Brasil

Líderes industriais gastam até quase cinco vezes mais do que a Nova Indústria Brasil por ano

Sem a mesma capacidade industrial de 40 anos atrás, Brasil precisa evitar a pulverização de recursos concentrando-os em 'poucos e bons projetos', diz especialista sobre a NIB

"Temos que ser mais humildes e tentar evitar essa pulverização dos recursos, concentrando em poucos e bons projetos", defende Paulo Morceiro (FG Trade/Getty Images)

"Temos que ser mais humildes e tentar evitar essa pulverização dos recursos, concentrando em poucos e bons projetos", defende Paulo Morceiro (FG Trade/Getty Images)

Publicado em 3 de dezembro de 2024 às 06h22.

Um toca-discos com saída óptica da Gradiente, ou um liquidificador Walita numa cozinha equipada por outros eletrodomésticos da Prosdócimo a carros Gurgel circulando pelas ruas. Nas casas e na memória dos brasileiros que vivenciaram o auge da indústria no país entre 1930 a 1980, essas são apenas algumas marcas nacionais que contam a relevância histórica de um setor que, no período, alçou o país entre as três maiores taxas de crescimento econômico da história: a indústria.

Quem viveu nessa época também acompanhou nas décadas seguintes essas mesmas marcas serem descontinuadas e substituídas, nas cozinhas e nas salas de estar, por nomes de difíceis e variadas formas de pronunciação, mas fiéis às suas novas origens sul-coreanas, chinesas, estadunidenses ou europeias.

O retrato de uma residência contemporânea no Brasil é apenas um pequeno recorte do tamanho do desafio que o país tem pela frente para retomar a industrialização em um mundo que nunca deixou de olhar para o setor e que tem muito mais recursos para investir, como aponta o economista e especialista em desenvolvimento econômico Paulo Morceiro.

"Cada sociedade investe em fases e em segmentos industriais de acordo com suas capacidades tecnológicas e de acordo com os seus problemas. E o Brasil deixou de fazer isso nos últimos 40 anos enquanto o mundo investiu em novas tecnologias, transformações digitais e em solucionar problemas", afirma.

Estudioso da área, Morceiro acompanha o tema como pesquisador associado sênior do South African Research Chair in Industrial Development da Universidade de Joanesburgo, na África do Sul, e do Núcleo de Economia Regional e Urbana da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP).

Para ele, é positiva a Nova Indústria Brasil (NIB), iniciativa lançada em janeiro pelo governo federal para a "neoindustrailização" do país. Principalmente diante do fato de que o mundo, tal como conhecemos hoje, é construído em bases industriais, aponta.

Nesse caso, diz Morceiro, a política industrial opera como um conjunto de estratégias governamentais para fortalecer o setor, essencial por sua presença em quase todos os aspectos da vida cotidiana e na economia global, que tem 80% de seu comércio ligado à indústria.

Morceiro destaca que a pandemia evidenciou a importância de uma indústria forte para responder a crises, como na produção de vacinas, e para enfrentar desafios estratégicos, como mudanças climáticas e inovação tecnológica. No entanto, ele define o plano brasileiro como "modesto", a começar pelo orçamento investido na faixa dos R$ 400 bilhões até 2026. Anualmente, é como se a NIB tivesse cerca de US$ 17,5 bilhões  (considerando o câmbio a R$ 5,70) por ano.

"Isso é muito pouco. As empresas que são líderes mundiais em pesquisa e desenvolvimento gastam quase cinco vezes mais que isso", destaca.

Os investimentos são feitos principalmente em média e alta tecnologias, que somam dois terços dos 80% dos produtos comercializados pelo globo.

Morceiro explica que as empresas mais dinâmicas em tecnologia, como Google, e plataforma digitais, como Amazon, investem intensivamente em inovações, principalmente ligadas a tecnologias industriais e, mais recentemente, em serviços de software e comunicações, e dispõem de investimentos que superam toda a NIB.

Com base nisso, o especialista lista como as 20 companhias que mais gastam em política industrial, em primeiro lugar, a Amazon, no setor de software e internet, que investe US$ 73 bilhões de dólares por ano. Em seguida aparece o Google, com US$ 40 bilhões, e o Facebook, com US$ 35 bilhões.

A Apple gasta US$ 27 bilhões e a Microsoft, US$ 26 bilhões, próxima da Huawei, a chinesa de computação eletrônica, que investe US$ 24 bilhões. No setor automobilístico, aparece a Volkswagen, com US$ 20 bilhões, mesmo total da sul-coreana Samsung.

Como fica a nova política industrial?

"O Brasil estava na frente da Coreia do Sul [em termos de industrialização] no início dos anos 80. E hoje somente uma de suas empresas gasta mais em P&D [Pesquisa e desenvolvimento] do que toda a nova política industrial brasileira", observa.

Sem o mesmo total de recursos, o economista defende que o país trabalhe sua capacidade de planejamento para investir "em poucos e bons projetos". Atualmente, a NIB é orientada por seis missões, que vão desde projetos de infraestrutura sustentáveis a desenvolvimento de tecnologias em saúde, transformação digital da indústria, bioeconomia e descarbonização, defesa nacional e projetos agroindustriais.

"Não dá para fazer tudo de uma vez", pondera. Os países que fizeram políticas industriais bem sucedidas fizeram-nas aos poucos, segundo Morceiro. A cada 10 anos eram priorizados um conjunto de três a quatro setores, até o país avançar na escala tecnológica.

"Algumas pessoas acham que porque ficamos por muito tempo parados, chegamos nos anos 80 próximo de entrar no clube dos países desenvolvidos — como a Coreia entrou. Mas há 40 anos não crescemos e nem investimos muito em tecnologia. O Brasil não tem mais a capacidade que tinha 40 anos atrás e não dá para voltarmos e retomarmos de onde estávamos", afirma.

Em sua avaliação, é preciso humildade para tentar evitar uma "pulverização dos recursos, concentrando-os em poucos e bons projetos".

"Está na direção certa na parte da indústria verde, mais inovadora, mirar para a exportação. Só que temos que de fato ter metas de exportação e de inovação", acrescenta o especialista em desenvolvimento industrial.

O que foi a desindustrialização brasileira

O setor industrial brasileiro já representou 50% do PIB nos anos 1970. O período marcou uma transformação intensa na economia de um país que deixava de ser agrário, cuja principal fonte de renda era a exportação de café, para se tornar industrial, permitindo com isso a integração do mercado nacional e a construção de estradas interligando o país.

"Tivemos duas fases muito opostas. Essa fase, dos 50 anos antes de 1980, e os 40 anos depois de 1980 são períodos totalmente diferentes", ressalta Paulo Morceiro.

O trabalho do economista mostra que de 1986 a 1998, o Brasil vivenciou sua primeira fase de desindustrialização mais aguda. Parte dela motivada pela crise da dívida externa.

O país tomou empréstimos para financiar a própria indústria. O valor devido, porém, acabou sendo reajustado com taxa de juros altas, o que dificultou a quitação por parte do país. "O Brasil entrou em crise de lá para cá. Tomou várias medidas para sair dessa crise, muitas delas resultaram em mais inflação e a indústria também entrou em crise e deixou de ser priorizada pelo governo", afirma.

Para sair desse período, o Estado na época fez uma abertura comercial ampla e rápida que desconsiderou a pilares que permitiram o crescimento da indústria até então, muito baseado no mercado interno e protegida. Sem uma transição adequada, o economista avalia que o processo de desindustrialização se deve também à abertura comercial.

Outros fatores se somaram a esse declínio, como as taxas de câmbio apreciadas na esteira do Plano Real, em 1994, que favoreceram a importação. Até o aumento da carga tributária do consumo, que passou de 24% para 32% do PIB, e da taxa de juros para controlar a hiperinflação. "Se a gente fosse resumir, a partir dos anos 80 tudo passou a funcionar contra a indústria e a colocá-la num ciclo recessivo difícil de sair ano a ano", diz.

Um dos artigos do pesquisador, publicado pelo seu grupo de estudo na FEA-USP, mostra que globalmente, o fenômeno foi assimétrico. Enquanto a parcela da manufatura no PIB da economia mundial permaneceu praticamente estagnada, a China industrializou-se num ritmo muito intenso, deixando inclusive os Estados Unidos para trás e o Brasil numa tendência bem definida de desindustrialização.

O próprio EUA, contudo, não deixou de investir em políticas industriais. Mas, no Brasil, elas voltaram a ganhar fôlego, de acordo com o especialista, apenas no segundo mandato do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, entre 2007 e 2011. Ainda assim, focadas em responder à crise global de 2008 e num ambiente de grande competitividade mundial.

Nas últimas duas décadas, relata Morceiro, "a China desenvolveu toda a cadeia de equipamentos elétricos e os EUA estão vindo atrás". "A Europa também está tentando fazer algumas coisas. E o Brasil ficou parado. Nossos indicadores de inovação de 2000 para cá estão estagnados", aponta.

Como se reindustrializar?

A indústria no mercado interno perde com isso espaço para a indústria estrangeira. Um estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI), publicado na Revista Brasileira de Comércio Exterior, da Funcex, mostra que entre 2003 e 2011, o coeficiente que mede a participação dos insumos industriais importados na produção nacional saltou de 16,5% para pouco mais de 25%. Enquanto isso, o coeficiente de exportações caiu de 19,7% em 2005 para 12,1% em 2014.

A Nova Indústria Brasil, que tenta retomar o protagonismo do setor na economia, é hoje, essencialmente, um programa de crédito. O economista defende que o ideal é que o programa se torne uma política de Estado com recursos carimbados para a indústria. Num ambiente de orçamento apertado, o ideal, ainda segundo ele, era que parte do recurso investido na agricultura fosse aplicado em políticas industriais.

O Plano Safra, de crédito para o agro, chegará a quase 450 bilhões de reais de 2024 a 2025. Um valor superior ao orçamento da NIB para os próximos anos.

"O Brasil basicamente exporta commodities. Somos muito bons nisso. Só que esse modelo já nos trouxe até aqui e não vai levar muito mais longe do que é. Há 40 anos que o Brasil cresce 2%, vai para 3% e depois volta para 2%. É o nosso voo de galinha. Para crescer mais tem que melhorar a capacidade, a estrutura produtiva, a produção industrial e diversificar", afirma Morceiro.

Acompanhe tudo sobre:IndústriaPolítica industrial

Mais de Brasil

Caminho da Índia: o que o Brasil pode aprender sobre digitalização?

STF tem maioria para manter decisão de Dino que liberou emendas com regras mais rígidas

Alexandre de Moraes cobra manifestação da PF em inquérito que investiga Elon Musk