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Da Rio-92 à Rio+30: a jornada das cidades na defesa do clima

A corrida para a defesa do meio ambiente já dura décadas, e ainda estamos longe da linha de chegada

Sustentabilidade: Ainda há muita coisa que queremos para o futuro (Roman Synkevych/Divulgação)

Sustentabilidade: Ainda há muita coisa que queremos para o futuro (Roman Synkevych/Divulgação)

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Publicado em 7 de julho de 2022 às 16h34.

Última atualização em 7 de julho de 2022 às 18h04.

Por Rafael Lisbôa*

Era junho de 1992. Eu tinha 11 anos e era apenas um estudante da quinta série primária (o equivalente hoje ao sexto ano do ensino fundamental), mas lembro-me bem daqueles dias intensos no Rio de Janeiro, que recebia gente de todos os lugares, voltara a ser temporariamente a capital do Brasil e parecia haver se tornado o centro do planeta. Dessas minhas memórias de garoto, recordo nitidamente das imagens dos militares reforçando a segurança nas esquinas cariocas; da mistura de sotaques estrangeiros entreouvidos por todo o canto e principalmente no Riocentro e no Parque do Flamengo; e de uma pergunta que se repetia, de forma quase onipresente, nas discussões oficiais e extraoficiais do evento, no noticiário e mesmo nas conversas informais do dia a dia — “o que queremos para o nosso futuro?”.

Há 30 anos, entre os dias 3 e 14 de junho, a cidade do Rio recebeu a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como a Rio-92, um marco no debate global sobre o clima e o uso sustentável dos recursos naturais. Três décadas depois, enfrentar a emergência climática se tornou questão prioritária e fundamental não apenas para respondermos à pergunta sobre como será o futuro, mas para saber se haverá mesmo algum futuro para a humanidade. De lá para cá, um grupo de atores, em especial, tem ganhado relevância na governança global do clima: as redes internacionais de cidades, que têm se articulado para desenvolver, implementar e compartilhar políticas públicas sustentáveis ao redor do planeta. Os prefeitos de todo o mundo, pragmáticos como são, têm se unido em busca de soluções comuns para a defesa do meio ambiente.

A paradiplomacia verde desenvolvida por alianças de cidades vem conquistando força e importância desde o fim do século passado e o início deste novo, com o surgimento de organizações que reúnem centenas de governos locais de diferentes cantos do globo em torno da agenda ambiental, como a Rede C40 de Grandes Cidades para Liderança Climática (C40), Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU) e Governos Locais pela Sustentabilidade (ICLEI). Quando se analisam as edições anuais da COP (a Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), as cúpulas globais do clima que se realizam anualmente a partir do tratado estabelecido pelas nações na Rio-92 para controlar as emissões de gases de efeito estufa na atmosfera, é possível perceber o papel crescente que as cidades vêm adquirindo nesses fóruns internacionais, organizados originalmente por países e para países, com a apresentação de metas de descarbonização muitas vezes mais ousadas do que os compromissos assumidos pelos governos nacionais.

Estocolmo 1972

A primeira conferência internacional da ONU sobre o meio ambiente completa 50 anos em 2022. Diante da percepção de que os danos causados ao ecossistema pelo desenvolvimento industrial e consumo desenfreados tinham chegado a níveis preocupantes, o encontro realizado em Estocolmo em 1972, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, apontou para a necessidade de um modelo mais responsável de gerenciamento dos recursos naturais. A partir daí, teve origem o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), e, 11 anos depois, foi criada a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que inaugurou o termo “desenvolvimento sustentável” para defender um novo padrão de crescimento econômico adequado à proteção ambiental e alertou para a necessidade de novos pactos de cooperação internacional.

Rio-92

As duas décadas de trabalho iniciadas em Estocolmo culminaram na Rio-92, ou “Cúpula da Terra”, como também ficou conhecida a Conferência das Nações Unidades sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro, que reuniu de maneira inédita mais de uma centena de chefes de Estado no Riocentro, além de quase 1,8 mil ONGs e uma variedade de ambientalistas que organizaram de forma paralela o Fórum Global no Parque do Flamengo. A participação efetiva da sociedade civil, que esteve à frente de uma série de eventos simultâneos à reunião intergovernamental, deixou claro que o debate climático não se restringiria à atuação estatal, mas mobilizaria esforços de outros atores, dentro de uma abordagem supranacional e cosmopolita que requer a defesa do planeta.

Do encontro de 1992 resultaram importantes documentos: duas convenções foram aprovadas — uma sobre Biodiversidade e outra sobre Mudanças Climáticas — e foi assinada a Agenda 21 — plano de ações, sem a força de um tratado, com metas que viabilizassem um novo padrão de desenvolvimento socioeconômico com respeito ao meio ambiente e levassem à melhoria das condições do planeta que caminhava para o novo século. O aprofundamento da Convenção sobre Mudanças Climáticas levou à elaboração do Protocolo de Kyoto, em 1997, que estabeleceu metas mais rígidas e prazos objetivos para a redução de emissões de gases do efeito estufa, em especial o CO2.

Ainda que já tivesse ficado evidente que a implementação de uma agenda ambiental capaz de guiar a humanidade para um futuro sustentável não se limitaria à ação exclusiva dos governos nacionais, mas dependeria de um comprometimento global que envolvesse outros players, como organismos multilaterais, organizações da sociedade civil, representantes da academia, setores da iniciativa privada e os demais níveis governamentais, a atuação dos governos locais na governança do clima ainda era, nesses primeiros 25 anos que sucederam Estocolmo 1972, mais lateral e menos expressiva. Mas, com a organização das cidades em redes internacionais pela sustentabilidade, o desempenho desses atores subnacionais foi se tornando cada vez mais estratégico na luta contra as mudanças climáticas.

Rio+20

Em 2012, 20 anos depois da Rio-92, chefes de Estado voltaram a se reunir no Rio de Janeiro para a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. A Rio+20 atraiu representantes de quase 190 países para debater a renovação de um compromisso efetivo e global com a defesa do meio ambiente e o uso sustentável dos recursos naturais. A grande expectativa em relação à cúpula no Rio era a definição dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: metas a serem perseguidas por todos os países — desenvolvidos e em desenvolvimento — para avançar ambiental, econômica e socialmente, substituindo os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, instituídos em 2000 e com validade até 2015.

Diante do impasse entre os países, não se chegou a um acordo concreto em relação às metas e o vago documento aprovado na Rio+20 adiou o estabelecimento de objetivos globais sobre o desenvolvimento sustentável para 2015. Se as nações transferiram para depois a definição das metas globais de desenvolvimento sustentável, as cidades da C40, que também se reuniram no Rio de Janeiro na mesma época, assinaram um compromisso com metas coletivas e individuais de redução de gases do efeito estufa em 400 milhões de toneladas até 2020 e 1 bilhão de toneladas até 2030.

COP21

Em dezembro de 2015, representantes de 195 países participaram na capital francesa da COP21, a 21ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, que terminou com um novo acordo global que estabeleceu que o aumento da temperatura do planeta deveria ficar abaixo de 2 ºC até 2100, tendo como referência os níveis pré-Revolução Industrial, esforçando-se inclusive para limitar o aquecimento a 1,5 ºC. O Acordo de Paris foi celebrado por autoridades, cientistas e ONGs por exigir pela primeira vez de todas as nações (incluindo países ricos e pobres) a adoção de medidas de combate ao aquecimento global. Apesar de prever que cada país tivesse suas metas de redução de emissão de gases do efeito estufa, as chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), elas ainda precisariam ser definidas e somente passariam a vigorar a partir da COP26.

É importante destacar que, mesmo antes das nações chegarem a um consenso na COP21 (sem deixar claro à época, contudo, como seria possível atingir a meta), um grupo de mais de 400 cidades já havia apresentado uma semana antes ao então Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, o compromisso de reduzir as emissões de dióxido de carbono (CO2) em quase 4 bilhões de toneladas até 2030. Essa e outras metas bastante objetivas fizeram parte da Declaração de Paris, documento resultante da Cúpula das Cidades pelo Clima, evento paralelo à COP21 que reuniu na prefeitura de Paris governantes locais de todos os continentes e as principais associações internacionais de prefeitos. Essas centenas de cidades garantiram no mesmo documento que até 2050 trabalhariam 100% com energia renovável.

COP26

Desde a COP21, em 2015, quando foi assinado o Acordo de Paris, havia muito expectativa sobre a COP26, tida como estratégica, um ponto de inflexão no combate global às mudanças climáticas. A 26ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, realizada na cidade escocesa de Glasgow, reuniu representantes de quase 200 nações, ambientalistas, grupos da sociedade civil, organizações não governamentais, empresas e governos locais. O encontro terminou com algumas conquistas importantes e várias lacunas que precisam ser preenchidas com urgência para manter o aumento da temperatura da Terra no limite de 1,5 ºC, fundamental para evitar catástrofes climáticas.

O Pacto de Glasgow regulamentou as cláusulas pendentes do Acordo de Paris. Entre elas, o artigo 6º, que cria o mercado de carbono global, certamente um dos êxitos da COP26. Foram definidas as regras para comércio de créditos de carbono entre países e entre empresas, um passo fundamental na transição para a economia de baixo carbono e redução das emissões. O texto também incluiu uma novidade histórica: foi o primeiro documento de uma COP a prever a redução gradativa dos subsídios aos combustíveis fósseis e do uso do carvão, considerados os principais vilões do aquecimento global. Outros marcos importantes da COP26 se referem à Declaração de Florestas, assinada por 124 países para zerar e reverter o desmatamento no mundo até 2030, e ao Compromisso Global do Metano, esforço de mais de 100 países para reduzir em 30% as emissões de metano também até 2030.

Apesar dos avanços, ainda são muitos os desafios que ficaram pendentes da Conferência do Clima de Glasgow. O principal deles é transformar a intenção, prevista nos acordos, em ação efetiva e prática no combate às mudanças climáticas. E, ainda que os países cumpram as suas metas de emissões — as Contribuições Nacionalmente Determinadas — apresentadas na COP26, o aquecimento do planeta deve chegar a 2,4 ºC até o fim do século, bem acima do 1,5 ºC, patamar considerado seguro pelos cientistas. Por isso mesmo, o Pacto Climático de Glasgow estipulou que até fim de 2022 todas as nações devem revisitar e fortalecer suas NDCs até 2030.

Se os países são cobrados a apresentar compromissos menos vagos e mais ambiciosos, as cidades saíram na frente mais uma vez e foram responsáveis por algumas das metas mais ousadas na COP26. Num acordo sem precedentes, mais de mil prefeituras aderiram à campanha Cities Race to Zero e se comprometeram em reduzir pela metade suas emissões de gases de efeito estufa até o fim desta década e alcançar a neutralidade até 2050. A estimativa é que esse pacto das cidades, onde vivem mais de 722 milhões de pessoas, tenha potencial de reduzir as emissões globais em pelo menos 1,4 gigatonelada por ano até 2030. A coalizão foi orquestrada por redes internacionais de governos locais contra as mudanças climáticas, como C40, ICLEI e CGLU.

Rio+30 cidades

Em 2022, o Rio de Janeiro se prepara novamente para sediar uma importante conferência internacional do clima, celebrando os trinta anos do legado da Rio-92, que marcou de maneira pioneira o debate ambiental. Mas, diferentemente de 1992 e 2012, o encontro desta vez está sendo organizado por cidades e para cidades. São elas as protagonistas. Prefeitos do mundo todo se reunirão na Rio+30 cidades para debater o papel estratégico dos governos subnacionais na formulação e implementação de políticas públicas contra as mudanças climáticas. Os bem-sucedidos acordos costurados por redes internacionais de cidades na Rio+20, COP21 e COP26, para a redução de emissões de gases do efeito estufa, são exemplos de como esse desafio global pode ser trabalhado por meio de alianças locais.

Os prefeitos representam o poder institucional que melhor conhece as necessidades dos cidadãos porque as pessoas vivem em cidades e não em estados ou países. Como os eventos climáticos — tempestades mais severas, longos períodos de seca, invernos mais rigorosos, etc. — têm afetado cada vez mais a população, os governantes locais não podem esperar por acordos internacionais negociados pela diplomacia estatal que parecem nunca sair do papel. Para enfrentar as consequências das alterações do clima que já são sentidas pelos cidadãos — por exemplo, alagamentos, deslizamentos, desertificação —, prefeitos têm-se associado uns aos outros para compartilhar experiências e fazer parcerias pragmáticas, em áreas como mobilidade, tratamento de resíduos, gerenciamento responsável de recursos naturais, entre outras.

A organização da Rio+30 espera, então, reunir lideranças de mais de mil cidades de todo o globo no evento, que será realizado nos dias 17, 18 e 19 de outubro. A urgência e praticidade com que os governantes locais do mundo todo têm lidado com as questões climáticas darão a tônica da Carta do Rio, documento resultante da conferência e que pretende servir de marco para a atuação das cidades no processo de descarbonização global.

Trinta anos depois, aquele menino que se encantava com a babel que havia se tornado o Rio em 1992, sem ter a real dimensão de tudo o que estava em jogo naquela simbólica Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, também não é mais o mesmo. De lá para cá, eu me formei jornalista, especializei-me na cobertura de questões urbanas e políticas públicas, coordenei a comunicação da cidade do Rio de Janeiro entre 2009 e 2016 — incluindo período em que o prefeito Eduardo Paes presidiu a Rede C40, do início de 2014 ao fim de 2016 — e pude testemunhar a importância cada vez mais evidente da participação dos governos locais no debate global do clima, com destaque para a Rio+20 e a COP21, eventos em que estive presente e com os quais me envolvi.

Da experiência profissional a objeto de pesquisa: o desempenho das redes internacionais de cidades no combate à emergência climática virou tema dos meus estudos acadêmicos. A comparação entre os resultados obtidos pela diplomacia estatal e pela paradiplomacia na questão ambiental primeiramente guiou as minhas análises no curso de MBA em Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas, concluído em 2016. Agora retomo o assunto no projeto de dissertação que desenvolvo, desde 2021, no curso de Mestrado Acadêmico em História, Política e Bens Culturais da Escola de Ciências Sociais (CPDOC) da FGV. E, para minha honra, o garoto de 11 anos que se deslumbrou com a Rio-92 acaba de ser convidado para ser um dos embaixadores da Rio+30 cidades e ajudar a responder àquela pergunta ouvida pela primeira vez três décadas atrás — “o que queremos para o nosso futuro?”.

*Rafael Lisbôa é jornalista, diretor da Bússola, pesquisador acadêmico sobre o papel internacional das cidades na questão climática e embaixador da Rio+30 cidades.

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