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“O dono do morro é o presidente da favela”, diz escritor

Misha Glenny, autor do livro "O Dono do Morro: Um Homem e a Batalha pelo Rio", encontrou na história de um traficante uma narrativa sobre os brasileiros

Escritor: Misha Glenny, autor do livro "O Dono do Morro: Um Homem e a Batalha pelo Rio", encontrou na história de um traficante uma narrativa sobre os brasileiros (Tomaz Silva/Agência Brasil)
DR

Da Redação

Publicado em 30 de junho de 2016 às 14h51.

Rio de Janeiro - O jornalista britânico Misha Glenny estava no Brasil em 2011, quando o traficante Nem, chefe do crime organizado na Rocinha, foi preso .

O assunto ganhou destaque no noticiário e chamou a atenção do autor, que estava à procura de um assunto que contasse a complexidade do Brasil e quebrasse os estereótipos sobre o país.

Esse interesse fez nascer o livro O Dono do Morro: Um Homem e a Batalha pelo Rio, da editora Companhia das Letras.

"Nos dias seguintes, eu lia tudo sobre o Nem da Rocinha nos jornais. Assisti à televisão e fiquei impressionado que a metade do Rio acreditava que o Nem foi um demônio e a outra metade considerava ele um herói. Como um tipo de Robin Hood", conta ele, que é um dos autores convidados da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e participa de uma mesa com o jornalista brasileiro Caco Barcellos na tarde de hoje (30).

"As favelas e as quadrilhas têm um impacto tão grande na vida dos moradores, mas essa história muito importante é normalmente uma história não escrita. Quero contribuir para contar os acontecimentos no Rio que somente poucas pessoas sabem."

Em 28 horas de conversas com Nem no presídio e de entrevistas com aliados, inimigos e familiares do traficante, Misha conta o que entendeu do personagem e de como o crime organizado controla as favelas do Rio de Janeiro.

O britânico morou por dois anos na Rocinha, aprendeu português e contou com a ajuda de jornalistas brasileiros no levantamento das informações.

"O dono do morro não é só o chefe do tráfico, ele é de fato o presidente da favela onde mora. Esse foi o caso com o Nem da Rocinha. Os três instrumentos de controle são primeiro o monopólio da violência, segundo, o apoio da comunidade, e terceiro, a corrupção da polícia", descreve ele, que encontrou em Nem um "dono do morro" com características peculiares, como ter entrado para a facção criminosa apenas aos 24 anos, quando já tinha experiência profissional em coordenar uma equipe de entrega de revistas no morro.

"O Nem percebeu que se a taxa de homicídios e a violência caíssem, os lucros do negócio subiriam". Isso fez com que a Rocinha passasse a ser encarada pelos consumidores de drogas como "um lugar seguro para comprar".

"O dono do morro [o traficante Lulu] reconheceu seu talento bem rápido, e é por isso que ele ascendeu muito rapidamente."

Misha Glenny conta que a chegada de Nem ao tráfico foi motivada pela necessidade de custear o tratamento médico de sua filha, que havia sido diagnosticada com uma doença rara ainda bebê.

"Para mim, ele foi um símbolo da desigualdade da sociedade brasileira e da sociedade carioca. E de como é uma sociedade bem dividida."

Tráfico internacional

De sua pesquisa, o jornalista britânico destaca que, em 1982, a taxa de homicídios no Rio de Janeiro era a mesma da cidade de Nova York. Sete anos depois, no entanto, o índice já havia triplicado, enquanto a cidade americana mantinha o patamar.

O jornalista considera essa a estatística mais importante do livro, por mostrar, segundo ele, como o tráfico internacional de cocaína da Colômbia para a Europa fez crescer a violência no Brasil.

"Cada vez que um país se torna o trânsito principal da droga, ele desenvolve o hábito no nível local. Isso aconteceu no Brasil e especialmente no Rio de Janeiro", acrescentou.

Para o autor, a capital fluminense, porém, não está na rota das grandes movimentações de drogas, que são controladas pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).

O grupo atua em, ao menos, 14 estados. A cidade, entretanto, tem um tráfico mais visível, por suas características geográficas terem formado grupos rivais que precisam de forte armamento para se defender uns dos outros e da polícia.

"No Rio, essa geografia levou ao desenvolvimento de diferentes grupos."

O autor considera que a legalização do uso da maconha seria um avanço, mas não teria grande impacto no poder dos traficantes, que têm a cocaína como sua principal fonte de lucro.

"Eles comercializam maconha, mas dizem que maconha é um pé no saco. Que pesa muito, não é lucrativo e fede."

UPPs

Entre os entrevistados para o livro de Glenny está o secretário de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame.

O jornalista avalia que o trabalho das unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) foi um experimento corajoso e ousado, mas que a falta de apoio na retaguarda de políticas sociais o prejudicou.

"O caso Amarildo quase derrubou a UPP, e isso mostra como foi frágil a UPP, especialmente agora, porque a crise no Brasil está tendo um impacto muito ruim no sistema de segurança da UPP. Está colapsando na Rocinha, no Alemão e em outras favelas", destacou.

Olimpíada

Na avaliação dele, a segurança pública na cidade não deve ter grandes alterações até os Jogos Olímpicos e Paralímpicos, mas pode piorar depois.

"Tenho medo que a situação depois dos Jogos Olímpicos estará muito pior, não somente no morro, mas no asfalto também. O morro e o asfalto, embora sejam muito separados, são intrinsecamente ligados, socialmente, economicamente e politicamente, mesmo que as pessoas não percebam."

A Festa Literária de Paraty homenageia este ano a poetiza carioca Ana Cristina Cesar e reúne, até domingo (3), artistas, escritores e cineastas no litoral fluminense.

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Rio de Janeiro - O jornalista britânico Misha Glenny estava no Brasil em 2011, quando o traficante Nem, chefe do crime organizado na Rocinha, foi preso .

O assunto ganhou destaque no noticiário e chamou a atenção do autor, que estava à procura de um assunto que contasse a complexidade do Brasil e quebrasse os estereótipos sobre o país.

Esse interesse fez nascer o livro O Dono do Morro: Um Homem e a Batalha pelo Rio, da editora Companhia das Letras.

"Nos dias seguintes, eu lia tudo sobre o Nem da Rocinha nos jornais. Assisti à televisão e fiquei impressionado que a metade do Rio acreditava que o Nem foi um demônio e a outra metade considerava ele um herói. Como um tipo de Robin Hood", conta ele, que é um dos autores convidados da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e participa de uma mesa com o jornalista brasileiro Caco Barcellos na tarde de hoje (30).

"As favelas e as quadrilhas têm um impacto tão grande na vida dos moradores, mas essa história muito importante é normalmente uma história não escrita. Quero contribuir para contar os acontecimentos no Rio que somente poucas pessoas sabem."

Em 28 horas de conversas com Nem no presídio e de entrevistas com aliados, inimigos e familiares do traficante, Misha conta o que entendeu do personagem e de como o crime organizado controla as favelas do Rio de Janeiro.

O britânico morou por dois anos na Rocinha, aprendeu português e contou com a ajuda de jornalistas brasileiros no levantamento das informações.

"O dono do morro não é só o chefe do tráfico, ele é de fato o presidente da favela onde mora. Esse foi o caso com o Nem da Rocinha. Os três instrumentos de controle são primeiro o monopólio da violência, segundo, o apoio da comunidade, e terceiro, a corrupção da polícia", descreve ele, que encontrou em Nem um "dono do morro" com características peculiares, como ter entrado para a facção criminosa apenas aos 24 anos, quando já tinha experiência profissional em coordenar uma equipe de entrega de revistas no morro.

"O Nem percebeu que se a taxa de homicídios e a violência caíssem, os lucros do negócio subiriam". Isso fez com que a Rocinha passasse a ser encarada pelos consumidores de drogas como "um lugar seguro para comprar".

"O dono do morro [o traficante Lulu] reconheceu seu talento bem rápido, e é por isso que ele ascendeu muito rapidamente."

Misha Glenny conta que a chegada de Nem ao tráfico foi motivada pela necessidade de custear o tratamento médico de sua filha, que havia sido diagnosticada com uma doença rara ainda bebê.

"Para mim, ele foi um símbolo da desigualdade da sociedade brasileira e da sociedade carioca. E de como é uma sociedade bem dividida."

Tráfico internacional

De sua pesquisa, o jornalista britânico destaca que, em 1982, a taxa de homicídios no Rio de Janeiro era a mesma da cidade de Nova York. Sete anos depois, no entanto, o índice já havia triplicado, enquanto a cidade americana mantinha o patamar.

O jornalista considera essa a estatística mais importante do livro, por mostrar, segundo ele, como o tráfico internacional de cocaína da Colômbia para a Europa fez crescer a violência no Brasil.

"Cada vez que um país se torna o trânsito principal da droga, ele desenvolve o hábito no nível local. Isso aconteceu no Brasil e especialmente no Rio de Janeiro", acrescentou.

Para o autor, a capital fluminense, porém, não está na rota das grandes movimentações de drogas, que são controladas pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).

O grupo atua em, ao menos, 14 estados. A cidade, entretanto, tem um tráfico mais visível, por suas características geográficas terem formado grupos rivais que precisam de forte armamento para se defender uns dos outros e da polícia.

"No Rio, essa geografia levou ao desenvolvimento de diferentes grupos."

O autor considera que a legalização do uso da maconha seria um avanço, mas não teria grande impacto no poder dos traficantes, que têm a cocaína como sua principal fonte de lucro.

"Eles comercializam maconha, mas dizem que maconha é um pé no saco. Que pesa muito, não é lucrativo e fede."

UPPs

Entre os entrevistados para o livro de Glenny está o secretário de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame.

O jornalista avalia que o trabalho das unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) foi um experimento corajoso e ousado, mas que a falta de apoio na retaguarda de políticas sociais o prejudicou.

"O caso Amarildo quase derrubou a UPP, e isso mostra como foi frágil a UPP, especialmente agora, porque a crise no Brasil está tendo um impacto muito ruim no sistema de segurança da UPP. Está colapsando na Rocinha, no Alemão e em outras favelas", destacou.

Olimpíada

Na avaliação dele, a segurança pública na cidade não deve ter grandes alterações até os Jogos Olímpicos e Paralímpicos, mas pode piorar depois.

"Tenho medo que a situação depois dos Jogos Olímpicos estará muito pior, não somente no morro, mas no asfalto também. O morro e o asfalto, embora sejam muito separados, são intrinsecamente ligados, socialmente, economicamente e politicamente, mesmo que as pessoas não percebam."

A Festa Literária de Paraty homenageia este ano a poetiza carioca Ana Cristina Cesar e reúne, até domingo (3), artistas, escritores e cineastas no litoral fluminense.

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