Presidentes dos Poderes se reúnem após atos antidemocráticos em Brasília: união institucional é vital para a economia do país (Mateus Bonomi/Anadolu Agency/Getty Images)
Alessandra Azevedo
Publicado em 19 de janeiro de 2023 às 06h00.
Última atualização em 19 de janeiro de 2023 às 11h35.
O Brasil assistiu, incrédulo, aos ataques antidemocráticos de 8 de janeiro. Foram depredados os prédios que abrigam os Poderes da República, com perdas estimadas em milhões de reais — e danos simbólicos perenes. O caos em Brasília, porém, abriu brecha para uma saída pela política. Os extremistas conseguiram o improvável em um país polarizado e que ainda lambe as feridas da eleição presidencial mais disputada de sua história: unir forças antagônicas e silenciar vozes reacionárias, pelo menos no curto prazo.
Caiu no colo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a chance de consolidar um elo potencialmente muito mais forte do que a “frente ampla” formada nas eleições de 2022. Esse rearranjo das forças políticas pode auxiliar a retomada da economia, que segue em compasso de espera. Algumas sinalizações animaram os observadores, como a equipe formada pela ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, e as medidas para a redução do rombo nas contas públicas anunciadas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Aguardado ansiosamente, o pacote de Haddad — que, segundo ele, é apenas um primeiro passo — animou por mostrar apetite pela responsabilidade fiscal por meio do aumento das receitas da União. Mas deixa dúvidas sobre sua viabilidade diante da indefinição sobre os — necessários — cortes de gastos. “Os acontecimentos de Brasília demonstram que as instituições democráticas brasileiras são fortes o suficiente para enfrentar os temporais que teimam em rondar o nosso horizonte”, diz Tebet à EXAME. “Juntos, por meio de parcerias público-privadas, teremos resultados positivos para todos os brasileiros.”
A reação do establishment político é corroborada pela população. Pesquisa exclusiva EXAME/IDEIA com 1.500 pessoas de todo o Brasil mostra que 70% do país acredita que os responsáveis devem ser severamente punidos. Número semelhante de brasileiros avalia que o Exército e as polícias militares agiram corretamente ao desmontar os acampamentos, e que o presidente Lula definiu corretamente como “vândalos” aqueles que invadiram a Praça dos Três Poderes. Trata-se de uma coesão significativa diante de uma sociedade abertamente dividida.
Quando questionados sobre como classificariam as pessoas que participaram dos atos, 27% dos entrevistados responderam “terroristas” — uma qualificação disputada jurídica e politicamente. Outros 24% chamaram de “vândalos”; e 13%, de “manifestantes”. “É importante ver que 9% dos entrevistados definem os participantes como ‘patriotas’. Para ter uma ideia, 9% da população brasileira equivale a quase um Chile. Existe um núcleo extremista radicalizado, não obrigatoriamente bolsonarista, mas atuante e vivo em nosso país”, diz Cila Schulman, presidente do IDEIA.
Para combater esse extremismo — semente de um movimento que pode erodir as bases democráticas do país —, a união das instituições é vital. Até aqui, a ação tem sido coordenada. O movimento de reação à insurgência golpista não se centrou na figura do presidente nem tem como objetivo garantir a governabilidade de quem quer que seja. Mas, na tentativa antidemocrática de negar o resultado das urnas e tirar Lula do poder, os grupos extremistas deram ao petista a oportunidade única de unir governadores, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), parlamentares de diferentes espectros e a opinião pública em torno da pauta de pacificação do país.
Com nove dias de governo, reuniram-se no Palácio do Planalto autoridades que, não fosse a gravidade da crise, dificilmente sentariam à mesa em tão pouco tempo. Entre elas os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), dois dos maiores adversários do PT e apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
“De saída, Lula consegue algo que tentava construir desde o início: algum consenso nacional”, diz o cientista político Creomar de Souza, da consultoria política Dharma. O apoio político a Bolsonaro já começou a se diluir. Poucos se dispuseram a justificar o ocorrido. Alguns ficaram em silêncio e muitos se apressaram para se desvincular de qualquer participação nos atos. Dois meses depois de contestar publicamente o resultado das urnas eletrônicas, Valdemar Costa Neto, presidente do PL, partido do ex-presidente, rapidamente condenou os ataques, classificando-os como “vergonha”. Para Souza, da consultoria Dharma, alguns aliados do ex-presidente buscam se distanciar do ocorrido pelo medo de serem responsabilizados por terem incentivado atos antidemocráticos.
Pelo mesmo motivo, muitos evitaram comentar a minuta de decreto que previa a instauração de estado de defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, ex-titular da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal e preso por ordem do STF. Até o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho mais velho do ex-presidente, fez questão de dizer que o pai não tem vínculo com os “atos irresponsáveis”. De toda forma, o ex-presidente será investigado pela Procuradoria-Geral da República no inquérito que apura os atos antidemocráticos.
A tendência, segundo Adriano Laureno, gerente de análise política e econômica da consultoria Prospectiva, é que a ala mais ideológica continue com Bolsonaro e sustente que ele não tem relação com o que ocorreu em 8 de janeiro. Esse grupo, porém, não é maioria no Congresso. Nem todos os parlamentares de centro e centro-direita que apoiaram a candidatura do ex-presidente são bolsonaristas, mesmo os de partidos como PP, PL e Republicanos. “Muitos estiveram com ele porque eram beneficiados ou porque lideranças assim determinaram”, diz Laureno.
O episódio antidemocrático em Brasília pode ser a justificativa perfeita para que eles redirecionem o discurso e passem a fazer parte da base do atual governo. Naturalmente, os próximos meses serão marcados pela reação institucional aos ataques. Os líderes dos Poderes reagiram com agilidade à tentativa de golpe. No mesmo dia dos ataques, Lula decretou intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal, e o ministro Alexandre de Moraes, do STF, afastou Ibaneis Rocha (MDB) do cargo de governador — decisão referendada posteriormente no plenário do Supremo. O recesso parlamentar, que duraria até 1o de fevereiro, foi interrompido. Dezenas de deputados e senadores pegaram voos para Brasília na segunda-feira, dia 9, para avaliar os danos e discutir pessoalmente a intervenção no Distrito Federal, como sinalização de que a tentativa de golpe não deu certo.
Os plenários da Câmara e do Senado tiveram votações expressivas favoráveis ao decreto de intervenção, materializando a primeira vitória do governo no Congresso após a posse. Agora a classe política se concentra no que vem pela frente. Logo após os ataques, abundaram pedidos de abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os patrocinadores dos atos golpistas. Embora os novos parlamentares tomem posse somente em fevereiro, já há pelo menos um pedido de CPI com as assinaturas necessárias no Senado.
No próximo mês, novo requerimento deve ser apresentado e uma comissão instalada. “A CPI pode cumprir o papel de garantir que todos os responsáveis sejam responsabilizados. Caberá à Justiça julgar e punir as pessoas que depredaram, invadiram, ameaçaram e cometeram violência, mas há muitos políticos e empresários que vêm incentivando”, afirma a deputada Tabata Amaral (PSB-SP). Nesse contexto, a questão mais relevante são as eleições dos novos presidentes da Câmara e do Senado — nas quais Arthur Lira e Rodrigo Pacheco são francos favoritos, respectivamente. “Está definido que o PT vai apoiar tanto Lira, na Câmara, quanto Pacheco, no Senado. Mudamos de atitude em razão disso”, diz o deputado federal e ex-presidente do PT, Rui Falcão (PT-SP).
Até o dia 1o de fevereiro, a classe política se voltará às costuras para a composição dos principais cargos das Casas. Na Câmara, por exemplo, o PT articula um bloco de maneira que possa ter a 1a vice-presidência ou a 1a secretaria da mesa diretora. O objetivo é o partido ou um de seus aliados poder comandar o plenário quando na ausência do presidente da Câmara. Além de uma dessas posições, a sigla quer também a CCJ, comissão mais importante da Casa, pelo menos no primeiro ano de governo. Tratativas semelhantes ocorrem no Senado. Dessas articulações emergirá a governabilidade, absolutamente necessária para tocar a agenda econômica e social.
Em meio ao turbilhão político (e jurídico), a pauta econômica precisou seguir seu próprio rumo. Quatro dias após os ataques, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sentava-se em um auditório no Ministério para apresentar o que chamou de “primeiras medidas” econômicas do governo — em pronunciamento ao lado de Tebet e Esther Dweck, ministra da Gestão. A pauta, afinal, é urgente para os brasileiros, com ou sem ataques aos palácios.
A pesquisa EXAME/IDEIA mostrou que os temas ligados à economia seguem como prioridade para a população: um em cada quatro entrevistados aponta frentes como inflação ou pobreza como os maiores problemas do Brasil hoje, à frente de outros como corrupção, educação ou segurança. Por outro lado, os brasileiros estão cautelosamente esperançosos: 24% se dizem “pessimistas” sobre sua vida em 2023 e, na mesma linha, 25% acham que a economia “vai piorar”. O restante está ou indiferente ou, caso da maior parte, apostando que haverá melhoras. “Apesar do quadro de insegurança sobre as propostas do novo governo na economia, o eleitor está otimista. Há, portanto, uma janela de oportunidade para manter essa boa onda”, diz Schulman, do IDEIA. Para chegar lá, porém, a missão é complexa.
O déficit previsto no Orçamento de 2023 é, de largada, de mais de 231 bilhões de reais. Para estancar a sangria, o primeiro plano de Haddad inclui medidas que podem chegar a até 242,7 bilhões de reais em receita. Em uma estimativa da própria Fazenda, com o novo plano, o déficit no ano deverá ficar entre 0,5% e 1% do PIB, entre 90 e 100 bilhões de reais, isto é, cortado pela metade (se toda a receita prevista viesse, haveria até superávit de 0,1% do PIB, mas nem o governo trabalha com esse cenário). A Fazenda calcula, por exemplo, que há uma “herança” de 150 bilhões de reais em desonerações que não podem ser revogadas de imediato — outras são alvo de embate político, como a desoneração dos combustíveis, prorrogada por 60 dias pelo governo a contragosto da Fazenda.
Nesse horizonte turbulento, Haddad já fala abertamente na possibilidade de não aumentar o salário mínimo para 1.320 reais como estava previsto. “Essa visão realista de que o déficit pode ficar próximo de 1% do PIB é importante para mostrar que o ministério sabe que nem tudo que está lá vai acontecer”, diz Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados. Ele reforça, no entanto, que esse é só um começo, e a expectativa para o ano é sobretudo a apresentação de uma nova âncora fiscal e de sinais sobre a reforma tributária.
Na outra ponta, o mercado também cobra planos mais críveis pela via da despesa, uma das principais críticas à semântica da Fazenda até agora. No plano anunciado, 80% da cobertura do déficit fiscal vem da expansão de receitas. É consenso que algum debate sobre despesas de forma estrutural ainda terá de ser traçado, independentemente da âncora fiscal escolhida. “É tradição brasileira resolver temas fiscais tentando renegociar dívidas, mudar regras”, diz Marcos Lisboa, presidente do Insper e que esteve no primeiro governo Lula. “Eu até não vejo problema em fazer ajuste pela receita ou mudar o teto de gastos. O que não acho adequado é fazer isso gerando distorções, em vez de discutir a raiz do problema e a eficiência das políticas.”
No campo das discussões estruturais via despesa, por exemplo, há reformas possíveis que o governo será pressionado a estudar invariavelmente. Gabriel Barros, economista-chefe da Ryo Asset e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), estimou que o governo poderia economizar 700 bilhões de reais em uma década com um conjunto “palatável” de medidas: revisão do abono salarial, reforma administrativa só para futuros servidores e unificação de programas sociais para maior eficiência, aproveitando as deturpações já criticadas no CadÚnico (aos moldes do que o Bolsa Família fez nos anos 2000). “Essa tentativa de fazer ajuste somente via receita é arriscada. Pode passar a impressão de que se está fabricando um número para o mercado, e isso não vai gerar confiança”, diz Barros.
Medidas que sinalizem certo equilíbrio nos próximos passos têm, de cara, um papel crucial: garantir os esperados cortes de juros do Banco Central, que prejudicam o crescimento em um momento de risco de recessão na economia global. A Selic está hoje em 13,75%, e, com as dúvidas que ainda pairam sobre o novo governo, agentes do mercado têm piorado as expectativas (veja o gráfico acima). O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, disse em carta sobre a inflação de 2022 que o BC pode, sim, retardar a queda dos juros neste ano, o que não é desejo de ninguém — a começar pelo próprio presidente Lula.
Uma das incógnitas é que muito do plano de voo econômico do governo (da âncora fiscal ao voto de qualidade no Conselho de Administração de Recursos Fiscais, esperança da Fazenda para recuperar receitas) estará nas mãos do Congresso e, portanto, depende das articulações em curso para a governabilidade. Embora os ataques em Brasília tenham gerado união política de imediato, não está claro para o mercado quanto isso se estende para as futuras pautas econômicas.
Nos Estados Unidos, não custa lembrar, o governo Joe Biden assumiu dias após os ataques no Capitólio com o discurso de unificar o país — e uma agenda de pacotes trilionários ambiciosos, como o de infraestrutura. Apesar da comoção pós-Capitólio, sofreu para passar alguns deles, e outros ficaram pelo caminho. Há diferenças claras entre os dois países, lembra Fernanda Magnotta, especialista em Estados Unidos e coordenadora do curso de relações internacionais da FAAP. “Os Estados Unidos têm um sistema praticamente bipartidário, então esse ‘desembarque’ de Trump foi mais difícil, e ele seguiu apoiado pelos republicanos, o que só está começando a mudar agora com o resultado ruim nas eleições de meio de mandato. No Brasil, o número de atores é mais difuso”, diz.
Por aqui, como lembrou em artigo para a EXAME o cientista político Sérgio Praça, o movimento golpista não tem apoio dos partidos. A aprovação do atual governo será essencial para avaliar a força do novo governo. A pesquisa EXAME/IDEIA também mostra que 40% dos brasileiros aprovam os primeiros dias de Lula, diante de uma rejeição de 28% — o restante ou considerou o governo regular ou não opinou. Em comparação, a primeira pesquisa do governo de Bolsonaro, em janeiro de 2019, mostrava uma aprovação de 50%. “A pesquisa mostra um país amplamente dividido, que não superou as diferenças da eleição. A polarização continua firme, com eleitores de Lula e Bolsonaro em posições opostas”, afirma Schulman, do Ideia. “Isso, inclusive, é o que tem acontecido com a maioria dos presidentes recentemente eleitos na América Latina, que assumem já com forte oposição e dificuldades para governar.”
No mundo inteiro, as polarizações acirradas na última década persistem, mas podemos estar caminhando para um novo momento. O número de governos na linha dos populistas está em seu menor patamar em 20 anos, com vitórias de algumas “frentes amplas” democráticas. “Ainda assim, essa contagem pode subestimar a maneira como os principais partidos e líderes de centro-direita absorveram algumas dessas ideias, especialmente as políticas de linha dura, como contra a imigração”, diz a cientista política Pippa Norris, da Universidade Harvard. No Brasil, a pauta de costumes é um desses exemplos que podem aglutinar a oposição e chegar até parte do centro. Por isso, como nos Estados Unidos, não é prudente dar cenários como certos. A única certeza é que os impactos diretos desses próximos passos afetarão não só a política mas uma economia brasileira que tanto precisa de estabilidade.