Bolsonaro é o Jim Jones da destruição do meio ambiente, diz Marina Silva
Ex-ministra do Meio Ambiente comparou o presidente ao líder de uma seita que levou ao suicídio e assassinato em massa na Guiana no final dos anos 1970
Estadão Conteúdo
Publicado em 20 de julho de 2020 às 13h35.
Última atualização em 20 de julho de 2020 às 14h26.
A ex-ministra do Meio Ambiente e ex-presidenciável Marina Silva (Rede) afirma que não adiantará nada o vice-presidente Hamilton Mourão apresentar belos powerpoints para convencer investidores do compromisso do Brasil com a preservação da Amazônia se Jair Bolsonaro mantiver sua agenda de "insanidades" na área ambiental.
Como exemplos de absurdos cometidos pelo presidente, ela citou a insistência do presidente em culpar indígenas e pequenos agricultores por queimadas na Amazônia e em minimizar a gravidade do desmatamento. "Bolsonaro é o Jim Jones da destruição ambiental", disse Marina ao Estadão, comparando o presidente ao líder de uma seita que levou ao suicídio e assassinato em massa de centenas de seus membros na Guiana, no final dos anos 1970.
Leia a seguir a entrevista concedida por ela na sexta-feira (17) ao jornal.
Os mapeamentos da Amazônia apontam para um aumento em 2020 do desmatamento e das queimadas, sendo que no ano passado ambos já estavam em alta. Qual é a sua avaliação sobre a situação na região hoje?
A situação é gravíssima, porque o que aconteceu no ano passado está se repetindo, e de uma forma bem pior. Diferentemente de outras partes do mundo, em que a floresta entra em combustão pelas próprias condições climáticas, no Brasil a floresta entra em combustão pela perda de umidade graças às derrubadas criminosas. Neste ano essa realidade é pior que em 2019. Uma coisa é o que é mostrado pelo vice-presidente em powerpoints para investidores, e outra é o que ocorre na Amazônia. Este governo não tem estatura política nem competência técnica para resolver o que está acontecendo na ponta, no território.
O presidente, na semana passada, voltou a negar os dados e a minimizar o desmatamento.
O presidente Jair Bolsonaro e o ministro Ricardo Salles estão cumprindo o que anunciaram desde a campanha: o desmonte de um processo de gestão ambiental que funcionou bem e foi sendo aprimorado ao longo de sucessivos governos, com acúmulos importantes. Esse governo não tem compromisso com a gestão ambiental e nem capacidade técnica. É por isso que não há discurso, não há powerpoint do vice-presidente que resista a insanidades como essas que Bolsonaro repete.
Ele inclusive comparou a Europa a uma seita ambiental.
O movimento mundial pelo fim dos desmatamentos e das queimadas criminosas e pelo respeito aos povos indígenas não vai cessar. Essa é uma agenda que veio para ficar. Mas não podemos nos iludir: este governo não vai fazer o dever de casa. Se quisesse fazer, teria de montar um novo plano de preservação e controle do desmatamento, remontar o ICMBio, montar um plano de inteligência com a Polícia Federal e articular uma coordenação política com os governadores.
Vê alguma chance de isso ser feito, no âmbito do novo Conselho Nacional da Amazônia?
Não é simples. Na nossa época, a montagem do plano de preservação e controle envolveu três ministérios trabalhando juntos, inibimos 35 mil propriedades ilegais, tomamos ações efetivas para criminalizar toda a cadeia produtiva que começa na extração ilegal de madeira, única forma de frear a expansão predatória sobre a floresta, fizemos a interdição de qualquer acesso a crédito por parte de quem desmatasse, aplicamos mais de 4 bilhões de reais em multas, foram presas mais de 700 pessoas em operações conjuntas da Polícia Federal e do Ibama. Adotamos uma ação firme contra a grilagem, ao não criar nenhuma expectativa de que áreas griladas fossem regularizadas mais à frente.
Agora a maior preocupação do governo em relação à Amazônia é promover a regularização fundiária na região, se preciso driblando o Congresso.
No meu entendimento, a única saída para essa situação dramática é o setor do agronegócio assumir uma agenda própria e enfrentar o problema. Deixar a gestão ambiental na mão do governo Bolsonaro, única e exclusivamente, é algo muito temerário. É preciso que parta do setor uma pressão para que o Congresso retire da pauta imediatamente todos os projetos antiindígenas e antiambientais, a começar pelo PL da Grilagem, mas também o projeto que permite a expansão da cana de açúcar na Amazônia e no Pantanal e outros. O agronegócio brasileiro precisa entrar em um processo de certificação, ter um cronograma de trabalho, uma agenda transparente, que possa ser acompanhada pela comunidade científica, pela sociedade civil e pelo poder público.
O agronegócio brasileiro reconhece a agenda ambiental como sua, ou ainda predominam setores que veem o meio ambiente como entrave?
Grande parte do agronegócio brasileiro é moderna, e não pode ficar refém desses setores atrasados. Essa ala retrógrada não pode ser vista como o setor. É preciso haver um processo de afastamento dessa visão, que passa por uma agenda e precisa incluir também os pequenos agricultores e a agricultura familiar. Não há interesse nenhum para o agronegócio de ter sua imagem ligada a uma exploração da floresta que, na verdade, é feita por uma indústria do crime ambiental. Isso começa com grupos invadindo e grilando terras na expectativa de regularização futura, associada a uma venda da madeira que dá liquidez imediata e a uma expectativa de venda futura da terra por um preço alto. Isso é uma cacimba de areia: quanto mais se incentiva esse processo, mais se pressiona a floresta. A agricultura de baixo carbono tem de ser o centro do Plano Safra, é preciso que se tenha um suporte técnico e financeiro para a bioeconomia. Não se pode mais compactuar com um processo em que um grupo criminoso se apropria privadamente do Orçamento natural de um povo e, depois, Congresso e governo promovem um processo de lavagem e regularização desse crime. Isso não tem diferença, em termos de apropriação de patrimônio público, com o que aconteceu no petrolão.
Mas o presidente insiste que são os pequenos que queimam a floresta e que o solo da Amazônia é tão fértil que a floresta se reconstitui sozinha quando a terra deixa de ser explorada.
Isso é mais uma insanidade, uma coisa incompreensível. Bolsonaro é o Jim Jones da destruição ambiental. A Amazônia não tem um solo fértil a princípio. Por ser uma floresta densa, a fauna e a vegetação, graças à umidade, criam uma camada de nutrientes para esse solo. Mas é uma camada fina. Aquilo tudo vai embora com as chuvas torrenciais da Amazônia e também com as queimadas. O que vai nascer ali de novo, depois de anos, é uma floresta secundária, de riqueza muito inferior à floresta primária. As capoeiras levam décadas para se regenerar. E vai ter uma conformação muito inferior em relação à própria madeira, às espécies. Um cumaru-ferro leva 800 anos para crescer. É um ato de covardia política e covardia verbal colocar na conta dos indígenas, dos ribeirinhos e das comunidades tradicionais a responsabilidade por esses incêndios.
Diante de tudo isso, quais os riscos para o Brasil em termos de exportações, acordos internacionais e investimentos?
Não é que o Brasil esteja à margem do que se discute hoje no mundo em relação à bioeconomia. O Brasil está trancado do lado de fora. Há vários estudos e documentos mostrando o potencial de se gerar milhões de empregos preservando a natureza e fazendo uma gestão eficiente dos recursos naturais. O governo não está a par, não está nem lendo esses estudos. Os custos já estão aí. A Holanda não ratificou o acordo Mercosul-União Europeia. Existe uma pressão enorme para que o Parlamento Europeu também não ratifique. O fundo soberano norueguês dispensou a Vale, dispensou a Petrobras. O Fundo Amazônia está parado. Esse dinheiro era responsável por fortalecer a pesquisa e a governança ambiental. Por tudo isso eu repito que o setor do agronegócio responsável tem de se dissociar da agenda do Bolsonaro e do Salles. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos, quando o Trump quis reativar a indústria do carvão e os próprios empresários deixaram claro que não comprariam essa energia.
A seu ver o Congresso está sendo omisso em brecar os retrocessos dessa agenda?
Para ser justa, o projeto da grilagem não está avançando graças ao Congresso. O Congresso também aprovou o projeto da deputada Joenia Wapichana para garantir o fornecimento de insumos para comunidades indígenas. Aí o presidente vetou o projeto de uma forma tão absurda que praticamente só sobraram a ementa e a assinatura da autora. Se o Congresso quiser ter maior protagonismo e se dissociar da imagem do Brasil, de pária global na agenda ambiental, precisa derrubar esse veto e retirar da pauta os demais projetos antiambientais.