Você faz parte da Torcida Organizada dos Pais do WhatsApp?
Educar é complexo; os pais não são clientes da escola, como são de uma oficina mecânica, logo, não existe conserto para o processo de aprendizagem
Bússola
Publicado em 29 de agosto de 2021 às 09h00.
Última atualização em 29 de setembro de 2021 às 12h54.
Por Fernando Shayer*
Você já parou para pensar na diferença entre o trabalho do cirurgião e o do mecânico? Pense em algo sofisticado como, digamos, uma nave espacial. Ambos têm a missão de “consertar”: um, o cérebro ou o coração; o outro, o computador de bordo ou o motor. Alguns dizem que o ensinar também tem algo de consertar, de “dar um jeito” nos alunos. Ao responder, portanto, pense no trabalho dos professores. Você acha que ele é mais parecido com o do cirurgião ou com o do mecânico?
Nesses três casos, contam bastante formação técnica e experiência profissional. E todos têm muita responsabilidade. Ainda assim, será que a natureza do trabalho deles é igual?
Consertar uma máquina sofisticada é uma atividade complicada, porque ela exige uma série de atos difíceis e concatenados, mas que se forem executados com precisão, levarão sempre ao mesmo resultado, com desvios, ou defeitos, previsíveis. Já operar um cérebro é uma atividade complexa, porque mesmo que esses atos difíceis e concatenados sejam executados com o máximo de precisão, os resultados são muito menos previsíveis. Quantas vezes ouvimos médicos dizerem “fiz tudo de acordo com o protocolo, mas, ainda assim, deu errado”.
Assim como cuidar da saúde humana, diz-se em ciência da aprendizagem que educar é uma atividade complexa. Além do conhecimento técnico e experiência sobre pedagogia, as professoras enfrentam um desafio adicional: mesmo que usem a mesma receita para ensinar várias crianças, a aprendizagem de cada uma delas será única e muito imprevisível.
Sabe-se que os resultados da aprendizagem melhoram com a prática reiterada, mas não de acordo com a curva normal: eventos pouco frequentes podem causar grandes impactos, observado algo conhecido como a lei de potência. Ou seja, não há um efeito ou defeito típico na aprendizagem, como no caso do foguete. Cada aluno tem uma estrutura neural própria, que se reorganiza de maneira única para lidar com as informações que recebe do meio. Basta ver como a mesma bronca leva a comportamentos distintos entre seus filhos.
Além disso, a aprendizagem no ser humano é indissociável do seu estado emocional. Diferentemente do modelo tradicional de ensino, desenhado para que “aluno estudasse na escola e se sentisse em casa”, como se fosse uma máquina, hoje se sabe neuro-cientificamente que razão e emoção são parte de um processo mental que não pode ser cindido.
O professor, como o cirurgião, lida com um ser adaptativo complexo. Os resultados de aprendizagem dependem dos atributos e padrões do próprio aluno, em grande parte inconscientes, dos atributos e padrões do professor, também em grande parte inconscientes, e da qualidade da interação na sala de aula e no ambiente escolar. E por melhor que seja o esforço, eles não podem ser garantidos.
O mito do professor-robô (assim como do aluno-robô) não faz mais sentido neste século. Por mais profissional que seja, o professor necessariamente carrega suas emoções para dentro da sala de aula. Isso inclui tudo o que está vivendo no seu dia a dia, inclusive na relação com as famílias e com a coordenação da escola. A relação entre professor e aluno é ainda mais importante para o resultado final do que aquela entre o cirurgião e o paciente. O campo de atuação do professor é o da relação com o aluno. Cabe a ele liderar, sustentando as condições na sala de aula que permita ao aluno desenvolver padrões neurais (cognitivos e emocionais) apropriados para a aprendizagem. Para isso, o professor (como o cirurgião) deve estar suportado emocionalmente. Sistemicamente, a qualidade da interação entre escola e família influencia diretamente o professor e a aprendizagem do aluno.
É nesse contexto que eu te convido a pensar sobre o grupo de WhatsApp dos pais da escola dos seus filhos. Alguns dos grupos de que participei lembravam torcidas organizadas de futebol. Todos gritando ao mesmo tempo, xingando o técnico de burro e a mãe do juiz. Um fenômeno antropológico da revolução digital. Eram pessoas muito comprometidas e bem intencionadas que, em grupo, deixavam prevalecer a mesma hostilidade e polarização que vivemos em outras dimensões do país.
Por mais que os pais amem os filhos, por mais que queiram influenciar a escola para que eles tenham o melhor, e que tenham o direito de cobrar um serviço educacional de qualidade, eles não podem deixar de levar em conta a natureza complexa da educação de seus filhos, ao contribuir no grupo.
Os pais não são clientes da escola, como são da mecânica do carro, porque essas atividades são muito distintas. Por definição, não há uma resposta que seja a verdade na educação dos filhos, mas, sim, uma resposta verdadeira, justamente porque foi construída a partir do diálogo inclusivo entre escola e famílias, e da experiência pedagógica dos educadores. Cuidar dos nossos filhos é complexo demais para ser deixado nas mãos de mecânicos e, por isso, o papel dos pais na construção desse diálogo é fundamental.
*Fernando Shayeré co-fundador e CEO da Cloe, plataforma de aprendizagem ativa
** Este é um conteúdo da Bússola, parceria entre a FSB Comunicação e a Exame. O texto não reflete necessariamente a opinião da Exame.
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