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Proibição de jogar, há 80 anos, atrasou a história das mulheres no futebol

Não dá para comparar e fazer as mesmas exigências a um esporte que ficou proibido por quatro décadas; o futebol feminino deve construir sua própria história

Manchete do jornal "A Batalha", do  Rio de Janeiro, em 23 de junho de 1940 (Olga Bagatini/Divulgação)

Manchete do jornal "A Batalha", do Rio de Janeiro, em 23 de junho de 1940 (Olga Bagatini/Divulgação)

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Da Redação

Publicado em 18 de abril de 2021 às 10h30.

Na última quarta, 14, completaram-se 80 anos do decreto-lei que proibiu as mulheres de jogar “esportes incompatíveis com as condições de sua natureza”, como o futebol. Foram quatro décadas de banimento cujas consequências são sentidas até hoje, passando pelo atraso no desenvolvimento que provoca disparidades de tratamento, cobertura, salário e premiação, até o preconceito que impera no imaginário social e coloca o futebol como um espaço que não pertence às mulheres, sejam elas atletas, treinadoras, gestoras, torcedoras, árbitras ou jornalistas. 

Para entender como isso aconteceu, é preciso voltar ao contexto da proibição, em 1941. Em plena Ditadura do Estado Novo, o então presidente Getúlio Vargas baixou o decreto-lei 3.199 como resposta aos apelos de cidadãos que alegavam estar preocupados com os impactos de certas modalidades ao corpo feminino e seus órgãos reprodutivos. 

Como faltam registros oficiais de clubes, federações e da própria imprensa, é difícil precisar exatamente qual foi a primeira partida de mulheres no Brasil. Recentemente, graças ao trabalho de pesquisadores que se dedicam ao esporte, foi possível começar a preencher as lacunas das histórias das futebolistas. Por muito tempo, o primeiro jogo registrado datava de 1921, entre as “senhoritas dos bairros da Cantareira e do Tremembé”, em São Paulo.

Recentemente surgiram evidências de que as mulheres do Rio Grande do Norte já jogavam em 1920. É possível (e provável) que novos capítulos dessa história sejam desvendados, mas, pelo que sabemos, foi nos subúrbios do Rio de Janeiro que o futebol de mulheres chamou a atenção. Na década de 30, havia pelo menos 15 times femininos nos subúrbios cariocas, sendo Primavera Futebol Clube, Sport Club Brasileiro e Casino Realengo alguns dos mais prestigiados. 

Na época, o jornal Folha da Manhã chamou atenção para o movimento que descreveu como “sério, respeitável mesmo para a formação e criação de mais um ramo de atividade para as mulheres”. No entanto, aquele sucesso começou a incomodar. Onde já se viu a mulher ocupar um espaço historicamente destinado aos homens e ao culto da virilidade?

Em maio de 1940, a equipe do Primavera publicou um anúncio convocando moças de 15 a 25 anos para ingressarem no futebol – uma chamada pública para uma peneira. Foi a gota d’água para alguns moralistas que já viam com maus olhos o fortalecimento do futebol de mulheres, como um certo senhor José Fuzeira, “cidadão de bem” que escreveu uma carta aberta a Getúlio Vargas para alertar sobre a “calamidade prestes a desabar sobre a juventude feminina brasileira”, publicada no Diário da Noite em 7 de maio de 1940.

“Ao que dizem os jornais, no Rio já estão formados nada menos do que dez quadros femininos. Em São Paulo e em Belo Horizonte também já se estão constituindo outros. E, neste crescendo, dentro de um ano é provável que em todo o Brasil estejam organizados uns 200 clubes femininos de futebol, ou seja, 200 núcleos destroçadores da saúde de 2200 futuras mães que, além do mais, ficarão presas de uma mentalidade depressiva e propensa aos exibicionismos rudes e extravagante.”

amistoso no Pacaembu

Poucos dias depois, em 17 de maio de 1940, as equipes Casino Realengo e Brasileiro foram convidadas para disputar um amistoso no recém-inaugurado estádio do Pacaembu, que abriga o Museu do Futebol. Tal qual José Fuzeira, um colunista da Gazeta Esportiva classificou o episódio como “um verdadeiro atentado à educação física, ao esporte e mesmo à organização esportiva de São Paulo” e fez um apelo para as autoridades proibirem aquela “exibição cômica”. 

Apesar dos protestos, a partida foi mantida: Casino Realengo venceu por 2 a 0, e o jogo foi descrito como de “técnica apreciável” pelo jornal Correio Paulistano. Mas o sucesso incipiente foi proporcional à reprovação dos homens, e, menos de um ano depois, sob o respaldo de “autoridades médicas” que elencavam os malefícios da prática do futebol pelas mulheres, foi publicado o decreto-lei 3.199, que estabelecia a criação do Conselho Nacional de Desportos (CND) e dedicava o Artigo 54 a explicitar que não seria permitido às mulheres a prática de esportes incompatíveis com as condições da natureza feminina. 

Em 1965, durante a ditadura militar, o CND restringiu ainda mais a prática ao citar nominalmente os esportes proibidos: “lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo-aquático, rugby, halterofilismo e beisebol”. A deliberação foi revogada em 1979, mas o futebol feminino só foi regulamentado em 1983, quando voltaram a surgir grandes times, como o Radar, no Rio, e o Saad, em São Paulo. 

Muitas mulheres resistiram à proibição e deram seu jeito de seguir jogando, como mostrou o Museu do Futebol na exposição CONTRA-ATAQUE! As mulheres do futebol, em 2019. O próprio Pacaembu chegou a receber um jogo beneficente de mulheres em 1959, sob o pretexto de levantar verbas para a Casa do Ator – e o estádio lotou para ver a partida, diga-se de passagem. Mas aquele frisson inicial com o futebol de mulheres, a novidade que “causava sensação”, como descrevem os jornais da época, desapareceu. O desenvolvimento incipiente foi travado. E o legado são ideias preconceituosas que perduram até hoje, com argumentos como “futebol feminino é chato”, “não é pra mulher”, “lugar de mulher é na cozinha” – ou, como disse o presidente Jair Bolsonaro, “futebol feminino ainda não é uma realidade”.

a primeira Copa

Na década de 90, quando a FIFA decidiu criar a primeira edição da Copa do Mundo Feminina, e apesar da completa falta de estrutura e incentivo, o Brasil conquistou o quarto lugar na Olimpíada de Atlanta e de Sydney e a medalha de bronze na Copa do Mundo de 1999 e revelou craques como Sissi, Roseli e Kátia Cilene. Houve também o advento da Paulistana, popular torneio feminino que contava com patrocínio e transmissão na TV, projeto que tinha Luciano do Valle como um dos principais apoiadores. 

Deu certo por algum tempo. No entanto, o desenvolvimento esbarrou no machismo dos gestores esportivos (todos homens, claro), que além do completo descaso com os times femininos, a ponto de oferecer as sobras dos uniformes do masculino para elas e diárias risíveis para defender a seleção, também destilavam preconceito sobre sua aparência e sexualidade e tentavam encaixar as jogadoras dentro de um padrão de beleza imposto. Tanto é que estava impresso no regulamento do Campeonato Paulista de 2001: os critérios para os times escolherem as jogadoras que disputariam o campeonato deveriam ser “beleza e sensualidade”. “Mulher de cabelo raspado aqui não joga”, chegou a dizer o vice-presidente da Federação Paulista de Futebol, Renato Duprat, em entrevista à Folha de S.Paulo. 

Até recentemente não eram raros os comentários de dirigentes pregando “maquiagem” e “shorts mais curtos” como estratégias para fazer o futebol feminino ser mais atrativo ao público. 

Outro momento de franca expansão que vale ser citado ocorreu em 2007, quando o Brasil de Marta e companhia alcançou a final da Copa do Mundo e cuja decisão ficou marcada pelos cartazes “precisamos de apoio”, que as jogadoras levaram ao campo no momento de receber a medalha de prata após a derrota para a Alemanha. Ou também o efêmero destaque que as mulheres do futebol recebem quando o masculino vai mal, como no caso da Olimpíada do Rio em 2016, em que viralizou a imagem da camiseta riscada com o nome de Marta – mas foi só Neymar e seus companheiros reencontrarem o caminho da vitória para o futebol feminino cair no esquecimento outra vez. Apesar desses momentos com clima de “agora vai”, nunca foi fixada uma estrutura que guardasse alguma semelhança com a do masculino.

diversidade

De 2019 para cá, surgiram motivos para acreditar que esse novo boom do futebol feminino não será tão efêmero como foi no passado. Hoje vivemos quiçá o melhor momento da história do futebol feminino pela soma de dois elementos inéditos nas entidades responsáveis pela gestão do esporte: vontade política e planejamento estratégico para pensar um desenvolvimento e consolidação a longo prazo. A principal força motora (e fruto desses dois elementos) foi a diretriz global para o desenvolvimento do futebol feminino que a FIFA lançou em 2018 e acarretou, entre outras coisas, na regra de licenciamento da CBF e da CONMEBOL que obriga os clubes a manterem times femininos adultos e de base, fortalecendo as competições brasileiras.

Isso somou-se ao “hype da diversidade” que atrai marcas e patrocinadores para apoiarem causas; o surgimento da imprensa alternativa, como os blogs Dibradoras e Planeta Futebol Feminino, que cutucam a imprensa tradicional e produzem conteúdo de qualidade para uma audiência potente e engajada nas redes sociais (o tal “mundinho do futebol feminino”, como é carinhosamente chamado esse grupo de fãs no Twitter).

Também a realização, no Museu do Futebol, de duas exposições (2015 e 2019) e extensa programação cultural sobre o futebol de mulheres, que de certo modo também ajudou a pautar a grande imprensa e a contratação de pessoas com experiência, histórico e interesse na modalidade, como Aline Pellegrino e Duda Luizelli, para comandarem o futebol de mulheres e pensarem em alternativas, como a transmissão de jogos pelo Twitter. Os recordes de público vistos nessas transmissões chamaram a atenção das emissoras de TV, como a Bandeirantes e a Globo e houve perceptível m

udança editorial de algumas redações esportivas que passaram a se preocupar mais em diversificar seus quadros de jornalistas. Sem falar no fenômeno Copa do Mundo da França, que atingiu massas inéditas ao ser transmitida pela Rede Globo na televisão aberta pela primeira vez e ampliou consideravelmente o alcance, a popularidade e a fama das jogadoras.

De proibidas a marginalizadas a exaltadas, muita coisa mudou nesses 80 anos, mas a evolução também foi lenta e irregular. Por isso, neste momento de construir as bases do futebol de mulheres que queremos no futuro, é necessário 

Conhecer o passado para evitar repetir os erros – por exemplo, não permitir que os senhores José Fuzeira da nossa geração falem impropérios sobre o futebol feminino por aí. Não dá para comparar e fazer as mesmas exigências a um esporte que ficou proibido por quatro décadas. O futebol feminino deve – e tem total capacidade – de construir sua própria história e buscar suas próprias estrelas. Tudo que a gente pede é respeito. Deixa ela jogar, treinar, comandar, torcer, comentar, apitar e narrar!

*Olga Bagatini é jornalista e mestre em Jornalismo Esportivo Internacional pela St. Mary’s University London; passou pelas redações da Gazeta Esportiva, Diário LANCE! e UOL; e, desde 2020, integra a equipe de Comunicação do Museu do Futebol

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