Metrô na China: supermercados estão instalando gôndolas que permitem comprar pelo celular e receber em casa (Shqnb/Latinstock)
Da Redação
Publicado em 7 de abril de 2014 às 19h17.
San Bruno - Sentado numa pequena sala de reuniões, com os cotovelos apoiados sobre a mesa e segurando um iPhone próximo à boca, Gibu Thomas, vice-presidente responsável pela operação digital do varejista Walmart, a maior empresa do mundo, fala pausadamente num inglês com sotaque indiano: “Leite, pão, queijo e... suco de maçã.
Em menos de 1 segundo, um aplicativo começa a montar uma lista de supermercado já com a marca de cada produto geralmente comprada por Thomas. Mal ele acaba de falar, também aparece quanto ele gastará e a localização da loja do Walmart mais próxima, um recurso já em fase operacional em todos os Estados Unidos.
“Agora, estamos trabalhando para que, com base no histórico do usuário, o aplicativo sugira automaticamente uma lista de compras assim que o consumidor entrar na loja. Além disso, a nova versão do aplicativo vai indicar o local exato de cada produto nos corredores”, diz Thomas, que bate ponto num prédio de seis andares próximo à sede do YouTube, em San Bruno, cidade a alguns quilômetros ao sul de São Francisco.
O fato de a tradicionalíssima Walmart, com sede no estado do Arkansas e famosa por sua histórica antipatia ao mundo digital, ter se rendido ao Vale do Silício e montado um braço de inovação na Califórnia com 500 funcionários é a maior prova da revolução em curso no mundo do varejo. O símbolo desse novo momento está na mão de Thomas: o smartphone.
Desde que Steve Jobs mostrou ao mundo a primeira versão do iPhone, em 2007, os smartphones tiveram grande impacto na maneira como trabalhamos, registramos momentos importantes e nos deslocamos. Seria natural, portanto, que eles influenciassem a forma como consumimos. É essa crença que levou o Walmart e mais uma legião de empresas a uma nova corrida tecnológica.
Na China e na Coreia do Sul, redes de supermercados estão espalhando gôndolas interativas em locais de grande fluxo de pessoas, como metrôs. A tecnologia permite que o usuário faça suas compras pelo celular, escaneando o código de barras dos produtos, que são entregues horas depois em casa.
Nos Estados Unidos, o aplicativo da rede Starbucks avisa, com base na localização do GPS do usuário, em quantos minutos ele deverá chegar à loja para pegar o café que acabou de comprar pelo celular. Na Finlândia, quem vai a uma loja da Adidas não precisa se preocupar com o horário de funcionamento.
Depois de fechada, uma vitrine eletrônica exibe os produtos em imagens em 3D e permite comprá-los tirando uma foto pelo celular. “O smartphone está transformando drasticamente a experiência de compra do consumidor”, afirma Brendan O’Brien, diretor global de mobilidade da gigante de tecnologia Cisco.
“Os varejistas descobriram que o celular é a melhor forma de levar a eficiência do mundo online para as lojas”, diz. Os smartphones, em suma, estão acabando com a fronteira entre o mundo digital e o mundo real.
Todo o avanço tecnológico produzido ao longo das últimas duas décadas pela era da internet está invadindo supermercados, concessionárias de veículos e shopping centers. Os consumidores têm, pela primeira vez, uma tecnologia na palma da mão que permite obter informações sobre os produtos dispostos à sua frente.
Podem comparar o preço oferecido ali com o dos principais concorrentes, ler resenhas de pessoas que já compraram o produto e, se estiverem encantados pelo televisor ou pelo carro e não conseguirem barganhar com o vendedor, podem comprar de um concorrente ali mesmo.
O site brasileiro Netshoes, especializado em produtos esportivos, criou recentemente um aplicativo para atrair consumidores de shopping centers. A pessoa que estiver experimentando um tênis numa loja pode tirar uma foto e imediatamente terá na tela de seu smartphone o preço cobrado pela Netshoes.
“Foi a forma que encontramos para levar o canal digital para o mundo offline”, afirma Rodrigo Nasser, vice-presidente de tecnologia da empresa. Para os analistas do setor, os maiores beneficiados por essa corrida tecnológica são os consumidores. O poder, afinal, está migrando para suas mãos.
Paradoxalmente, os smartphones também criam a oportunidade para que os varejistas tradicionais se revitalizem, como mostra o exemplo do aplicativo do Walmart que deverá sugerir uma lista de compras personalizada. Ao analisar o uso de aplicativos pelos seus consumidores dentro e fora das lojas, as grandes redes conseguem reunir milhares de dados reveladores sobre preferências e hábitos.
No fim, tudo isso se traduz num maior engajamento do consumidor. Os clientes do Walmart que entram nas lojas com o aplicativo do supermercado já em operação gastam, em média, 40% mais do que os outros consumidores.
No fim de 2013, consultorias como Bain&Company, Forrester, PwC e Deloitte publicaram pesquisas mostrando que consumidores com o celular na mão dentro da loja tendem a gastar mais, pois se sentem mais seguros na hora da compra dada a quantidade de dados a seu dispor.
“Informações relevantes sobre os produtos são fatores que pesam muito na hora da compra. Às vezes, mais do que o preço”, diz a indiana Sucharita Mulpuru, vice-presidente de pesquisa da consultoria americana Forrester.
Para os varejistas tradicionais, armazenar bilhões de bites de cada consumidor e analisá-los já não é uma barreira intransponível. A computação em nuvem fez despencar o custo de estocagem, e os softwares conhecidos como big data já são capazes de analisar um grande volume de dados em tempo real.
É essa combinação de fatores que serve de pano de fundo para a revolução em curso no varejo, um processo que coloca em xeque a distinção entre as lojas tradicionais e o e-commerce.
A receita global do comércio eletrônico hoje totaliza 1,2 trilhão de dólares — um número nada desprezível, mas que representa somente 5% do total movimentado pelo varejo no mundo. No Brasil, a participação é ainda menor — os varejistas online faturaram 29 bilhões de reais em 2013, 3,5% do total do setor.
À medida que as lojas se tornam centros de experimentação de novas tecnologias, a tendência é que também sejam consideradas digitais. De acordo com a consultoria Forrester, hoje 40% das vendas que ocorrem nas lojas americanas são influenciadas por canais digitais, principalmente smartphones.
Em 2017, esse percentual deverá crescer para 60%. Isso não quer dizer necessariamente que a transação será concluída nos smartphones, mas sim que a decisão de compra — na loja ou no site — será tomada com base em informações obtidas nesses aparelhos.
A rede de lojas de departamentos Macy’s, fundada em 1851 nos Estados Unidos, é uma das 100 grandes varejistas que estão testando uma tecnologia chamada iBeacon, da Apple. O sistema permite não só saber que determinado cliente entrou na loja como também oferecer dicas e alertas sobre promoções de acordo com a localização dele dentro do prédio.
A identificação é feita pela conexão Bluetooth dos celulares, que se comunica com sensores espalhados pelo estabelecimento. Com base nas projeções de vendas de smartphones em escala global, a Apple acredita que o potencial da tecnologia iBeacon não ficará restrito ao mercado americano.
Segundo a consultoria de tecnologia americana eMarketer, o número de celulares no mundo deverá romper a barreira dos 4 bilhões até o fim de 2014. Desse montante, 1,7 bilhão serão smartphones. Até 2017, mais da metade dos 5,3 bilhões de telefones terá aplicativos, conexão Wi-Fi e GPS.
Para entrar na história
A expansão das redes férreas, a introdução dos telégrafos e a adoção de computadores no gerenciamento de estoques de fornecedores deixaram cada uma sua marca no varejo. Essas e tantas outras inovações ocorridas desde que a Revolução Industrial inaugurou a era da produção em massa aumentaram a escala e a produtividade do comércio.
Com esses avanços, os intermediários entre os produtores e os consumidores finais, para ficar na definição clássica de um varejista, conseguiram fazer cada vez mais e melhor. A transformação em curso agora promete ser de outra natureza. Tem tudo para ser disruptiva. Para vencer neste bravo novo mundo, os varejistas deverão se tornar cada vez mais companhias de tecnologia da informação.
“À medida que esse fenômeno ganhe força, todos serão meio Amazon, a empresa que desbravou como nenhuma outra o atendimento personalizado com investimento em tecnologia”, diz Marcelo Tripoli, presidente no Brasil da Sapient Nitro, agência de publicidade especializada em estratégia digital.
O caminho natural para os varejistas será unir todas as experiências de compra num sistema único, acessível em qualquer canal de venda. “É o cliente quem escolherá como vai comprar e onde retirará o produto”, diz Sima Nadler, pesquisadora-chefe da área de varejo da empresa de tecnologia IBM.
Na última edição do estudo sobre tendências Five in Five, da IBM, a integração entre os ambientes digital e offline dos varejistas é apontada como uma das cinco tecnologias que transformarão o mundo nos próximos cinco anos. No Brasil, são poucas as empresas que já estão conseguindo integrar os ambientes online e digital de forma eficiente.
O Grupo Pão de Açúcar testa desde o ano passado em alguns de seus supermercados em São Paulo um sistema que permite ao consumidor fazer suas compras online e, poucas horas depois, passar para pegar os produtos na loja. O que parece simples envolve a unificação de centros de distribuição e o treinamento de funcionários — sem falar em questões tributárias.
A varejista de moda Passarela, que tem 40 lojas no interior de São Paulo, viu seu negócio crescer consideravelmente depois de unir as operações. Hoje, uma cliente que vai a uma loja atrás de um calçado e não encontra o número em estoque recebe o produto no outro dia em sua casa.
Quem compra online e não gosta pode trocar na loja. “Para incentivar o vendedor, pagamos a mesma comissão se ele vender online ou dentro da loja”, diz Vanoil Pereira, presidente da Passarela.
Confiante de que empresas de porte menor também querem seguir o caminho de Pão de Açúcar e Passarela, o site americano Groupon promete oferecer em breve no Brasil sistemas de gestão para unir as operações online e offline já disponíveis no exterior.
O Groupon, que surgiu em 2008 como precursor do fracassado modelo de compras coletivas, soube se reinventar oferecendo uma série de serviços para o pequeno comércio. Para restaurantes, a empresa vende um sistema de reservas que se comunica diretamente com o celular do cliente.
Pelo aplicativo, o consumidor é avisado em quanto tempo terá uma mesa e pode até adiantar o pedido dos pratos. A conta é paga com o número de um cartão de crédito registrado previamente pelo cliente. Um sistema parecido funciona para pequenas lojas.
Um americano que esteja de férias na China e seja surpreendido por uma tempestade pode procurar, com a ajuda do GPS do smartphone, qual é a loja de guarda-chuvas mais próxima. Pelo aplicativo, pode deixar o produto pago e, ao entrar na loja, recebê-lo das mãos do comerciante.
“O vendedor não precisa nem falar o idioma do cliente. O sistema comanda todo o processo”, afirma o americano Rich Williams, vice-presidente global do Groupon.
O público e o privado
Como é comum ocorrer com tecnologias que ascendem muito rapidamente, inovações que podem ser usadas de forma mais invasiva, como a geolocalização e o reconhecimento facial, geram debates acalorados entre os usuários.
A rede de supermercados britânica Tesco, que testa algumas vitrines interativas em metrôs e aeroportos, foi criticada por órgãos de proteção ao consumidor depois de armazenar imagens de seus clientes sem autorização prévia. Com base na foto, o sistema verificava o sexo, a idade e até o estilo de se vestir da pessoa que olhava para a vitrine.
“Isso mostra como o uso de tecnologia por alguns varejistas extrapola os limites do que é aceitável”, afirma a inglesa Emma Carr, diretora da ONG dedicada a direitos civis Big Brother Watch. “O mínimo que eles deveriam fazer é pedir a autorização do cliente.”
Para os defensores do uso dessas novas tecnologias, o “modelo Google”, aquele que troca as informações cedidas pelos usuários por um serviço melhor e gratuito, como o Gmail, deveria servir de inspiração para o varejo.
“A geolocalização mostrou-se uma excelente forma de melhorar a experiência de compra do cliente dentro da loja”, afirma a americana Julie Krueger, diretora do Google responsável pelo setor do varejo.
“Ao mesmo tempo, está ajudando varejistas online, como Amazon e Netshoes, a descobrir que seus clientes estão prestes a entrar num shopping e oferecer algum tipo de promoção. Faz todo sentido pensar em como diminuir as resistências de quem se sente invadido”.
Em meados de janeiro, a Amazon deu sinais de que deve expandir uma vez mais a fronteira do varejo. A empresa planeja despachar pacotes antes mesmo de os clientes realizarem a compra. Softwares vão analisar o histórico do cliente, as buscas recentes e até o tempo que o mouse fica parado sobre a foto de um produto.
Com tudo isso, a Amazon criará um índice para medir a probabilidade de uma aquisição. Se for muito alta, o artigo será enviado mesmo sem a confirmação da operação. Quem comprar poderá receber o produto em poucas horas. Caso o consumidor mude de ideia e não realize a compra, o caminhão voltará para o centro de distribuição.
Numa era de mudanças tecnológicas aceleradas, esse plano não chega a ser uma surpresa. Alguma dúvida de que estamos em plena revolução do consumo?