É fácil culpar militares, diz Bolsonaro a presidente da OAB que perdeu pai
Sem apresentar evidências, presidente deu nova versão para desaparecimento de ativista baseado em "informações que obtive na época"
João Pedro Caleiro
Publicado em 29 de julho de 2019 às 16h46.
Última atualização em 29 de julho de 2019 às 17h22.
São Paulo - Em uma transmissão ao vivo pelo Facebook enquanto tinha seu cabelo cortado, o presidente Jair Bolsonaro alegou, sem apresentar evidências, que o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, teria sido morto por colegas e não pela ditadura militar.
Felipe é filho de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, integrante do grupo Ação Popular (AP), organização contrária ao regime militar (1964-1985). Ele foi preso pelo governo em 1974 durante o carnaval e nunca mais foi visto.
“Não foram os militares que mataram ele não. É muito fácil culpar os militares por tudo que acontece”, disse o presidente, que hoje mais cedo havia sugerido que sabia o que havia acontecido com Fernando.
Felipe tinha dois anos na época do desaparecimento; a mãe de Fernando e avó de Felipe morreu há pouco mais de um mês, aos 105 anos, sem ter a confirmação do que havia acontecido.
No Twitter, a hashtag #AgoraFalaBolsonaro foi ao topo dos assuntos mais comentados. Para justificar sua posição, o presidente disse que poderia "ignorar a imprensa" mas que "vai na sinceridade".
“Não quero polemizar com ninguém, não quero mexer com os sentimentos do senhor Santa Cruz”, disse o presidente, para depois afirmar que "ele está equivocado em acreditar numa versão apenas do fato”.
Em 2011, ainda como deputado federal, o próprio Bolsonaro havia dado outra versão para a morte, afirmando em palestra na Universidade Federal Fluminense (UFF) que Fernando teria morrido “bêbado” pulando carnaval.
Em 2012, no livro “Memórias de uma guerra suja”, o ex-delegado do Dops Cláudio Guerra diz que o corpo de Fernando foi incinerado no forno de uma usina de açúcar em Campos (RJ).
O governador João Doria classificou a declaração de Bolsonaro como "inaceitável"; a fala também foi repudiada pela Anistia Internacional e pelo próprio Felipe, que destacou a "crueldade e a falta de empatia" do presidente: "É de se estranhar tal comportamento em um homem que se diz cristão."
De acordo com a coluna Radar, a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, um colegiado estatal ligado ao Ministério chefiado por Damares Alves, vai emitir um novo atestado de óbito no final de agosto reconhecendo que Felipe foi morto pelo Estado brasileiro. A cerimônia já estaria prevista desde maio.
Bolsonaro classificou a AP como um dos grupos mais sanguinários de resistência à ditadura. O Estadão Verifica, serviço do jornal O Estado de S. Paulo mostrou que o pai de Felipe Santa Cruz, segundo depoimento à Agência Brasil de um de seus irmãos, João Artur, não era ligado à luta armada.
Outros membros de destaque da AP incluem o ativista Herbert de Souza, o Betinho, e o ex-senador José Serra (PSDB).
À frente da OAB-Rio, Felipe iniciou movimento em 2016 para pedir ao Supremo Tribunal Federal a cassação do mandato de deputado federal de Jair Bolsonaro por “apologia à tortura “.
Histórico
É a segunda vez em dez dias que o presidente da República ataca a memória de vítimas da ditadura militar no Brasil.
Em um café da manhã com jornalistas estrangeiros no último dia 19, ele afirmou que a jornalista Miriam Leitão foi presa quando estava indo para a Guerrilha do Araguaia e que mentiu sobre ter sido torturada.
Miriam foi militante do PCdoB, onde atuou em atividades de propaganda, e nunca se envolveu na luta armada. Ela foi presa e torturada, grávida, aos 19 anos, no 38º Batalhão de Infantaria em Vitória.
Bolsonaro tem um longo histórico de defesa da tortura e da ditadura militar. Ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff, o então parlamentar fez uma homenagem a Carlos Brilhante Ustra, que comandou o Doi-Codi de São Paulo, centro de tortura durante a ditadura.
Em entrevista à rádio Jovem Pan em junho de 2016, o então deputado federal disse que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”.
Em maio de 1999, na TV Bandeirantes, Bolsonaro disse que na ditadura “deviam ter fuzilado uns 30 mil corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique, o que seria um grande ganho para a Nação”.