Revista Exame

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

Crédito mais limitado, juros altos, renda defasada e preços elevados dificultam a aquisição de imóveis pelo segmento

Flávia Lambiasi e Diogo Medina: “Conseguir o dinheiro para dar a entrada é uma barreira por si só” (Leandro Fonseca/Divulgação)

Flávia Lambiasi e Diogo Medina: “Conseguir o dinheiro para dar a entrada é uma barreira por si só” (Leandro Fonseca/Divulgação)

Rebecca Crepaldi
Rebecca Crepaldi

Repórter de finanças

Publicado em 21 de novembro de 2024 às 06h00.

A professora Flávia Lambiasi, 27, e o editor de vídeo Diogo Medina, 26, namoram há mais de dois anos e, ao completarem um ano, começaram os planos para morar juntos. Diogo morava em Vargem Grande, a 40 km de São Paulo, e vinha para a capital três dias por semana para trabalhar presencialmente e encontrar Flávia. “Ele demorava duas horas para chegar.” As buscas por um lugar para chamar de seu começaram e, claro, os gostos prevaleceram: Flávia não gostaria de sair do bairro em que cresceu, a Vila Madalena, zona oeste de São Paulo. No entanto, o amor pela região teve um custo.

O casal mal conseguia achar um aluguel que se enquadrasse no que poderiam pagar, quanto mais adquirir um apartamento. “Não chegou nem a ser uma possibilidade comprar, porque seria totalmente fora do nosso orçamento. Mesmo se juntássemos nossos dois salários, não daria”, conta Diogo. Os jovens fazem parte da chamada classe média. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) considera as famílias de classe média aquelas com renda domiciliar per capita entre R$ 1.926 e R$ 8.303 por mês.

Após muitas buscas, encontraram um local no estilo que queriam: 57 metros quadrados, dois quartos, com todos os cômodos divididos. Mas não no bairro que desejavam: foram para perto, na Vila Romana.

A história de Flávia e Diogo ilustra o grande desafio que a classe média vive atualmente para encontrar um imóvel, tanto para aluguel como para venda. Sempre é necessário abrir mão de algo, seja localização, metragem, número de cômodos ou comodidades do condomínio, como vaga, piscina e academia. Mas, claro, se pagar mais, tudo é possível. O apartamento em que eles moram atualmente vale cerca de 780 mil reais. Em 1995, se observada a correção pelo Índice Nacional de Custo de Construção (INCC), esse imóvel custava 100.000 reais. Naquela época, eles comprariam esse apartamento com 100 salários médios. Hoje, teriam que desembolsar algo perto de 262 salários para o mesmo imóvel, segundo cálculos elaborados pelo DataZap/Grupo OLX.

Em outra simulação, ainda em 1995, com uma renda na época de 2.527 reais (equivalente hoje a 15.000 reais corrigidos pela inflação, próximo da renda do casal), eles poderiam comprar um imóvel de R$ 93 mil com dois dormitórios em bairros como Brooklin e Moema – regiões com o metro quadrado mais caro que até que a Vila Madalena.

Em 2024, com o poder de compra mais reduzido, Diogo e Flávia conseguem comprar um apartamento equivalente, que hoje valeria cerca de 560 mil reais, em lugares como Limão e Jabaquara – regiões com o valor do metro quadrado mais barato. “De um lado, o valor dos imóveis tem aumentado. Do outro, a renda das famílias cresce de forma mais moderada e ainda é pressionada pelo aumento do custo de vida”, diz Coriolano Lacerda, gerente de Pesquisa e Inteligência de Mercado no Grupo OLX.

A perda de poder de compra é visível em todos os sentidos. De setembro de 2012 até o mesmo mês de 2024, houve um crescimento de 10,5% na renda do brasileiro, enquanto o preço dos imóveis subiu 28,4% no mesmo período, segundo o DataZap/Grupo OLX. Em números, o rendimento médio mensal, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) em setembro de 2012 era de R$ 2.908, enquanto o metro quadrado para venda, segundo o Índice FipeZap, custava R$ 5.665. Doze anos depois, o salário médio mensal era de R$ 3.276, enquanto o metro quadrado foi para R$ 9.208.

São diversos os fatores que colaboram para o preço do imóvel lá em cima. Um deles é a própria inflação de construção, que subiu muito acima do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), referência para a inflação geral. Entre os vilões, está a pandemia. Com as interrupções nas cadeias de produção, houve uma escassez de materiais de construção, como cobre, aço, cimento, concreto, porcelanato e vidro, o que pressionou os preços: de janeiro de 2019 a janeiro de 2021, o Índice Nacional de Custo da Construção passou de 4,11% para 14,2%.

Somado a isso, a taxa Selic em 2% durante a pandemia de Covid-19 colaborou para um acesso ao crédito atípico para o mercado, o que impulsionou a demanda e se refletiu na valorização dos solos urbanos. “Nas áreas metropolitanas, a demanda por terrenos e imóveis permanece elevada, enquanto a oferta é limitada, especialmente nas regiões mais desenvolvidas”, explica Lacerda. Se o que forma o preço do imóvel é terreno mais construção, terrenos mais caros encarecem o valor do metro quadrado.

Para além da escassez de terrenos, o professor titular de real estate da Poli-USP e CEO da Unitas e BRCapital, João da Rocha Lima Júnior, acrescenta outro fator: a outorga onerosa. “É um preço adicional ao terreno que é cobrado pelas prefeituras, ou seja, você paga para ter o direito de construir. E o direito de construir empreendimento para classe média é muito caro em São Paulo.”

A estratégia para caber no bolso do brasileiro? Diminuir o tamanho dos imóveis, solução incentivada pelo próprio Plano Diretor de São Paulo. Para Lima Júnior, isso acaba tornando os imóveis quase que “inabitáveis”. A professora Flávia concorda: “Você não tem muita qualidade de vida. Por exemplo, eu toco cavaco, se eu ficar no mesmo lugar que o Diogo está trabalhando, atrapalha. Como aqui temos dois quartos, eu posso simplesmente fechar a porta. Em um espaço completamente integrado, não tem essa opção. Fica difícil ter individualidade.”

É fato que a renda da população da classe média também não acompanhou o aumento do preço dos imóveis. Entretanto, essa faixa tem um aliado a seu favor: o ‘Minha Casa, Minha Vida (MCMV)’. A correção tanto dos valores do teto do valor do imóvel para até 350 mil reais quanto da renda para se enquadrar no programa e o forte aumento do orçamento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), que deve chegar a 127,6 bilhões reais neste ano, impulsionaram o setor, explica Fábio Tadeu, CEO da Brain Inteligência Estratégica, empresa de pesquisa do mercado imobiliário.

“Mudou o limite e aumentou o orçamento, então teve muito mais recurso e um monte de empresa investiu no econômico. Explodiu o segmento.” O resultado foi que novos empreendimentos para a classe média perderam espaço no mercado imobiliário: no primeiro semestre de 2024, o número de unidades lançadas do segmento econômico cresceu 69% em comparação com o mesmo período de 2023, enquanto o segmento de médio padrão recuou 19%.

Jorge Cury, presidente da Trisul: "A incorporadora se adaptou ao cenário desafiador" (Trisul/Divulgação)

A menor quantidade de oferta de imóveis (novamente) pressiona os preços. Quem não tem dinheiro à vista – e quase ninguém tem – parcela. Aqui, entra mais um desafio para a classe média: o financiamento. A partir de 1º de novembro de 2024, a Caixa Econômica Federal, maior banco financiador habitacional, implementou novas regras para a concessão de crédito para imóveis usados. Agora, as pessoas terão que desembolsar valores mais altos de entrada.

No financiamento pelo Sistema de Amortização Constante (SAC), em que as parcelas são mais altas no início, mas vão diminuindo ao longo do tempo e levam a um valor total menor pago ao final, o sinal terá que ser de 30% do valor do imóvel - antes, era de 20%. Já pela tabela Price, em que as parcelas mensais são fixas, levando o valor total pago a ser maior, a entrada terá que ser de 50% - antes, era de 30%. Na prática, se Flávia e Diogo começarem a investir em uma aplicação rendendo em CDI para dar entrada em um imóvel usado pela Caixa, eles precisarão esperar oito anos para alcançar o valor necessário, caso optem pelo SAC (antes das novas regras, seriam cinco anos), e 16 anos (antes, seriam 10 anos) caso optem pela tabela Price.

O que aconteceu para a Caixa ter alterado as regras foi uma resposta ao esvaziamento da poupança. Isso porque o dinheiro utilizado para esses tipos de empréstimos vem do Sistema Brasileiro de Poupança (SBPE), que está enfrentando desafios de captação. Diante do alto endividamento na pandemia, muitos saques foram realizados. Em contrapartida, os depósitos diminuíram, já que o início do aperto monetário refletiu-se em uma migração de investimentos da poupança para aplicações indexadas à Selic. Segundo dados do Banco Central, a caderneta de poupança teve seu pior desempenho na história em 2022, registrando uma captação líquida (diferença entre saques e depósitos) negativa de 80,94 bilhões de reais.

Para o segmento econômico, as mudanças não afetam em grandes proporções, já que os empréstimos do MCMV são oriundos do FGTS. O alto padrão, por sua vez, não necessita de financiamento - a não ser que queira. “A classe média é a que depende do financiamento habitacional do Sistema Brasileiro de Poupança (SBPE) e é hoje o segmento mais afetado”, afirma Luiz França, presidente da Associação Brasileira de Incorporadoras (Abrainc). O executivo afirma que essa parcela da população tem desejo de adquirir imóveis: segundo pesquisas da instituição, a intenção de compra da classe média está em níveis recordes. Porém, é imprescindível que haja uma boa oferta de financiamento.

E para o mercado? Também foi necessário uma adaptação por parte de incorporadoras focadas na classe média. Jorge Cury, presidente da Trisul, ao perceber os desafios que esse público estava enfrentando, agiu rápido. O empresário concorda que esse segmento perdeu poder aquisitivo e cita as altas de juros como um dos motivos. Com a inteligência estratégica de cerca de 50 anos de mercado imobiliário, Cury driblou os desafios de um lado, aproveitando a oportunidade do outro. “A classe média puxou o mercado por muito tempo. Mas nós, da Trisul, sempre buscamos fazer uma diversificação”, afirma.

Ao resgatar todo o aprendizado de um passado, em que já fizeram empreendimentos para o segmento econômico, ingressaram novamente no MCMV. “Olhei o cenário e falei: vamos voltar a fazer o segmento econômico, com um terço como fazíamos, e vamos continuar com o que fazemos bem, que é o médio e alto padrão nos outros dois terços.” Os novos direcionamentos têm dado certo. A companhia reportou um lucro líquido de 39,45 milhões de reais, uma alta de 64,1% em comparação com o mesmo período do ano anterior.

A empresa não abandonou a classe média: dos oito lançamentos desde março de 2023, metade foi direcionado para o médio e médio/alto padrão. Ainda assim, Cury enxerga que o cenário para a classe média não está favorável. Para 2025, alguns agentes do mercado já falam em Selic a 13%, o que poderia deteriorar ainda mais o poder de compra deste público. Na outra ponta, o pleno emprego, as projeções otimistas para o crescimento econômico e a taxa de desemprego baixa podem trazer um certo alívio. “Nós fizemos um lançamento para a classe média há um tempo e vendeu bem. A classe média existe e os produtos que são diferenciados vão acabar sendo vendidos. Talvez essa parcela não recupere o que era no passado, mas também não tende a piorar mais do que está”, conclui o presidente.


Sem crise para os CRIS

Com maior restrição dos bancos, incorporadoras têm recorrido ao mercado de capitais | Guilherme Guilherme

Estoque de CRIs atingiu máxima histórica, somando 220 bilhões de reais (Leandro Fonseca/Exame)

A construção civil nunca dependeu tanto do mercado de capitais. Com o apetite reduzido dos bancos para financiar o setor — uma consequência da queda nos recursos da poupança —, os investidores têm ocupado esse espaço, sustentando o crédito imobiliário. Essa movimentação ocorre por meio dos Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs), que financiam empreendimentos com recursos de pessoas físicas e fundos. De acordo com a CVM, o estoque de CRIs atingiu máxima histórica, somando 220 bilhões de reais. Até o fim do terceiro trimestre, foram realizadas 463 emissões de CRIs, captando 48,5 bilhões de reais.

Com a maior restrição dos bancos ao crédito para incorporadoras, um número crescente de empresas tem buscado o mercado de CRIs, o que se reflete em emissões menores. Em 2024, a captação média foi de 105 milhões de reais, 6% abaixo do ano passado. A captação mínima é de 15 milhões de reais, segundo Murilo Marchesini, CEO da Finamob, que origina CRIs para pequenas e médias incorporadoras. “A maioria das incorporadoras nem sequer conhece os CRIs ou só ouviu falar. Ainda há muito espaço para avançar”, comenta.

Para as incorporadoras, os CRIs viabilizam obras; para investidores, representam uma das poucas opções isentas de imposto, com taxas atraentes, iniciando em CDI + 4% e podendo superar CDI + 7%. Até setembro, o público de varejo e private aumentou em 68% a alocação em CRIs, totalizando 83 bilhões de reais.

Arnaldo Curvello, sócio da Galapagos Capital, destaca que a demanda por produtos isentos vem crescendo desde que fundos exclusivos perderam benefícios tributários. “Observamos aumento de um público que antes investia de forma discreta e agora passou a olhar para esse mercado com atenção”, comenta. Desde 2022, o volume de CRIs nos portfólios private cresceu 145%, totalizando 37 bilhões de reais, com 30.200 contas.

Apesar dos retornos e da isenção de Imposto de Renda, Curvello ressalta a importância de entender o que está por trás do título, como as garantias e a solidez do emissor. “Se você não tiver o monitoramento da operação, não consegue identificar um problema. No mundo dos CRIs, isso é essencial”, conclui.

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