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No centro do alvo, as delações

Lava-Jato defende que o dispositivo é o principal responsável pelo avançado das investigações; críticos dizem que é o único recurso de prova das condenações

O PROCURADOR DELTAN DALLAGNOL: o famigerado gráfico das bolinhas jogou luz sobre os métodos da investigação  / Marcelo Camargo/ Agência Brasil

O PROCURADOR DELTAN DALLAGNOL: o famigerado gráfico das bolinhas jogou luz sobre os métodos da investigação / Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Raphael Martins

Raphael Martins

Publicado em 17 de setembro de 2016 às 08h29.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h42.

O famigerado slide das bolinhas, apresentado na quarta-feira pela força-tarefa da Lava-Jato, já entrou para os anais da maior operação de caça à corrupção da história do país. Além de apresentar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como o “comandante máximo” do esquema de corrupção da Petrobras, o Power Point serviu para relembrar uma faceta decisiva das investigações: o uso das delações premiadas.

As denúncias ainda precisam ser apuradas. Mas a narrativa de responsabilidade de Lula no esquema foi amarrada com base nos depoimentos de três dos “colaboradores”, que, em linhas gerais, dizem que Lula era o responsável pela escolha de diretores da Petrobras que negociaram repasses a políticos por contratos bilionários. Foram citados depoimentos de Fernando Schahin, herdeiro do grupo Schahin, do ex-senador Delcídio do Amaral e do mais recente aderido ao pacote de 70 delatores, o ex-deputado federal Pedro Corrêa, do PP.

O episódio de Lula escancara apenas uma das polêmicas que gera desconforto no uso do dispositivo aos juristas brasileiros. À primeira vista, além da falta de traquejo com o Power Point, as denúncias deixaram a impressão de que faltavam provas mais concretas. Segundo juristas consultados por EXAME Hoje, as supostas lacunas podem ser usadas para costurar a denúncia contra Lula, mas o caso requer cuidado. Antes de afirmar que Lula é culpado, os depoimentos precisam ser chancelados com as tais “provas cabais” ao longo da instrução — momento do processo em que Moro reúne provas e ouve testemunhas.

A colaboração premiada é um dispositivo que representa uma “evolução” da lei 8.072/90, que previa redução de pena a criminosos que delatassem parceiros em crimes hediondos. Foi introduzida a atualização como forma de obtenção de prova contra organizações criminosas em 2013, em formato que conhecemos hoje. O texto passou a fazer parte da legislação brasileira pela lei 12.850/2013, que combate delitos das quadrilhas. Delações não são provas. São meios de chegar a elas.

A força-tarefa defende que o dispositivo é o principal responsável pelo avançado estágio de solução do esquema montado na Petrobras. Só através dela foi possível recuperar 3,6 bilhões de reais desviados, seja em bens bloqueados de réus ou objetos de repatriação. “No caso da Lava-Jato, as colaborações foram o motor que promoveram a operação. Ninguém queria ser o segundo Marcos Valério. Foi o porquê conseguimos expandir tão rápido e conseguimos bons resultados”, disse Deltan Dallagnol em entrevista a EXAME em janeiro. Nada menos que 233 pessoas foram acusadas e, até o momento, foram 21 sentenciados por crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha.

É consenso que a colaboração é um avanço nunca antes visto para investigar crimes de corrupção, que seriam de difícil descoberta sem que um dos autores revelasse o funcionamento do esquema. Nesses modelos de crime, a delação se provou eficaz pelo caráter de corrosão da estrutura criminal por dentro, revelando os meandros de esquemas. Para juristas, é também uma alternativa eficaz à cooperação internacional na recuperação de valores, por exemplo, pois o réu que colabora devolve voluntariamente o dinheiro. O exemplo da Lava-Jato, seus números impressionantes e alvos jamais pensados fazem dela modelo para o resto do país. Em São Paulo, já se notabilizam as delações que aprofundam investigação da Operação Alba Branca, que trata de contratos do governo do estado com fornecedores de merenda escolar. O presidente da Assembleia Legislativa, Fernando Capez (PSDB), é o principal nome apontado por colaboradores. Em Minas Gerais, destaca-se a Operação Acrônimo, que implica o governador Fernando Pimentel (PT) em suposto esquema de doações ilegais para sua campanha eleitoral.

O passado, e o futuro 

Foi em cultura muito parecida que cresceu a operação italiana Mãos Limpas, em que procuradores atuaram com maciço apoio da população após acordos de colaboração premiada jogarem luz a esquemas montados por políticos e empresários. O exemplo italiano serve também de alerta. Por lá, se tornou notória a frase “Se assim fazem todos, salvemo-nos todos” de Silvano Larini, braço direito do primeiro-ministro Bettino Craxi. Quando um sai livre, acabam se livrando todos.

Procuradores brasileiros correm riscos com delatores que forneçam verdades parciais, protegendo comparsas e causando falsas acusações. Capez e Pimentel, a exemplo de tantos citados na Lava-Jato, negam todas as acusações e desqualificam os depoimentos. Podem estar mentindo, mas podem ter sido implicados injustamente para que outros sejam libertados. É possível ainda que réus tentem minimizar sua participação no crime e maximizar a de outras pessoas.

“Hoje, há um risco de que as declarações do colaborador sejam consideradas provas com peso elevado, muito embora ele possa ter interesse em envolver outras pessoas apenas para se beneficiar com a redução da própria pena”, afirma Thiago Bottino, professor e coordenador da graduação em Direito da FGV Rio. “Observa-se um aumento da dependência da colaboração. Ou seja, o MP passa a investigar somente na direção que o colaborador aponta e pode deixar de descobrir outros envolvidos”.

As fragilidades apontadas pelos juristas são acentuadas pelo ponto de maior tensão para os críticos: o uso das prisões processuais. Antes de julgado e esgotados os recursos, o réu de qualquer investigação só pode ser preso mediante perturbação de ordem pública ou econômica, por destruição de provas ou risco de fuga. As prisões temporária ou preventiva são pedidas pelo MPF ou pela Polícia Federal e decretadas pelo juiz. Críticos da força-tarefa apontam que os pedidos de prisão da Lava-Jato são expedidos indiscriminadamente, para que motive o suspeito a delatar.

No início do mês, a Procuradoria-Geral da República cancelou as tratativas para acordo de delação premiada com o ex-presidente da OAS Léo Pinheiro. Dias depois, o empreiteiro foi preso pela segunda vez, acusado de interferir nas investigações. Para especialistas, esse é um exemplo claro de que a prisão processual está sendo usada como “antecipação do juízo condenatório”.

“Com o constrangimento, o réu quer resolver seu problema. Conta tudo o que sabe e até o que não sabe. Não posso criar prisão com finalidade de delatar. Se não tivermos prisões processuais da Lava-Jato, teríamos tantas delações? Provavelmente não”, afirma Alamiro Salvador Netto, professor da Faculdade de Direito da USP e presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça.

Outro potencial problema, apontado pelo professor, é a concentração de tarefas nas mãos de Sergio Moro. Ele é o responsável por colher as delações, e também aplica as penas – o que abre caminho para um conflito de interesses. “Uma alternativa para eliminar o problema é a criação de um juiz de garantias, responsável pelo deferimento das provas do inquérito policial, pela homologação do acordo de delação, trabalhando com outro juiz que julgue o mérito de forma isenta”, afirma. “O juiz que cuida do inquérito policial, na fase pré-processual, não pode ser o mesmo da ação penal”.

Das duas grandes tradições jurídicas, a Common Law, que inspira Estados Unidos e a Inglaterra, e a Civil Law, tradição dos países europeus e o Brasil, a delação se encaixa melhor no primeiro. A finalidade pragmática na solução de casos da Common Law “permite” um meio mais abstrato para condenação. “Num sistema pragmático, em que o Estado tem papel de contenção da criminalidade a qualquer custo, a delação é aceitável sem maiores discussões, como o ‘Procura-se vivo ou morto’ dos filmes de faroeste. No Brasil, há mais reserva”, diz Salvador Netto.

Como tentativa de regulamentar a situação, o deputado federal Wadih Damous (PT-RJ) apresentou projeto de lei na Câmara para proibir delação premiada de investigados presos. Os juristas consultados pela reportagem afirmam que a delação tem que ser fruto de uma opção livre e consciente do investigado ou réu e a prisão, como usada na Lava-Jato, pode gerar influência na decisão. Para procuradores, não há constrangimento nos métodos, pois há uma cautela para decidir pelas prosões e nada é pedido indiscriminadamente.

Um bom exercício de memória é lembrar um caso da Lava-Jato em que a delação tenha sido fechada antes da prisão. Tão difícil quanto lembrar quantas denúncias foram aceitas sem que o réu estivesse preso. Por isso volta a pertinência da instauração de dois juízes no caso: evitaria prisão por extorsão e garantiria ao réu a possibilidade de fechar uma delação.

O risco: a Operação Mãos Limpas naufragou a partir do momento que foram criadas leis para frear o ímpeto dos procuradores, dificultando os acordos de colaboração, anulando provas ou gerando prescrição dos crimes. Aqui, o MPF saiu na frente com as 10 Medidas Contra a Corrupção, que, em meio às suas próprias polêmicas judiciais, tenta facilitar seu trabalho. É uma queda de braço sem fim – até aqui, com muito mais vitórias do que derrotas para o país.

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