Karam, da LEAP: a legalização é o remédio para a violência no Rio
A LEAP Brasil (Law Enforcement Against Prohibition) acredita que a guerra às drogas é uma causa falida, que falhou em eliminar as drogas tornadas ilícitas
Da Redação
Publicado em 19 de outubro de 2017 às 13h39.
Última atualização em 19 de outubro de 2017 às 20h42.
Legalizar as drogas no Brasil é um assunto, no mínimo, sensível. Embora já tenha sido apoiada por ministros do Supremo Tribual Federal, como Luis Roberto Barroso, as pesquisas sobre o assunto apontam que a grande maioria da população é contra.
Os que são a favor afirmam que a legalização traria benefícios como o fim da violência gerada pela guerra às drogas, reduziria os esforços da polícia em lidar com crimes como o tráfico, e até permitir que o Estado atue em regiões e territórios completamente dominados pelo tráfico, caso de diversas favelas e bairros do Rio de Janeiro.
É o que defende a juíza aposentada Maria Lucia Karam, presidente da LEAP Brasil ( Law Enforcement Against Prohibition) — organização de agentes da lei contra a proibição das drogas.
Formada por policiais civis e militares, agentes penitenciários, guardas municipais e membros do judiciário, como juízes, defensores públicos e promotores, a LEAP acredita que a guerra às drogas é uma causa falida, que falhou em eliminar as drogas tornadas ilícitas nos últimos 40 anos.
Karam, que participou do evento Libertycon no último final de semana, falou a EXAME sobre sua visão da legalização, sugestões de regulação e também sobre a violência no Rio de Janeiro.
Como a situação chegou a esse ponto no Rio de Janeiro?
O tráfico é uma atividade empresarial. Portanto, precisa do mínimo de organização, o que é completamente diferente de outros crimes como roubo e sequestro, que não são atividades econômicas.
O comércio de drogas é uma atividade como outra qualquer, que precisa de uma estrutura, de uma sede onde as pessoas trabalhem.
O crescimento do mercado de drogas no Rio e no Brasil em geral decorre também do próprio crescimento da economia nacional, o que aumentou o consumo no país.
Temos uma questão de transporte também: somos um ponto de parada da cocaína que vem de países andinos, antes de ela ir para a Europa.
Na medida em que a atividade é ilegal, o armamento serve não só para enfrentar a concorrência, mas para também enfrentar a repressão e o Estado. É uma questão de poder e de ocupação.
O Estado teve iniciativas para retomar os territórios ocupados pelo tráfico, com as próprias UPPs. São medidas paliativas, que não deram conta de solucionar o problema, ou elas tiveram algum resultado concreto?
As UPPs são uma ocupação militarizada. É inviável ter esse tipo de ocupação em todos os territórios pobres do Rio de Janeiro.
Não tem efetivo para isso. Ainda que houvesse, não seria positivo, porque a UPP é o reflexo de um Estado totalitário: é uma prática militarizada de controle de território, que utiliza uma polícia diferente para lidar com lugares como o Alemão, a Maré, a Rocinha e, no asfalto, nos bairros de classe média, há o policiamento normal, do Estado de direito. É importante notar também que o tráfico não acabou onde aconteceram essas ocupações.
A única maneira de acabar com o tráfico é legalizando as drogas. Enquanto houver demanda haverá oferta, e o tráfico só existe por causa da proibição. Com a legalização, o comércio aconteceria abertamente, de forma institucionalizada e sem violência.
Recentemente, as Forças Armadas ocuparam a favela da Rocinha, elas já haviam se instalado no Rio de Janeiro em momentos anteriores. Essa necessidade de repetição atesta a falência da guerra às drogas?
Evidencia uma luta que não deu certo. Mais do que isso: é um desrespeito à Constituição. Colocam-se as Forças Armadas para fazer um papel de polícia, quando não é essa a função prevista para o Exército na Constituição. Isso é muito grave.
Como está o debate para regularização das drogas no Brasil?
As drogas são diferentes umas das outras e acredito que as regulações têm que ser diferentes também. Essa decisão é econômica, cabível ao governo.
No Uruguai, por exemplo, a maconha é legalizada sob uma ótica mais estatizante, em que o governo fixa os preços e tem controle sobre a produção e o comércio.
Há também o exemplo dos estados norte-americanos que já legalizaram, como Colorado, Washington e Califórnia, que têm uma visão mais privatista, mas sempre com controle do Estado sobre a qualidade da produção, e isso é fundamental, principalmente se para proteger a saúde do usuário.
Além desse controle de qualidade, é fundamental o trabalho de mídia que foi feito no Brasil com o cigarro, por exemplo.
Nós reduzimos drasticamente o número de fumantes com restrições à publicidade, campanhas de conscientização e de saúde, proibição do uso em lugares específicos.
Também precisaríamos estabelecer locais de venda, a depender da droga. A opção uruguaia de venda de maconha em farmácia eu considero exagerada.
Nos Estados Unidos, ela pode ser vendida em estabelecimentos específicos. Mas é importante frisar que essas substâncias são potencialmente nocivas e que não podem ser totalmente liberadas. Precisam de controle.
A senhora mencionou em sua palestra que o número e a quantidade de drogas disponíveis não diminuiu com a guerra às drogas. Pelo contrário, aumentou. Nós ainda temos tempo de resolver o problema das drogas e do tráfico pela legalização?
Acredito que, com a legalização, teríamos a possibilidade de diminuir a disponibilidade de drogas mais perigosas, pelo menos a médio prazo.
Se a cocaína é vendida legalmente, não há por que existir o crack, que é uma cocaína muito piorada. É possível diminuir esse consumo ou ao menos estabilizá-lo.
O Rio de Janeiro vive uma severa crise econômica, com o governo do estado falido, e a violência aumentou muito. Essas questões são intimamente ligadas? A falência econômica precede um aumento da violência?
A violência sempre existiu, mas a falência econômica e a própria falência política do estado, que está meio sem governo, contribuem para um maior descontrole, inclusive das próprias forças policiais.
No Rio, quase 20% dos homicídios são provocados por agentes do Estado. Guerra é efetivamente para matar. Não temos como desenvolver uma política de guerra e achar que os policiais irão se omitir disso.
Eles estão postos ali justamente para isso. Em São Gonçalo, praticamente 80% de todos os homicídios é vinculada à disputa entre o tráfico e atuação da polícia.
A legalização não é um passe de mágica, não é a panaceia para todos os males, mas vai efetivamente diminuir uma grande parte da violência, enfraquecer grupos armados. São vidas que estão em jogo.