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A visão do Gawker segue (bem) viva

Farhad Manjoo © 2016 New York Times News Service Há nove anos, Peter Thiel, investidor rico e discreto do Vale do Silício, leu alguma coisa sobre si mesmo na internet e não gostou. Dizem que ele jurou vingança, executando um plano de financiar processos contra a Gawker Media, editora que o aborreceu, culminando recentemente no […]

JORNALISTA DO GAWKER: o site acelerou a imprensa a um ritmo insano; depois dele, ninguém folgava mais à noite nem nos finais de semana. / Ruth Fremson/The New York Times
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Da Redação

Publicado em 1 de setembro de 2016 às 15h53.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h00.

Farhad Manjoo
© 2016 New York Times News Service

Há nove anos, Peter Thiel, investidor rico e discreto do Vale do Silício, leu alguma coisa sobre si mesmo na internet e não gostou. Dizem que ele jurou vingança, executando um plano de financiar processos contra a Gawker Media, editora que o aborreceu, culminando recentemente no fechamento do seu carro-chefe Gawker.com.

Mas a vitória de Thiel foi inócua – pode-se até dizer que ele perdeu. Embora ela possa ter matado o Gawker, sobrevivem sua sensibilidade e influência sobre o resto da imprensa. Em praticamente toda a imprensa atual, para o bem ou para o mal, o “Gawkerismo” segue de vento em popa.

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Criado em 2002 depois da explosão da bolha pontocom, o Gawker estava longe de ser o primeiro site de notícias; nem era o primeiro blog ou a primeira rede de blogs. De muitas formas, porém, a Gawker Media – que incluía Gizmodo, Deadspin, Jezebel, Lifehacker e vários outros sites, além do Gawker.com – foi a primeira empresa real da mídia digital. Ela foi a primeira editora a compreender o ritmo, a cultura e as possibilidades das notícias on-line. E usou tal compreensão para divulgar uma série de inovações técnicas, comerciais e jornalísticas na imprensa como um todo que acabou alterando a maneira pela qual produzimos, consumimos e reagimos à imprensa nos dias de hoje.

Muita gente não é fã do Gawker, por motivos compreensíveis. A internet é o Velho Oeste das editoras, e a exemplo de muitas das mais celebradas startups do Vale do Silício, o Gawker ampliou as fronteiras, às vezes de um jeito que nos enchia de pavor.

Uma de suas metas declaradas era “afligir os confortáveis”, coisa que costumava fazer, menos quando estava socando executivos anônimos de nível médio, inimigos políticos e, às vezes, crianças. Até mesmo seus defensores rebolam para explicar por que o mundo teria sido muito pior se o Gawker não tivesse publicado um dos vídeos de sexo de Hulk Hogan, a postagem que levou ao julgamento fatal contra a empresa. Embora eu vá lamentar sua perda, posso entender quem não lamente. Se você, de propósito, nunca lia o Gawker, não posso culpá-lo.

Mas elementos de seu tom, estilo, sensibilidade, modelo básico de negócios e fluxo de trabalho colonizaram praticamente todas as empresas jornalísticas americanas, de iniciantes como BuzzFeed e Vox a veículos consagrados como a CNN, a New Yorker e o New York Times.

A inovação mais importante que o Gawker trouxe ao jornalismo foi a noção de que a internet lhe permitia fazer praticamente de tudo. O site foi uma das primeiras publicações da internet a compreender que a mensagem era o meio – que a internet não era apenas uma nova forma de distribuir palavras, mas que também oferecia o potencial de criar um tipo completamente novo de publicação, sem algo semelhante na era da impressão.

Isso parece uma percepção básica, mas não era óbvio para a maioria das editoras on-line. Eu soube disso em primeira mão. No início do século, eu trabalhava em três revistas diferentes completamente on-line: Wired News (divisão da revista Wired ), Salon e Slate. Olhando agora em retrospecto, sei dizer que, mesmo que estivéssemos fazendo um bom trabalho, quase não fazíamos nada que fosse diferente do que veio antes. Uma reportagem típica da Salon ou Slate tinha de 600 a 1.500 palavras. Geralmente, um redator escrevia algumas vezes por semana. Tirávamos folga aos finais de semana. Embora escrevêssemos on-line, de muitas maneiras estávamos publicando uma revista relativamente ágil, só que sem tinta e papel.

O Gawker não inventou o blog, mas Nick Denton, seu fundador, foi um dos primeiros a perceber que os blogs eram uma inovação técnica transformadora. Eles ofereciam um modelo para dinamitar tudo a respeito de como o jornalismo era feito e distribuído. Esse foi o tom mais óbvio do Gawker – era coloquial, escrito no estilo do seu amigo desbocado, muito inteligente e divertido em vez da novilíngua que tomava conta de boa parte da imprensa.

Escrever em blogs também libertou o jornalismo de outros modos. Na era impressa, os redatores eram sempre contidos pela falta de espaço e público. Havia muitas reportagens potenciais a publicar, mas eles somente podiam trabalhar naquelas que atraíssem público suficiente para justificar o espaço físico dedicado a elas.

“A ideia revolucionária era a de que o formato poderia ser plástico e fluido – se algo justificasse uma pequena postagem então essa pequena postagem seria suficiente, e se precisasse de uma reportagem, então também poderíamos fazer isso”, diz Joel Johnson, um dos primeiros editores do Gizmodo que mais tarde trabalhou como diretor editorial da Gawker Media.

A flexibilidade permitiu uma expansão da cobertura. Os redatores publicavam meia dúzia de matérias por dia. Em vez de seletividade, o Gawker enfatizava o volume. Um dos primeiros guias de estilo de Choire Sicha, segundo editor do Gawker.com, oferece esta visão deliciosamente ampla do que consistia uma postagem do site: “Qualquer coisa pode ser uma postagem – inspirada em uma foto do flickr, na publicação de um blog, reportagem, algo que você entreouviu, algo que sempre se perguntou”. E continua: “Uma boa postagem é sempre curta”, “vai direto ao ponto” e “conta a história na primeira frase”.

Ainda pensando na influência do Gawker: se é verdade que ele deu forma à boa parte da imprensa on-line, sua influência foi boa ou ruim para o mundo?

Por outro lado, é óbvio que propôs uma tendência mais antagonista, mais desconfiada, principalmente em relação às pessoas mais poderosas da política, negócios e imprensa – por exemplo, veja como escancarou a história de Bill Cosby.

“Não dá para fingir que não existiam coisas ruins ali, mas eles criaram um tom de voz e uma mentalidade que eram necessários. Como repórteres, enquanto tentamos ser justos e éticos, acho que erramos ao não dar nome aos bois. Eles faziam isso lindamente, meio que encorajando a todos os jornalistas”, afirma Kara Swisher, uma das fundadoras do site de tecnologia Recode.

Só que o Gawker também abriu a caixa de Pandora. Ele acelerou a imprensa a um ritmo insano. Depois dele, você não folgava mais à noite nem nos finais de semana. Você não podia publicar uma vez por semana. A internet era uma fera que sempre precisava ser alimentada, exigindo versões cada vez mais quentes e ultrajantes.

Algumas das piores práticas do Gawker – criticar automaticamente as pessoas sem lhes dar o benefício da dúvida, transformar em arma a indignação na internet e apontá-la contra pessoas comuns que não mereciam isso – agora se tornaram obrigatórias na internet.

Assim, eu termino como uma espécie de ambiguidade, uma que poderia ter rendido uma boa postagem no Gawker: uma boa parte da internet é maravilhosa. Uma boa parte da internet é horrível. Nos dois casos, a culpa é do Gawker.

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