Revista Exame

Para onde vai a América Latina?

Para o americano Scott Mainwaring, as recentes turbulências são um teste para a democracia na região, após anos seguidos de mau desempenho na economia

O cientista político Scott Mainwaring: “No mundo todo vem crescendo uma insatisfação com a democracia” (Matt Cashore/University of Notre Dame/Divulgação)

O cientista político Scott Mainwaring: “No mundo todo vem crescendo uma insatisfação com a democracia” (Matt Cashore/University of Notre Dame/Divulgação)

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Filipe Serrano

Publicado em 22 de novembro de 2019 às 05h28.

Última atualização em 22 de novembro de 2019 às 06h28.

Considerado um dos políticos mais renomados no estudo dos sistemas políticos na América Latina, o americano Scott Mainwaring tem acompanhado com perplexidade a sequência de acontecimentos na região nos últimos meses.

Para ele, a instabilidade política no Peru, as manifestações no Chile e no Equador, além da conturbada saída do agora ex-presidente boliviano Evo Morales do poder são exemplos dos desafios que a democracia ainda enfrenta em países dessa parte do planeta décadas após a redemocratização.

Em entrevista a EXAME, concedida por telefone de seu escritório na Universidade de Notre Dame, em Indiana, nos Estados Unidos, ele afirma que desempenho econômico ruim, problemas sociais não resolvidos, além de escândalos de corrupção e violência do crime organizado estão por trás de uma insatisfação que leva a essa instabilidade. “Ter instituições sólidas é um antídoto contra uma erosão democrática. E é especialmente importante ter partidos políticos sólidos e um sistema judiciário que trabalhe bem”, diz Mainwaring.

O senhor vê razão para os países da América Latina estarem vivenciando turbulências políticas em sequência nos últimos meses?

Há um efeito em cascata das manifestações. O que acontece em um país afeta a percepção pública de outro país e aumenta a possibilidade de uma ação coletiva. Mas também temos de considerar o fator econômico.

Em que sentido?

Varia muito de país para país, mas, em geral, desde o fim do boom de commodities, as democracias da América Latina não tiveram um bom desempenho econômico. Agora já faz cinco ou seis anos que aquele ciclo de bonança se encerrou. E o cenário econômico tornou mais difícil para os governos ter sucesso. O exemplo do Brasil, claro, mostra como o fim do superciclo de commodities e má gestão da economia levaram a uma recessão longa e aprofundada, e a um grande desencantamento não só com o antigo establishment mas também com o Partido dos Trabalhadores. Isso levou à eleição de um presidente com um discurso claramente autoritário. Na Argentina, em 2019, o desempenho econômico ruim do governo de Maurício Macri levou a uma alternância de poder. A economia continua sendo um ingrediente importante. Além disso, no mundo todo vêm crescendo uma insatisfação com a democracia e um questionamento de sua legitimidade. Não é algo que ocorre em todos os países, claro. Mas países importantes passam por isso.

Como explicar o caso do Chile, que teve um desempenho melhor na economia?

A democracia chilena teve muitos sucessos. Crescimento econômico, redução de pobreza, estabilidade do governo, múltiplas alternâncias de poder. Mas há também déficits. A participação eleitoral declinou com o tempo. A identificação com os partidos políticos caiu profundamente. Os mais jovens não estavam votando. O fato de a democracia ser tão centrada na elite e não ter tido sucesso em reduzir a desigualdade, em melhorar a educação pública, em reformar um sistema de pensões disfuncional contribui para a insatisfação. Lembrando o que o economista Albert Hirschman argumentava: num país como o Chile, em que a democracia solucionou muitos problemas, é fácil se acostumar com o fato de que agora todos têm água encanada, ruas pavimentadas e empregos melhores do que nos anos 80. Mas a democracia, quando tem sucesso, gera novas expectativas e demandas. Isso é parte do que ocorre hoje no Chile e, provavelmente, no Peru e em outros países.

Há semelhanças no caso da Bolívia, que destituiu o presidente Evo Morales?

Não acho que esse seja bem o caso na Bolívia. Porque na Bolívia a divisão está muito concentrada entre os manifestantes pró-Evo e os manifestantes anti-Evo. No Chile, os protestos não têm seguido uma linha partidária clara. Não são manifestantes partidários. Por esse ângulo, os protestos no Chile são mais parecidos com os que ocorreram no Brasil em 2013 do que com os da Bolívia em 2019. Reúnem pessoas que estão cansadas do sistema e querem mudança.

Olhando para os acontecimentos na história da América Latina, o senhorvê algo parecido com o que está ocorrendo atualmente?

Há muitas diferenças, mas talvez a fase mais parecida seja o período entre o começo e a metade dos anos 2000. O que era semelhante naquela época é que havia insatisfação com os resultados medíocres de políticas econômicas direcionadas ao mercado. Especialmente entre 1998 e 2003, em média, as economias da América Latina não tiveram nenhum crescimento. A promessa era que, se os países adotassem políticas favoráveis ao mercado, a economia cresceria e a vida  da população melhoraria. No entanto, isso não aconteceu. Naquele tempo, não houve muitas manifestações massivas, com exceção da Bolívia e do Equador. Mas havia uma grande inquietação. E, claro, ela levou ao que se tornou a “onda da esquerda” da América Latina, começando com a eleição de Hugo Chávez em 1998 e sua posse em 1999, na Venezuela. As similaridades entre hoje e o início dos anos 2000 são a sensação de insatisfação e a demanda por algo diferente e melhor.

O que estamos vendo agora é um fortalecimento ou um enfraquecimento da democracia na América Latina?

Essa é uma questão completamente em aberto. Minha visão pessoal é que no caso do Brasil houve uma erosão da democracia. Certamente ela não se rompeu. No entanto, as profundas insatisfações levaram à eleição de um presidente que não é um democrata. Mas esse não é um desfecho inevitável para os demais países da América Latina. Em minha visão, é perfeitamente possível que, no Chile, as manifestações levem a reformas que fortaleçam a democracia no sentido de torná-la mais inclusiva, abrindo as portas para uma nova Constituição democrática. E, no melhor cenário, também leve a uma democracia que seja socialmente mais responsável e mais eficaz em reduzir a desigualdade, em melhorar a educação, em aprimorar o sistema de aposentadorias. Mas o desfecho dessas manifestações é algo em aberto. O lado oposto desse espectro seria o surgimento de um líder autoritário demagogo que se aproveite da agitação provocada pelas manifestações para vencer as eleições e, em seguida, presidir um governo que enfraqueça a democracia. Não acho que seja muito provável isso ocorrer no Chile, mas é possível.

O que é necessário fazer para evitar esse segundo cenário?

Ter instituições sólidas é um antídoto contra uma erosão democrática. E é especialmente importante ter partidos políticos sólidos e um sistema judiciário que trabalhe bem. E a última coisa absolutamente indispensável — e isso é onde o Brasil falhou — é ter políticos que governem decentemente. Se isso não ocorre e as instituições se tornam mais fracas, está pronta a receita para uma erosão democrática. O Chile tem seguido bem essa fórmula. Ainda é um país de sucesso, mas em algumas dimensões fundamentais — educação, aposentadoria, desigualdade social — não tem se saído bem. Uma óbvia lição do caso do Brasil é que corrupção maciça e má gestão econômica enfraquecem a democracia. E, se o país elege alguém com um discurso autoritário, está vulnerável a uma erosão da democracia. Se voltarmos e olharmos o discurso e o comportamento de Hugo Chávez no início, em 1999, já era possível identificar que esse homem era um autoritário. A mesma coisa se dá com o presidente Donald Trump. O que salvou os Estados Unidos até agora é o fato de que temos instituições fortes.

Protesto no Chile: “A democracia gera novas expectativas e novas demandas” | Marcelo Hernandez/Getty Images

Há instituições sólidas como as dos Estados Unidos em algum país na América Latina?

O Uruguai, a Costa Rica e, eu diria também, o Chile são, de longe, os países que se destacam como aqueles que possuem as instituições mais sólidas na América Latina. E, portanto, eles são os países em que uma erosão da democracia é menos provável que ocorra. Dito isso, também é possível dizer que, com exceção de paí-ses como Venezuela, Nicarágua, obviamente Cuba e, em alguma extensão, a Bolívia, a democracia de fato sobreviveu nestas últimas décadas na América Latina. Felizmente, até o momento não houve tantos casos assim de uma erosão profunda da democracia.

O que manteve essa estabilidade?

Uma razão é que as pessoas tinham vivido sob a ditadura e sabiam como ela era um regime ruim. O que ajudava muito também era que os Estados Unidos apoiavam a democracia no mundo de uma forma contínua. A ajuda nunca foi completamente consistente, mas bastante contínua, do fim da Guerra Fria até Trump ser eleito presidente. E certamente o período do boom das commodities ajudou a fortalecer a democracia porque permitiu um bom desempenho econômico e social. Essas são algumas das coisas que ajudaram a democracia a sobreviver.

É possível esperar que essas características voltem a existir?

Não há nenhuma indicação de um novo boom de commodities. Pelo contrário. Parece que a economia internacional está muito lenta. Nunca sabemos quando a situação vai mudar para melhor. Mas não há indicação desta vez de que isso deve ocorrer no curto prazo. Outro ponto é que, em muitos países latino-americanos, a corrupção e o crime organizado são fatores que deslegitimam a democracia. Descobrir medidas efetivas para combater o crime e a corrupção é parte importante da agenda democrática, além da agenda tradicional — social e econômica. 

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