Revista Exame

Uma nova crise do petróleo?

A guerra na Ucrânia trouxe sanções econômicas à Rússia e fez o preço do petróleo disparar. Na geopolítica do mercado de energia, as consequências para o mundo devem durar muito além do conflito armado

Posto de combustível em São Paulo: filas de carros na véspera do aumento de 18% da gasolina, provocado pela disparada do petróleo (Victor Moriyama/Bloomberg//Getty Images)

Posto de combustível em São Paulo: filas de carros na véspera do aumento de 18% da gasolina, provocado pela disparada do petróleo (Victor Moriyama/Bloomberg//Getty Images)

CA

Carla Aranha

Publicado em 23 de março de 2022 às 15h00.

Conhecido por seu temperamento calmo e controlado, o nigeriano Mohammed Sanusi Barkindo, secretário-geral da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), mudou de tom quando o preço do barril de petróleo disparou para 130 dólares, há algumas semanas, com o conflito na Ucrânia e o anúncio de sanções dos Estados Unidos contra a Rússia, terceiro maior produtor mundial do setor. “A crise de energia a que estamos assistindo pode levar a uma catástrofe parecida com os choques do petróleo do passado”, afirmou neste mês, sem meias-palavras, diante de uma plateia de centenas de executivos de óleo e gás reunidos em Houston, nos Estados Unidos, para um evento global de energia. 

Na geopolítica do mercado de energia, tirar um competidor da jogada — e ainda mais um peso pesado como a Rússia — não é algo trivial. A situação torna-se exponencialmente mais complicada quando são os Estados Unidos que anunciam que não vão mais comprar o petróleo russo. Na visão dos paí­ses que compõem a Opep e de outros grandes produtores globais, que controlam metade da produção mundial de petróleo, não há como suprir os 7 milhões de barris produzidos por dia em Moscou. “O mundo simplesmente não tem a capacidade de arcar com uma demanda extra dessa magnitude”, tem dito Barkindo a interlocutores e plateias mundo afora. 

Mesmo que o Leste Europeu volte aos eixos e os ânimos se acalmem, não há sinais de que as sanções à Rússia — o que inclui desde a exclusão de bancos russos do sistema financeiro internacional até o congelamento de contas de oligarcas ligados a Moscou — deverão ser levantadas no curto prazo. “Suspender punições a um país, ainda mais em um cenário marcado por uma guerra, é uma coisa que normalmente leva tempo, já que demanda toda uma burocracia e decisões delicadas”, diz Robert Kahn, diretor global de macroeconomia da Eurasia, maior consultoria de risco político do mundo. 

Refinaria de petróleo na Rússia: boa parte do mercado de energia teme negociar com empresas por causa das sanções e dos riscos à reputação (Andrey Rudakov/Bloomberg/Getty Images)

Hoje, 66% do petróleo russo tem dificuldade em encontrar compradores, segundo o JPMorgan, maior banco em valor de mercado do mundo. O setor, atento a possíveis enroscos com pagamentos feitos a empresas russas e questões relativas à reputação, colocou o pé no freio em negócios com a nação liderada por Vladimir Putin. As grandes companhias do setor de óleo e gás deram alguns passos a mais. A Shell anunciou a decisão de suspender todas as operações na Rússia, incluindo sua participação de 27,5% na companhia russa Sakhalin-2, responsável por 4% do fornecimento de gás natural liquefeito do mundo. A BP seguiu o mesmo caminho e deixou o gigante russo Rosneft depois de três décadas de parceria, mesmo estando sujeita a multas e encargos que podem chegar a 25 bilhões de dólares. 

(Arte/Exame)

No auge da crise, as previsões mais pessimistas apontavam o barril do petróleo a 180 dólares (ou mais) até o fim do ano. O novo surto de covid-19 em 21 províncias na China, que colocou em confinamento 37 milhões de pessoas, ajudou a jogar água na fervura das cotações, com perspectivas de redução de consumo da segunda maior economia do mundo. As conversas de paz também vêm colaborando. Mesmo assim, o cenário é nebuloso por causa da incerteza do momento e de novos desdobramentos. Consultorias como a britânica Oxford Economics preveem picos de alta seguidos de uma possível reacomodação, em níveis elevados, no segundo trimestre. “A média dos próximos três meses deverá ficar em 108 dólares, o que é puxado, ainda mais levando em consideração que no início do ano a cotação do barril estava em 80 dólares”, diz Marcos Casarin, economista-chefe para a América Latina da Oxford Economics. Na história recente, só foi pior em 2008, em um dos momentos mais conturbados do mercado, quando o petróleo bateu o recorde de 147 dólares no primeiro semestre, com o aumento da demanda dos países emergentes e tensões no Irã, para cair a 36 dólares com a crise financeira mundial. 

Também não é a primeira vez que o mundo vive uma crise desse tipo. O primeiro choque do petróleo, em 1973, determinado pela restrição de oferta da Opep em reação ao apoio americano a Israel durante a guerra do Yom Kippur, que opôs os países árabes a Tel-Aviv, provocou uma disparada de mais de 300% no preço do barril — a economia americana encolheu 2,5% em um ano e o país entrou em recessão, seguido por boa parte do restante do planeta. Em 1979, outra crise do petróleo: a revolução no Irã — e os cortes na produção da indústria de óleo e gás do país que se seguiram — deixou o mercado em polvorosa. A inflação chegou a 9% nos Estados Unidos e a taxa de juro subiu a mais de 10%, com reflexos na economia global. Hoje, o preço do petróleo se encontra ao redor dos patamares da crise de 1979, quando os preços atingiram o equivalente a 110 dólares em valores atuais. Em 1974, na primeira crise do petróleo, o barril não passou de pouco mais de 60 dólares, já descontada a inflação. “Houve uma mudança no perfil de demanda do petróleo na história recente, pois o insumo adquiriu muito mais importância para a economia global com a intensa produção de derivados como plásticos e petroquímicos em geral”, diz Rivaldo Moreira Neto, sócio-diretor da consultoria Gas Energy. “Na década de 1970, o consumo global de petróleo era bem menor, o que ajuda a explicar os preços mais baixos na época, mesmo durante choques de oferta.” Hoje, o mundo reza por outra cartilha. 

Soldado ucraniano diante de tanque russo, em Kharkov: cenas da guerra na Ucrânia chocam o mundo e levam a sanções econômicas inéditas contra a Rússia (Diego Herrera Carcedo/Anadolu Agency/Getty Images)

Uma eventual escassez de óleo e gás, acompanhada por uma elevação de custos, pode destruir economias. Na atual crise do mercado de energia, quase todos os holofotes estão voltados para a Europa, altamente dependente dos insumos fornecidos por Moscou para a geração de energia. Do total de gás importado pela Alemanha, quarta maior economia do mundo, 65% saem da Rússia. Alguns países europeus, como a República Tcheca, dependem exclusivamente dos gasodutos russos. Em relação ao petróleo, não é muito diferente: sem a commodity fornecida por Vladimir Putin, a Polônia e a Eslovênia, entre outras nações, estariam encrencadas. “Mas a principal preocupação é mesmo com a Alemanha, por sua importância nas cadeias globais de consumo e seu peso nos fluxos internacionais de comércio”, analisa Casarin. “E vamos lembrar que o mundo já estava em um momento de alta no preço das commodities e de inflação devido à retomada econômica do pós-pandemia.”

Protesto em Boston, nos Estados Unidos, contra a guerra na Ucrânia: o presidente russo Vladimir Putin está no centro de uma crise diplomática global (Joseph Prezioso/AFP/Getty Images)

A União Europeia já alertou que a região deverá ser fortemente atingida pelos efeitos da escalada de preços das commodities de energia. As projeções apontam para um crescimento da economia ao redor de 2,2%, em média, diante de uma expansão de 5% no ano passado, a metade do previsto antes da eclosão da guerra. No caso da Alemanha, o quadro é mais delicado. Depois de registrar uma queda de 0,3% no PIB no último trimestre, o país corre o risco de enfrentar novamente um baque na produção de bens e serviços. 

Com dois trimestres consecutivos de retração, a Alemanha estaria tecnicamente em recessão. O país vinha apostando no gasoduto russo Nord Stream 2, cuja inauguração estava prevista para este semestre, para repor seus estoques de gás e, acima de tudo, obter o insumo de forma mais ampla e barata. O transporte, estimado em 55 milhões de metros cúbicos de gás por ano, aconteceria diretamente entre a Rússia e a Alemanha pelo Mar Báltico, sem passar pela Ucrânia e por outros paí­ses do Leste Europeu, onde o gás é tributado. O megainvestimento de 11 bilhões de dólares no novo sistema de transporte de gás para a Europa, compartilhado entre os paí­ses europeus e a Rússia, esbarrou na guerra na Ucrânia e no pacote de sanções a Moscou, que inclui o Nord Stream 2, proibido de entrar em operação. “O preço do gás natural, que já estava bastante alto desde a retomada econômica, subiu ainda mais”, diz Neto. 

A cotação do insumo bateu um recorde histórico no início deste mês, quando atingiu 215 dólares por megawatt-hora. Na Europa, os preços já haviam aumentado quase 1.000% no ano passado. Uma combinação de alta da demanda em razão da recuperação econômica, estoques baixos e limitações de produção na Rússia e na Noruega, outro grande produtor de gás, jogaram os preços nas alturas. “O Brasil faz parte desse contexto mundial e deve sentir os reflexos da nova configuração geopolítica do mercado de energia”, afirma Casarin. A Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia (Abrace) calcula que o preço do gás natural deverá sair dos atuais 10,52 dólares por milhão de BTU para algo ao redor de 13,60 dólares em agosto, quando haverá o próximo reajuste de contratos entre a Petrobras e as distribuidoras, que são reavaliados tendo como base a variação internacional do preço do petróleo. O gás deve continuar­ em um patamar de 13 dólares até o fim do ano, de acordo com projeções da Abrace. Com isso, a indústria pagaria 25% a mais pelo insumo, em comparação aos valores atuais. É esperado um efeito em cascata em diversas cadeias produtivas, somado ao aumento do custo do combustível — no dia 10 de março, o reajuste chegou a 18,7% no caso da gasolina e a 24,9% para o diesel, empurrando o preço na bomba para mais de 7 reais em vários lugares do Brasil. 

(Arte/Exame)

Outros países enfrentam o mesmo problema com os combustíveis. Nos Estados Unidos, o galão passou de 4 dólares, ativando alarmes de que a taxa de inflação deve atingir novos patamares. Em fevereiro, antes do novo choque do petróleo, o acréscimo dos preços chegou a 7,8% em relação ao mesmo período de 2021, na maior alta mensal dos últimos 41 anos. O mercado financeiro prevê um aumento maior em março e nos meses subsequentes como reflexo dos maiores custos do setor de energia. No Brasil, a expectativa é de uma inflação na casa dos 6% até o fim do ano, de acordo com estimativas da Oxford Economics. Nos bastidores, fontes do Ministério da Economia dizem que a alta das matérias-primas utilizadas para a produção de energia, aliada aos custos elevados das commodities em geral, deve provocar uma redução de 0,5 ponto percentual no crescimento do PIB brasileiro em 2022. Isso numa perspectiva de um crescimento que era baixo antes da guerra, estimado em algo entre -0,5% e 1% pelo mercado. “Globalmente, podemos esperar uma queda de 1 ponto percentual do PIB em relação às previsões anteriores”, avalia Kahn, da Eurasia. 

Nos paí­ses que ocupam a linha de frente do agronegócio, como o Brasil, o campo deve sofrer impacto com a alta do preço dos fertilizantes, que têm o gás natural como uma de suas principais matérias-primas — e são fornecidos principalmente pela Rússia e outros países da região. Desde o início do conflito na Ucrânia, os aumentos chegaram a quase 50%. A boa notícia é que o Brasil está menos exposto aos riscos globais do mercado de óleo e gás. “O país está em uma situação confortável com relação à segurança física de suprimento de petróleo e gás, devido à produção local”, diz Mario Veiga, diretor da consultoria PSR. Ninguém sabe, porém, o custo total para o Brasil e para o mundo das consequên­cias da insanidade que é a guerra na Ucrânia. Isso, só o tempo dirá.  

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