Eleusa, Luiz Alexandre e Marianna, representantes dos três núcleos da família Garcia, controladora do Algar: receita para acabar com as brigas (Fabiano Accorsi/EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h38.
Quando decidiu profissionalizar a gestão do Algar, grupo mineiro com faturamento de 3,2 bilhões de reais com negócios em agricultura, telecomunicações e turismo, o então presidente Luiz Alberto Garcia encontrou uma muralha erguida pela própria família. As mudanças começaram em 1990 e, pelos dez anos seguintes, Garcia envolveu-se em brigas com alguns de seus parentes mais próximos. O desgaste emocional daqueles anos foi enorme. Mas hoje não há quem levante a voz durante os tradicionais jantares de família - normalmente arrematados com taças de vinho do Porto - para criticar a reestruturação promovida por Luiz Alberto, hoje presidente do conselho de administração. As disputas familiares no seio do Algar estão cada vez mais raras e - mais importante - não afetam mais o desempenho dos negócios. O grupo controlado pelos Garcia conseguiu, assim, afastar de si um dos mais mortíferos venenos para as companhias familiares, causa da morte ou da troca de comando de muitas delas ao longo da história do capitalismo. Como disse magistralmente Leon Tolstoi na abertura de Anna Karenina: "Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira". Não existem fórmulas acabadas para garantir a perenidade de uma empresa familiar - e nem mesmo para lidar com seus conflitos. Mas o sucesso de certas companhias nos processos de sucessão dá pistas valiosas de caminhos que podem ser seguidos.
No Algar, a criação de um plano de sucessão para os herdeiros foi crucial para a pacificação do clã. A empresa foi dividida em três holdings, de modo a abrigar os três núcleos da família (cada um deles capitaneado por um dos filhos do fundador, Alexandrino Garcia). Assim, as sucessões acontecem sempre dentro dessas holdings, sem que um núcleo se envolva nas questões do outro, e são feitas cedo - os 40 integrantes da quarta geração, hoje na casa dos 30 anos de idade, já estão começando a receber suas ações. "Estamos passando com tranquilidade por uma fase que pode ser traumática para qualquer empresa", diz Luiz Alexandre Garcia, filho de Luiz Alberto e atual presidente do Algar.
Problemas que começam entre os herdeiros - de traumas de infância a lutas pelo poder - e são levados para dentro da empresa são a principal causa de mortalidade em companhias familiares. De acordo com o americano John Ward, professor da escola de negócios Kellogg, brigas societárias provocam o fim de 65% dos negócios familiares no mundo. Lidar com esses conflitos extrapola o campo profissional, gera mágoas e, por isso mesmo, costuma ser evitado por parte das famílias. Trata-se de um erro, segundo os especialistas da área. A letargia em procurar saídas de convivência pacífica entre negócio e família traçou o destino da cervejaria Anheuser-Busch. Sob a administração de August Busch IV, a companhia padeceu de uma lenta agonia a partir da década de 90. Em pouco mais de dez anos, a participação da Budweiser, sua principal marca, caiu pela metade nos Estados Unidos. Com um desempenho tão fraco, o natural seria demitir Busch IV - mas a família era completamente desarticulada e não fez nada para resolver a questão. O final da história se tornou mundialmente conhecido: a AB foi vendida à InBev em 2008. "Sem disciplina, a família pode tanto ficar indiferente à companhia quanto tentar tirar vantagem dela. E os dois cenários são terríveis", diz John Davis, professor de Harvard e um dos maiores especialistas globais em negócios familiares. Em maio, Davis inaugurou uma unidade de sua consultoria, a Cambridge Advisors, em São Paulo - a primeira fora dos Estados Unidos. O Brasil foi escolhido, segundo Davis, por apresentar o maior número de companhias familiares entre os países emergentes.
Quanto mais antiga a empresa e maior o número de gerações envolvidas, maiores as chances de conflito. Imagine o potencial explosivo que existiria numa companhia como a rede de luxo francesa Hermès, com 173 anos de história - e que já está em sua sétima geração. Hoje, há 130 descendentes vivos do fundador Thierry Hermès, um artesão que montou uma pequena oficina de fabricação de arreios para cavalos em Paris, no século 19. Eles controlam 75% das ações de um dos maiores conglomerados de luxo do mundo (o restante é negociado na bolsa), com faturamento anual de 1,9 bilhão de euros e mais de 300 lojas espalhadas por 25 países. Seria impossível administrar essa estrutura sem uma boa dose de organização. Na Hermès, a família é responsável por manter viva a obsessão pela qualidade, que fica visível no acabamento - e no preço - de itens como a bolsa Birkin, que pode custar mais de 30 000 dólares. Hoje, 30 representantes da quinta e da sexta geração, com idades acima de 30 anos, participam do conselho de família, e também de 15 conselhos de administração das diversas subsidiárias do grupo. O objetivo primordial do conselho de família na Hermès é - em primeiro lugar - manter a cultura de qualidade criada por seu fundador. E tomar decisões estratégicas, que serão executadas no dia a dia dos negócios. (Curiosidade: nenhum dos 11 integrantes do conselho familiar carrega o sobrenome Hermès. Em algum momento da história familiar, todos os descendentes eram mulheres que se casaram e transmitiram o sobrenome dos maridos aos filhos.) Há apenas oito familiares entre os 8 000 funcionários. Até mesmo o presidente do grupo, Patrick Thomas, veio de fora. "Não olhamos o sobrenome. Contratamos pessoas competentes e que valorizem nossa cultura", afirmou a EXAME Bertrand Puech, presidente do conselho de família da Hermès e tetraneto de Thierry Hermès, que esteve no Brasil em maio para um evento da HSM.
Permitir ou não a participação de familiares em cargos executivos é um dos maiores dilemas de qualquer companhia. Para evitar crises de ciúme e puxadas de tapete, algumas simplesmente proíbem os parentes de participar da gestão. O problema é que construir uma muralha entre a família e a empresa raramente é a melhor saída. "O ideal é definir critérios para a participação dos descendentes", diz a consultora Betânia Tanure. Para assumir um cargo executivo no grupo de comunicação gaúcho RBS, por exemplo, os familiares precisam ter mais de 25 anos de idade, cursar pós-graduação no exterior e ter experiência profissional em outras companhias. Foi esse o roteiro percorrido por Eduardo Melzer, neto do fundador do grupo, que em janeiro assumiu a vice-presidência executiva. Antes de chegar ao posto, Melzer fez MBA em Harvard e teve dois negócios próprios - uma distribuidora de doces em Porto Alegre e uma agência de publicidade em Nova York. Além disso, passou sete anos cuidando da área de vendas da RBS em São Paulo. Nesse período o faturamento da unidade subiu de 20 milhões para 125 milhões de reais. "Definimos critérios rígidos para estimular os jovens a alçar voos próprios", diz Nelson Sirotsky, presidente da RBS. "Essa experiência anterior pode ser muito importante para o grupo no futuro."
Experiência é fundamental não só para os executivos como também para os próprios acionistas. Afinal, mesmo aqueles familiares que não se interessam em participar da gestão vão eventualmente herdar ações - e um grupo de acionistas despreparados pode trazer um bocado de problemas. "O ideal é que os jovens sejam preparados para tomar decisões complexas sobre o negócio", diz Wagner Teixeira, sócio da consultoria Höft, especializada em companhias familiares. A rede de serviços automotivos DPaschoal, fundada em 1952, encontrou uma solução caseira para esse treinamento. Em 1998, a empresa montou um negócio completamente diferente de seu ramo de atuação - uma academia de ginástica - para funcionar como uma academia de gestão para 15 descendentes, que na época tinham entre 15 e 30 anos de idade. Eles assumiram o comando da academia e ocuparam os cargos do conselho de administração. Dessa forma, viram na prática quais são as maiores dificuldades para administrar uma empresa. Em 2008, quando os jovens se mostraram prontos para assumir postos no conselho de administração e na assembleia de acionistas da DPaschoal, a academia foi vendida. "Vamos repetir a experiência no futuro, quando a quarta geração, que hoje tem cerca de 10 anos de idade, estiver mais madura", diz o conselheiro Orlando Paschoal.
Para garantir sua perpetuidade, algumas empresas estão testando soluções, digamos, mais heterodoxas. A americana Brown-Forman, fundada em 1870 e fabricante do uísque Jack Daniel's, por exemplo, criou em 2009 o cargo de diretor de relações com a família - ainda inédito entre as companhias brasileiras. O trabalho desse executivo consiste em fornecer aos familiares informações sobre a companhia, organizar cursos e até ajudar a contratar estagiários entre os herdeiros mais jovens. "O senso comum diz que profissionalizar uma empresa é afastar a família do dia a dia", diz Eduardo Gentil, ex-executivo do banco Goldman Sachs em Nova York e representante da Cambridge Advisors no Brasil. "Mas o segredo é disciplinar as relações, já que uma não vive sem a outra."
"O maior desafio é educar os herdeiros"
Em 1837, o francês Thierry Hermès abriu uma loja em Paris para vender selas e baús produzidos artesanalmente. Passados mais de 170 anos, o pequeno negócio se transformou numa das mais poderosas marcas de luxo do planeta. Em recente visita ao Brasil, Bertrand Puech, presidente do conselho de família da Hermès, contou como a empresa conseguiu aliar longevidade a crescimento.
EXAME - Que vantagens uma companhia familiar como a Hermès, com 173 anos de história, tem sobre outros tipos de empresa?
Bertrand Puech - Todas as decisões que tomamos são focadas no longo prazo. Pensamos 20, 30 anos à frente. Por isso conseguimos sobreviver às crises e manter a mesma estratégia há quase dois séculos. Na última crise tivemos mais uma mostra de que estamos no caminho certo. Nosso faturamento de 1,9 bilhão de euros em 2009 foi 10% superior ao de 2008.
EXAME - Como manter a cultura familiar em uma empresa em expansão?
Bertrand Puech - O principal é cuidar da educação. Não educamos nenhum de nossos filhos para trabalhar no grupo, mas para entender desde cedo o espírito Hermès. Somos uma empresa de artesãos, que trata cada item como uma peça única. E tentamos transmitir isso de geração para geração. Eu, por exemplo, me lembro muito bem de minha primeira visita a uma loja - eu tinha apenas 4 anos e fui levado pela minha mãe. Eu não entendia muito bem por que, antes de fazer essas visitas, eu tinha de me vestir impecavelmente e passar goma no cabelo. Mas, aos poucos, tudo ficou muito claro.
EXAME - Após sete gerações, os mais jovens ainda valorizam essa cultura?
Bertrand Puech - Esse é um de nossos maiores desafios. Quando eu era criança, a empresa tinha apenas 200 funcionários e eu tinha 16 primos. Hoje, nossa família tem 75 membros da sétima geração. Por isso, comecei a organizar visitas guiadas. No início de maio, um grupo de 12 jovens entre 10 e 15 anos foi à nossa principal unidade, em Paris. Nos próximos meses, vamos levá-los para conhecer também alguns fornecedores estratégicos na França.
EXAME - Qualquer familiar pode trabalhar no grupo?
Bertrand Puech - Quem tiver interesse precisa preencher os requisitos de qualquer outro candidato. Entre eles, experiência em outras companhias e conhecimento profundo do setor. Hoje, temos apenas oito familiares entre os 8 000 funcionários no mundo. E eles não têm privilégios.
EXAME - De que outra forma a família se envolve nos negócios?
Bertrand Puech - Temos um conselho de família formado por 11 representantes da quinta e da sexta geração. Esse conselho administra 75% das ações do grupo e é quem toma as decisões estratégicas. Temos outros 20 familiares espalhados em 15 conselhos de administração de nossas subsidiárias - como a de perfumes, a de relógios e a de artigos para casa. O envolvimento dessas pessoas é importante porque elas levam a cultura de nossa família para todos os setores do grupo. E é isso que vai perpetuar a companhia por muitos e muitos anos.