Joaquim Levy: Haverá fôlego?
Os indicadores da economia melhoraram, mas o crescimento no segundo semestre de 2021 será moderado pela diminuição da renda real
Da Redação
Publicado em 12 de maio de 2021 às 21h29.
Última atualização em 12 de maio de 2021 às 21h53.
Por: Joaquim Levy
Nas últimas semanas, tem se disseminado uma visão mais benigna sobre a economia brasileira, apesar de certo temor difuso de que alguma surpresa a descarrilhe. As questões do orçamento 2021 parecem distantes, apesar do PLN 4/21 que ordenaria melhor o orçamento de 2021 ainda não ter sido votado, e da emergência de questões sobre a gestão orçamentária em 2020.
O relativo otimismo deriva também dos contornos da mudança dos fluxos cambiais, pressagiados pelo Banco Central no começo de abril, começarem a se mostrar inequívocos: o extraordinário aumento de preços da commodities deverá aumentar substancialmente o saldo comercial brasileiro em 2021; a saída dos investidores estrangeiros que caracterizou 2020 reverte-se; enquanto o pagamento de dívidas em divisas e a manutenção de receitas de exportação no exterior diminuem.
Assim, o câmbio se apreciou, a pressão sobre a inflação diminuiu e, com a divulgação de dados sobre a atividade econômica na virada de 2021, muitos analistas começaram a aumentar suas previsões para o PIB deste ano. É um cenário alentador, mas que talvez não esteja dando devido peso às consequências dos choques na economia advindos do aumento da inflação na esteira da injeção fiscal de 2020, de alguns episódios durante a quaresma que semearam dúvidas sobre as prioridades econômicas do governo, e da necessidade de se restringir a mobilidade e o comércio desde março, diante da disparada do número de casos de covid-19 e das mortes a eles associados.
Esses choques infelizmente dissiparam parte do impulso obtido com a despesa de mais de R$ 0,5 trilhão pelo governo em 2020.
Os relatórios do Banco Safra têm sublinhado que os reajustes de parte dos salários do setor privado têm se dado abaixo da inflação. Além disso, os salários dos servidores públicos foram congelados, representando cerca de 0,5 % do PIB a menos de poder de compra, já que a massa salarial federal foi de R$ 320 bilhões em 2020 e a do funcionalismo como um todo representou mais de 10% do PIB.
O atraso na recuperação do mercado de trabalho informal também afeta uma parcela importante da população, cuja renda não é muito grande, mas que é propensa a consumir praticamente toda a renda de que dispõe. Também temos observado o quanto o crédito já se expandiu no ano passado, e que o aumento de juros tende a elevar as prestações, dificultando um maior endividamento.
Meu colega Eduardo Yuki (Economista Sênior do Safra desde o mês passado) tem aprofundado essa análise da renda disponível das famílias. Nossa expectativa de recuperação gradual do mercado de trabalho implica em expansão da massa salarial nominal ao longo do ano. O problema é que, ao incluir nessas contas o menor montante do auxílio emergencial e o forte aumento dos preços ao consumidor, o poder de compra real das famílias diminuirá em quase 5% em relação a 2020.
Isso exigirá que as famílias poupem bem menos neste ano para manterem o nível de consumo. Essa tendência deve persistir no próximo ano, quando a redução do estoque de poupança será indispensável para a manutenção do consumo das famílias e da demanda agregada.
Um fôlego menor, em parte por conta das altas de preços na virada de 2021 e de choques mais recentes como o das tarifas de eletricidade, deverá limitar o ritmo da recuperação da atividade e do emprego no segundo semestre — mesmo com as boas notícias do controle da pandemia e da possibilidade de abertura plena da economia brasileira, e não considerando restrições no suprimento de eletricidade.
A melhora da balança comercial não deverá alterar muito o crescimento do PIB em 2021, já que ela tem sido ditada principalmente pelo aumento do preço das commodities e não pelo aumento do volume exportado. A contribuição do setor externo ao PIB será neutra, apesar do crescimento de 8% na produção de soja, de 10% no volume projetado de minério, e da resposta positiva de alguns setores industriais a dois anos de desvalorização cambial (o volume de venda de veículos e de outros bens manufaturados tem crescido), até pelo aumento esperado da importação.
Os investimentos deverão crescer, mas com parcimônia, apesar dos bons sinais dados pelo sucesso de vários leilões de concessão de infraestrutura recentemente. Os investimentos em transportes ou saneamento deles decorrentes devem ser mais importantes para 2022-23 do que para 2021.
Há muitas empresas com caixa e investindo, mas há um número significativo principalmente adquirindo rivais enfraquecidas. As dúvidas sobre 2022, apesar do espaço orçamentário proporcionado pelo descompasso do ajuste do Teto de Gastos da União, devem limitar o apetite pelo investimento. Essa dinâmica se reflete, aliás, no comportamento da conta corrente do balanço de pagamentos, que não apresenta perspectiva de déficit em 21 ou 22, indicando um investimento tíbio em relação à poupança nacional.
Com a persistência do desemprego, é provável que a inflação amaine nos próximos meses, especialmente se o câmbio se mantiver próximo ou abaixo de R$ 5,20/US$. Esse quadro é compatível com a “normalização parcial” da política monetária propugnada pelo Banco Central e tem sido refletido em uma inflação de serviços bem mais baixa do que aquela de produtos afetados pelo comércio exterior. Mas, salvo no caso de nova injeção significativa de recursos públicos, o nível de atividade será moderado na segunda metade de 2021, assim progredindo em 2022, e indicando um prazo relativamente dilatado para o fechamento do hiato do produto.
Esse quadro de crescimento modesto em 2021-22 não condena a economia brasileira e provavelmente não se resolve com mais expansão fiscal. A chave para a retomada da economia está no investimento. Isso depende, é claro, da perspectiva de renda da população. Mas não apenas disso.
Uma reforma tributária, ainda que “fatiada”, pode ter grande impacto positivo sobre as empresas no Brasil. A reforma do PIS-Cofins criando o “crédito financeiro” a partir do destaque do tributo na nota fiscal dos bens e serviços adquiridos pelas empresas simplificará as atividades do setor produtivo e diminuirá os litígios. Essa mudança não precisa ser implementada imediatamente para ter efeito positivo sobre as empresas.
Uma reforma aprovada agora, mesmo que começando a valer em 2023 e inicialmente com mais de uma alíquota, já estabeleceria uma nova regra para o jogo, dando tempo para as empresas se prepararem e os diversos setores se acomodarem uma convergência gradual de todas as alíquotas para um valor único.
A convergência para uma alíquota única irá melhorar muito a alocação de capital no Brasil — e, portanto, sua produtividade, também estimulando o investimento. Com essa reforma em andamento, aquela também indispensável do ICMS e do ISS se torna mais fácil e menos arriscada.
Em suma, apesar da relativa bonança que vivemos nas últimas semanas, parece ainda difícil projetar um crescimento do PIB muito acima de 3,3% em 2021. O Brasil deve atravessar um ciclo de menor demanda interna no segundo semestre, em função da queda recente da renda real das famílias e do impacto limitado da melhora da balança comercial sobre a atividade ou a demanda doméstica.
Essa dinâmica e a recuperação mais lenta do mercado de trabalho deverão favorecer a cautela na normalização da política monetária — permitindo também guardar munição para enfrentar possíveis turbulências nos mercados financeiros globais na esteira de eventuais anúncios do FED ainda em 2021.
A grande escolha se dará, assim, entre priorizar reformas como a simplificação dos impostos indiretos, ou focar em novas despesas públicas que podem vir a adquirir caráter obrigatório e cujos efeitos positivos sobre a expectativa de investimentos possam ser tênues e passageiros. Quem sabe esse seja, aliás, o risco fiscal sempre aludido na comunicação do Banco Central.
Texto publicado originalmente no siteO Especialista
*Joaquim Levyé engenheiro naval pela UFRJ, com mestrado em economia pela FGV e doutorado em economia pela Universidade de Chicago. É diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercados no Banco Safra. Entre outros cargos, integrou o FMI, foi secretário-adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda; Economista-Chefe do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e secretário do Tesouro Nacional. Foi vice-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, secretário de Fazenda do Rio de Janeiro, diretor do Banco Mundial e presidente do BNDES.
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