incluía o uso de madeira.
Em 1976, o crítico inglês Steven Spurrier promoveu uma prova às cegas, comparando vinhos americanos e europeus, que ficou conhecida como "O Julgamento de Paris".
Na ocasião, rótulos californianos receberam pontuações mais altas do que alguns dos maiores franceses. E isso era só o começo. "Hoje, a indústria da Califórnia é extremamente sofisticada.
Esse crescimento pode ser atribuído ao segmento de vinhos ultrafinos", diz o enólogo Paul Hobbs, que ajudou na produção do Opus One, um ícone de 4,5 mil reais.
The american dream
Em 2015, a Califórnia produziu 2,25 bilhões de litros, ficando atrás da França, Espanha e Itália. Os vinhedos se dividem em seis áreas (ou costas).
A produção de ultrafinos se concentra na norte, onde ficam Napa, Sonoma, Los Carneros e Mendocino.
Os vinhos populares, na central. "Nesta última, algumas American Viticultural Areas [AVAs, equivalente a DOC] são bastante conhecidas", diz Odmar Almeida, sócio da Smart Buy Wines, importadora especializada em vinhos americanos.
Os vinhos de Washington também são ótimos. Com latitude igual à da Alemanha, a região garante 16 horas diárias de sol na época do amadurecimento da uva, o que ajuda a desenvolver os aromas e aveludar os taninos.
Chove pouco, mas há água para irrigação. As vinhas mais velhas têm 40 anos e, com o envelhecimento, devem produzir vinhos ainda melhores.
Oregon continua com preços mais altos, mas com qualidade excepcional. "O pinot noir tem uma complexidade de aromas que é difícil encontrar mais ao sul, com notas terrosas e frutadas", diz Arthur Azevedo, presidente da Associação Brasileira de Sommeliers de São Paulo.
O estado se divide em três regiões vinícolas. A mais renomada está próxima a Portland e à costa do Pacífico: Willamette Valley, significativamente mais fria que a Califórnia.
E seus vinhos valem cada centavo.
Quatro rótulos para explorar a costa oeste americana
Grayson Cellars Chardonnay 2012
Os aromas de caramelo das barricas de carvalho, tão comuns nos chardonnays americanos, aqui são sutis. R$ 137 vinci.com.br
Anders Lane Prohibition 2012
De uva zinfandel, tem os aromas de frutas (cereja, ameixa, amora) bem integrados aos da madeira (coco, chocolate, baunilha). R$ 96 smartbuywines.com.br
Seven Oaks Cabernet Sauvignon 2014
Mostra o caráter dos cabernet sauvignons californianos: denso, estruturado, redondo na boca. R$ 181 decanter.com.br
Coppola Rosso & Bianco Shiraz 2012
Um tinto com uma pitada de branco, tem peso e estrutura da syrah e da zinfandel, mas com o frescor e a exuberância da viognier. R$ 206 interfood.com.br
Papo com Paul Hobbs, um dos enólogos mais respeitados dos Estados Unidos
Paul Hobbs foi braço direito de Robert Mondavi, considerado como pai da viticultura moderna na Califórnia. Participou da elaboração do maior ícone da região, o Opus One.
Mais tarde, ajudou Nicolas Catena a produzir na Argentina vinhos comparáveis com grandes europeus. Em 1991, fundou sua primeira vinícola, a Paul Hobbs Winery (Mistral), em Napa Valley.
Em 2005, recebeu 100 pontos de Robert Parker, na The Wine Advocate, por seu Cabernet Sauvignon 2002. Hoje a Paul Hobbs Winery tem vinhedos em várias regiões de Napa e Sonoma, Além de vinícolas na Argentina (Viña Cobos) e na Armênia (Yacoubian-Hobbs).
A seguir, a entrevista que Hobbs concedeu a VIP, antes do início dos incêndios que, desde 9 de outubro, estão assolando os vinhedos a Califórnia e provocando uma série de mortes no norte do Estado (em um comunicado a seus importadores, a Paul Hobbs Winery avisa que suas propriedades não foram atingidas, mas que muitos funcionários perderam suas casas):
Ping-pong etílico
Os vinhos americanos, especialmente os da costa oeste, são considerados de boa qualidade, mas também são considerados caros e parece-me que são alvo do mercado interno. É assim?
Sim, parece que, dado o tamanho do mercado norte-americano, a maioria dos produtores domésticos até recentemente não pensava globalmente em termos de mercado. Felizmente, essa máxima está começando a desmoronar.
Atualmente, os produtores reconhecem que existem vantagens comerciais importantes em ter uma presença global para seus produtos e também podem ver que seus vinhos são apreciados por pessoas de todo o mundo.
Esta é uma boa mudança e acho que o mundo do vinho é muito mais divertido e fascinante. Quanto ao preço, acho que os vinhos da Califórnia podem ser muito competitivos em cada ponto de preço.
Como você vê o potencial dos vinhos americanos no mercado mundial em comparação com outros novos produtores mundiais, como a Argentina, o Chile ou a Austrália?
O governo americano não faz nada para apoiar a exportação de nossos vinhos. Por outro lado, certos órgãos privados, como o Wine Institute ou Napa Valley Vintners, estão se dedicando a isso com fervor.
A dinâmica de cada país é um pouco diferente e, portanto, cada um tem seu nicho (de mercado). O Chile, por exemplo, tem um consumo interno muito pequeno em relação ao número de garrafas que produz. Deve olhar para fora para ter uma indústria significativa.
Argentina por anos consumiu tudo o que produziu. Nos anos 90, quando seus vinhos melhoraram, encontrou um mercado mundial pronto e se deu muito bem, especialmente com o Malbec.
Agora que a Califórnia está mais interessada em vender internacionalmente (já faz um comércio considerável com o Canadá), acho que também se tornará um jogador mais significativo, pois a relação entre valor e qualidade é incomparável.
Qual é a principal diferença entre a cena do vinho californiano hoje e a na época em que você começou no negócio?
Comecei em 1977 na Robert Mondavi Winery, com 24 anos. Era tudo um pouco embrionário. Isso mudou. Hoje é extremamente sofisticado, complexo, dinâmico. É dinheiro para valer.
Isso é verdade para todos os aspectos do negócio, da vinha à produção, da hospitalidade até o modo como o vinho é posicionado no mercado e comercializado.
A maior parte do crescimento pode ser atribuída ao segmento de vinhos ultrafinos, com Napa Valley e Sonoma County liderando o caminho, seguidos pela região costeira central.
Nos anos 70, a Califórnia estava apenas começando a emergir como uma região vitivinicola de interesse. Hoje, é um titã, indiscutivelmente. É considerada o principal centro do mundo em termos de inovação, nas formas como os vinhos são feitos, vendidos e comercializados.
O vinho californiano ficou conhecido por seu um estilo encorpado, cheio de aromas de madeira. Ainda é assim?
Hoje as opções de estilo são altamente diversificadas. Claro, há um mercado para vinhos de muito corpo, pesados, com bastante carvalho. Então alguns desses vinhos continuaram sendo feitos.
E quanto aos seus vinhos?
Estou muito envolvido com o conceito de "senso de lugar". Faço vinhos que falam com autenticidade sobre a terra, o local. Daí a essência de tudo o que faço. Tudo é uma tentativa de atingir esse objetivo.
Para esse fim, incorporei princípios de menos intervenção, como a agricultura sustentável, a fermentação com leveduras indígenas e menos intervenção. Por exemplo, não clarificamos.
Muitos dizem que o crítico Robert Parker definiu esse estilo californiano de vinhos, encorpados e amadeirados. Mas o estilo californiano não teria definido o gosto de Parker? O senhor e Roberto Mondavi também têm muita responsabilidade sobre a criação desse estilo, não?
Eu amo esse jogo de quem veio primeiro, o ovo ou a galinha. Parker não esconde que ama vinhos hedonistas, redondos, e a Califórnia é um lugar onde se pode ter uma alta taxa de sucesso na fabricação desses vinhos (devido ao terroir).
Então, esse é um casamento muito bom, e eu imagino que um serve o outro.
Qual é a maior contribuição dada pela Califórnia ao mundo do vinho?
Anos atrás provavelmente teria dito que era a abordagem científica/analítica do cultivo de uvas e da vinificação, pois a Califórnia foi pioneira nessa abordagem. Hoje, no entanto, me parece que é a maneira inovadora que os vinhos são vendidos e comercializados.
Ambas as áreas do negócio continuam a ser extremamente dinâmicas.
Você acha que oos vinhos do Novo Mundo já atingiram os padrões da Europa? Quais países estão mais avançados nesse sentido?
Sim, em alguns casos, superaram até o professor.