(Sérgio Bergocce/Exame)
Rodrigo Caetano
Publicado em 17 de junho de 2021 às 05h38.
Última atualização em 19 de junho de 2021 às 16h16.
O gigante do setor de cosméticos e de cuidados pessoais promoveu a causa LGBTI+ em campanhas publicitárias e assinou manifesto antirracista na esteira da morte de George Floyd. Tudo isso em meio a ótimos resultados financeiros — o que mostra o valor da diversidade nos negócios
O dia a dia de João Paulo Ferreira, presidente na América Latina do grupo Natura &Co, mostra como o tema da diversidade é central na ambição do gigante de produtos de higiene e beleza dono das marcas Natura, Avon, The BeautyShop e Aesop.
Pelo menos duas vezes por mês Ferreira se senta junto com outros 12 integrantes do comitê executivo e a cada três meses faz palestras, agora virtuais, para os 18.000 funcionários espalhados pela América Latina. Nas sessões, Ferreira repete um mantra: a diversidade é chave para a ambição global do gigante de 37 bilhões de reais.
“A estratégia e a cultura da empresa ocupam meu tempo acima de qualquer coisa”, diz ele, à EXAME. “Os resultados financeiros, sociais e ambientais andam juntos. As métricas de diversidade, por exemplo, estão nos indicadores de desempenho de todas as operações.” Pelo menos uma vez por mês Ferreira e os integrantes do comitê executivo olham com lupa as métricas para entender o que vem funcionando — e o que pode melhorar.
Nos últimos meses, a Natura &Co tem muito a comemorar, pelo menos no quesito diversidade. No Dia dos Pais de 2020, uma campanha com o ator transgênero Thammy Miranda, que apareceu nas redes sociais com a mulher e o filho, causou um rebuliço.
Em meio às críticas e aos elogios causados pela escolha de Miranda, a Natura veio a público defender a campanha e reforçar o compromisso com a defesa de todos os tipos de valores familiares.
A consistência da companhia na mensagem agradou aos investidores. No dia seguinte à estreia da campanha publicitária, as ações da empresa subiram 6% — alta expressiva para os padrões de uma empresa de cosméticos — e, de lá para cá, os papéis valorizaram mais 20%. Hoje, a Natura vale 80 bilhões de reais na B3, um recorde histórico.
A campanha com Thammy Miranda está longe de ser um caso isolado na comunicação inclusiva da Natura &Co. Na edição deste ano do reality show Big Brother Brasil, a Avon aproveitou o fato de ser uma das patrocinadoras para bolar uma publicidade com o ator Lucas Penteado, participante do reality que ganhou notoriedade nacional ao protagonizar o primeiro beijo gay do programa, com o economista Gilberto Nogueira.
Na peça publicitária, Penteado usava uma linha de maquiagens e um gel para sobrancelhas e dançava numa espécie de prova de resistência dos produtos às intempéries do cotidiano. A mensagem de inclusão tem o aval direto de Ferreira. “A diversidade e a inclusão são responsabilidade de todos e não podem se limitar ao CEO”, diz.
Ao mesmo tempo que levam ao mercado uma visão inclusiva da sociedade, as empresas do grupo Natura &Co tentam fazer o dever de casa ao colocar a diversidade no centro da estratégia dos negócios. Em plena crise sanitária, uma disrupção que demandou atenção máxima de CEOs ao redor do mundo para conter os danos da quarentena forçada, a liderança da fabricante de cosméticos parou o que estava fazendo para bolar metas ambiciosas de inclusão no negócio.
O esforço resultou no “Visão de Sustentabilidade 2030 — Compromisso com a Vida”, um documento com metas para a década. Ali, a liderança da Natura &Co assumiu o compromisso de ter 50% de mulheres na alta liderança da empresa até 2030. Em outra frente, a empresa quer ter 30% de outros grupos pouco representados, como o de LGBTI+, em cargos de liderança daqui a nove anos.
O que falta fazer
Algumas medidas positivas já saíram do papel. Um exemplo: 51% das mulheres ocupam cargos de liderança na Natura atualmente. No encontro dos líderes executivos da empresa, agora em junho, Ferreira vai focar o trabalho a ser feito para levar adiante as promessas.
“Adotar essa jornada é uma escolha necessária da liderança que não opta por esperar que as desigualdades naturalmente se resolvam”, diz Ferreira. Uma atenção especial deve ser dada ao desdobramento da equidade de gênero da Natura para as outras marcas do grupo.
Além disso, diz Ferreira, é preciso avançar nas demais frentes da diversidade, com a inclusão de mais negros, pessoas do grupo LGBTI+ e pessoas com deficiência em cargos de liderança. O desafio, aqui, é capacitar funcionários em cargos operacionais para poderem assumir desafios gerenciais.
A Natura é uma das poucas empresas brasileiras a cumprir a lei de cotas para pessoas com deficiência. Pela legislação, empresas com mais de 1.001 funcionários, como é o caso da Natura, devem ter 5% da mão de obra oriunda de grupos com algum tipo de deficiência, seja física, mental, intelectual, seja sensorial. Na Natura, a fatia chega a 7,3% da mão de obra.
A agenda ambiciosa da Natura no campo da diversidade é, também, uma resposta ao espírito do tempo de um mundo traumatizado pela pandemia e por casos flagrantes de racismo, como o de George Floyd, homem negro assassinado pela polícia no estado americano do Minnesota, em maio do ano passado.
Antes do episódio triste, a Avon já levava a questão racial a sério — a empresa tem metas para aumentar a presença de pretos e pardos na liderança de vendas desde 2018. Em novembro, o grupo divulgou um compromisso antirracista mais parrudo. Na Avon, 100% das vagas de estágio foram preenchidas por pessoas não brancas.
Em paralelo, a marca patrocinou um estudo com 1.000 mulheres negras de todas as classes sociais Brasil afora. No relatório, chamado Black Paper, 70% das entrevistadas disseram estar insatisfeitas com os produtos de maquiagem do mercado, boa parte deles inadequada ao tom de pele delas. Na esteira da constatação, a Avon lançou 51 produtos dedicados a consumidores pretos e pardos.
“Os dados mostram que apoiar a diversidade é uma questão social e de negócios”, diz Viviane Pepe, diretora de comunicação da Avon. “Para isso, é preciso ter a sociedade representada dentro da empresa e nos bastidores, como em pesquisas, dentro dos fornecedores e mais.”
Com as ações para amplos espectros da diversidade e da inclusão, a Natura &Co foi escolhida como a Empresa do Ano na terceira edição do Guia EXAME de Diversidade. O reconhecimento faz parte de uma iniciativa da EXAME com base na metodologia do Instituto Ethos, que há mais de duas décadas auxilia as empresas a gerir seus negócios de modo socialmente responsável (veja a metodologia acima).
A adoção de políticas de diversidade não é exclusividade da Natura &Co no setor de cosméticos. Mesmo no Brasil, onde o tema ainda é novidade em muitas empresas, a concorrência se dá também nesse campo.
O Grupo Boticário, por exemplo, divulgou um manifesto antirracista em novembro do ano passado. Ao mesmo tempo, a empresa anunciou um programa para treinar 3.000 jovens negros em situação de pobreza em habilidades de tecnologia.
As regras de trainee foram ajustadas para contratar mais negros. Na empresa inteira, o índice de contratação de profissionais negros foi de 54% em 2020. Na L’Oréal, o programa de trainee anunciado em junho vai destinar pelo menos 50% de suas vagas para profissionais negros. A meta da empresa para 2025 é ter 30% das posições de liderança com equidade racial.
O destaque à Natura &Co é o reconhecimento de uma empresa que abraçou a diversidade num momento de muito desafio, mas de muito crescimento. No primeiro trimestre de 2021 a Natura &Co teve resultado operacional de 829 milhões de reais — quase cinco vezes mais do que no mesmo período do ano passado.
A companhia projeta receitas entre 47 e 49 bilhões de reais em 2023 — uma expansão de quase 30% em relação ao patamar atual. Em meio à expansão, a marca Natura foi eleita a mais forte do mundo no setor de cosméticos, em maio, pela consultoria inglesa Brand Finance. Nas contas da consultoria, a marca vale 1,7 bilhão de dólares. Diversidade e crescimento são uma combinação valiosa.
A crise sanitária colocou em evidência a desigualdade racial no Brasil, na medida em que mais negros morreram pela doença do que brancos e o desemprego no grupo está acima da média nacional. O período também abriu os olhos de empresas para o problema
A pandemia escancarou as desigualdades no Brasil, onde os negros são maioria entre os mais pobres e as maiores vítimas da covid-19. As diferenças entre brancos e negros tornaram o tema fundamental nas empresas.
“É hora de discutirmos a criação de uma cultura corporativa global equitativa, que reflita igualdade na prática”, diz Daniel Teixeira, diretor de projetos do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). Quem saiu na frente vem chamando a atenção. É o caso da varejista Magazine Luiza, que anunciou um programa de trainee só para negros em setembro do ano passado e recebeu milhares de comentários negativos nas redes sociais — boa parte de cunho racista.
“Eu já estou acostumada, mas o Frederico [Trajano, CEO do Magalu] ficou assustado”, disse Luiza Trajano, presidente do conselho da empresa, à EXAME em abril deste ano. “É o que acontece ao quebrar paradigmas.”
O programa do Magalu incentiva a mudança de cenário. A seleção de candidatos negros para programas de trainee ainda é uma exceção das exceções no Brasil. Uma pesquisa da consultoria 99jobs entre 300 programas de trainee conduzidos em 2019 constatou que estarrecedores 99,2% dos contratados foram brancos.
O Magalu diz tentar mudar essa realidade há algum tempo. Em 15 anos de trainee, a varejista formou 250 líderes. Destes, só dez são negros. “Chegamos à conclusão de que precisávamos nos comunicar melhor”, diz Patricia Pugas, diretora executiva de gestão de pessoas da varejista.
O programa só para negros teve 22.000 inscrições para 19 vagas. Foram 1.157 candidatos por vaga, uma concorrência praticamente dez vezes mais acirrada do que a do curso de medicina da Universidade de São Paulo, o mais prestigiado do melhor centro público de ensino do país.
A turma está trabalhando desde o começo do ano — são 11 homens e oito mulheres. Quem está no programa considera estar fazendo parte da história do universo corporativo brasileiro. “Racismo é um problema estrutural. Nos foi dada a alforria, mas não a inclusão”, diz o engenheiro elétrico Luthuli Akanni Paixão, trainee no Magazine Luiza. “Sempre soube que tinha de fazer minha parte e aproveitar as oportunidades que surgissem.”
O Magazine Luiza não está sozinho na busca ativa por pretos e pardos, na maioria das vezes em cargos de entrada. Na marca Natura, pertencente ao grupo Natura &Co, 60% dos estagiários de 2020 foram negros.
O crescimento foi possível graças aos ajustes na seleção. “Entrevistamos à noite, pois durante o dia eles precisavam trabalhar, e eliminamos o inglês”, diz Milena Buosi, gerente de diversidade e inclusão da Natura &Co. Um projeto piloto da empresa está tirando o atraso do inglês para estagiários contratados.
“Assim a pessoa fica mais preparada e geramos o impacto social que temos como premissa”, diz Buosi. No horizonte da Natura está ter mais negros em cargos de liderança — o bônus de executivos tem essa meta.
Práticas de atração e retenção de jovens negros, bem como a oportunidade de maior exposição de pessoas que buscam cargos de liderança por meio de pitches e outros eventos, também são premissas do banco Santander, tradicional destaque nesta categoria nas edições anteriores do Guia EXAME de Diversidade e novamente um dos destaques neste ano pela metodologia elaborada pelo Instituto Ethos.
Para mudar o racismo estrutural brasileiro é preciso tempo. Diante disso, na siderúrgica Gerdau a cultura de oferecer oportunidades de crescimento dentro da empresa vem de longa data. “É uma tradição na empresa; as pessoas entram para trabalhar no chão de fábrica e evoluem para cargos gerenciais e de liderança”, afirma Jessica Rosa De Paula, especialista em inovação e líder do grupo de afinidade de Raça da Gerdau.
A medida aumentou a proporção de negros a 30% dos cargos de liderança, uma fatia elevada para o padrão brasileiro. Mas a Gerdau quer ir além. Para isso, o programa de trainees foi ajustado para ampliar a participação de negros, hoje de 30% do total. Em paralelo, um grupo de afinidade de raça e etnia atua junto com a empresa em conversas sobre temas espinhosos, como vieses inconscientes e como a falta de diversidade atrapalha a inovação. “A diversidade é fundamental nesse processo”, diz.
A representação do grupo LGBTI+ avança a passos lentos. Nas empresas há visibilidade, mas faltam esforços para contratar lésbicas, gays, bis, trans e demais denominações de gênero
A população LGBTI+ vem conquistando espaços no Brasil, ainda que num ritmo aquém do desejado por boa parte dos integrantes do grupo, que compreende lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros, intersexuais e demais denominações.
Nas eleições municipais de 2020, 294 candidaturas de pessoas trans concorreram aos cargos de prefeito e vereador no país. Desse total, 26 foram eleitas, mais do que o triplo do registrado em 2016. Se no voto popular a presença de trans e de todo o grupo ainda é incipiente, no ambiente corporativo brasileiro a visibilidade, ao que tudo indica, veio para ficar.
Entre as empresas inscritas no Guia EXAME de Diversidade, 75% promovem campanhas sobre respeito aos direitos e as particularidades do dia a dia da população LGBTI+.
No quesito contratação de pessoas desse grupo, contudo, há muito espaço para avanços. Só 20% das empresas declararam ter programas dedicados à contratação de funcionários LGBTI+ na versão 2021 da pesquisa, uma fatia semelhante à do ano passado e bem abaixo do padrão para outros grupos pouco representados, como o de mulheres cisgênero — 61% das empresas participantes dizem ter alguma iniciativa para ampliar a presença delas no ambiente de trabalho.
Para quem entende do assunto, o problema começa na falta de dados sobre a população LGBTI+. “Hoje não é possível medir, não há um cadastro dentro das empresas, e não é um dado tratado pelo IBGE, o que torna ainda mais difícil entender a evolução das políticas de inclusão”, diz Reinaldo Bulgarelli, secretário executivo do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+, organização de 111 entidades signatárias de compromissos com a inclusão.
A falta de informação é compensada com exemplos cada vez mais frequentes. Afinal, empresas com funcionários abertamente LGBTI+ podem lucrar até 15% mais do que os concorrentes, segundo pesquisa da consultoria McKinsey com negócios da América Latina.
O motivo: um ambiente seguro para todos serem como realmente são, na vida pessoal e na profissional, torna a mão de obra mais livre para ter ideias capazes de colocar o negócio à frente da concorrência. Mas, para isso, a sensibilização precisa envolver a empresa inteira. É o caso da indústria química Dow, onde um grupo de funcionários LGBTI+ discute políticas de diversidade da empresa há duas décadas na matriz, nos Estados Unidos, e desde 2012 na operação do Brasil.
Hoje, o líder de inclusão e diversidade da Dow para a América Latina é Tiago Betti, homem gay funcionário da Dow há 12 anos. Um dos momentos mais marcantes do trabalho dele foi ver a mudança da ficha cadastral de uma pessoa para mulher, trans e lésbica. “Minha reação foi ligar para ela, entender se tinha havido um engano e, se não, quais auxílios poderíamos oferecer”, diz Betti. A funcionária é Laís de Jesus, coordenadora de sistemas de manutenção, há oito anos na Dow.
A política de diversidade da empresa a deixou confortável para comunicar o processo de transição de gênero. “Os funcionários da área em que trabalho foram treinados sobre o tema nas minhas férias. Quando voltei, todos já me trataram como Laís”, diz.
Foi num ambiente acolhedor que Ana Flávia Bezerra, gerente de negócios da Accenture Brasil, sentiu conforto para compartilhar sua sexualidade. “Em 2017, uma pessoa trans chegaria à minha equipe e, percebendo minha afinidade com o tema, a diretoria me convidou a falar para 1.500 colegas sobre os desafios de ser mulher, negra e lésbica”, diz Bezerra.
“Aquele dia eu não saí do armário, e sim o explodi.” Nos últimos meses, a Accenture revisou os benefícios para igualar o pacote de auxílios da população LGBTI+ ao do restante da empresa. Também mudou os critérios de seleção. Em 2021, a empresa ampliou de nove para 17 o número de profissionais trans.
INCLUSÃO NA PANDEMIA
É também salutar que, em meio à pandemia, até mesmo negócios dedicados ao setor de saúde tenham parado para pensar no assunto em meio aos percalços trazidos pelo novo coronavírus. É o caso da rede de laboratórios e hospitais Dasa, a maior do país. Em 2020, a empresa lançou um comitê de diversidade dedicado a difundir esses assuntos aos mais de 40.000 funcionários.
Em 12 meses, a empresa patrocinou dez lives para eles sobre o tema. Além disso, mudou as regras do programa de trainees na tentativa de atrair um perfil mais diverso. Alguns resultados vieram rapidamente, em particular na frente LGBTI+. “Em 2019, tínhamos apenas uma pessoa LGBTI+ entre os trainees”, diz Fabio Rosé, diretor de recursos humanos na Dasa.
“Em 2020, alcançamos 30% dos trainees LGBTI+.” Agora os casais homoafetivos têm benefícios iguais aos do restante da empresa, como licença parental e inclusão de cônjuge no plano de saúde. Hoje, 329 funcionários da Dasa declaram ser trans, não binários ou gênero fluido. Em 2020 eram somente 37.
A pandemia e o home office pesaram mais sobre as mulheres e criaram um desafio adicional ao avanço da carreira delas. Em meio às incertezas, uma série de empresas aposta em medidas para combater a desigualdade de gênero
A equidade de gênero costuma ser um dos primeiros assuntos de diversidade debatidos nas empresas. Afinal, a luta de mulheres por mais reconhecimento no ambiente de trabalho remonta, pelo menos, à Revolução Industrial, no século 18.
De lá para cá, a participação de mulheres no mercado de trabalho aumentou mundo afora, inclusive no Brasil, mas os desafios persistem — e foram agravados pela pandemia.
No terceiro trimestre de 2020, só 45,8% das mulheres estavam no mercado de trabalho formal no Brasil, segundo o Ipea, instituto de pesquisa do governo federal. É o nível mais baixo desde 1990. Com parte das mulheres em casas, mais distante dos olhos dos colegas ou desempregadas, a violência doméstica cresceu.
No ano passado o Disque Denúncia do governo federal recebeu mais de 105.000 denúncias desse tipo — 23% acima do patamar de 2019. Em São Paulo, o serviço da Polícia Militar apelidado de “Patrulha Maria da Penha”, por ser dedicado aos casos de violência contra mulheres, atendeu 42% mais casos no ano passado em relação ao ano anterior.
A escalada das ameaças a mulheres mobilizou empresas em iniciativas como o #IsoladasSimSozinhasNão, do Instituto Avon (integrante do grupo Natura &Co). Como parte da campanha, uma robô virtual criada pelo instituto, chamada Ângela, dedicou-se a atender denúncias enviadas por mulheres pelas redes sociais da empresa e repassar o caso às autoridades responsáveis.
Em 12 meses até março deste ano, Ângela recebeu 5.900 casos. Desse total, 10% demandaram algum tipo de medida protetiva à denunciante, como colocá-la num abrigo longe do agressor.
Para além de atuar em situações críticas, como a violência doméstica, muitas empresas aproveitaram o chacoalhão da pandemia para mudar processos internos de modo a desenvolver mais lideranças femininas.
Na varejista Renner, o ano de 2020 marcou o lançamento do Plural, uma espécie de aceleradora de medidas para inclusão na empresa formada por funcionários de várias áreas da varejista.
Está na alçada do grupo dar a chancela às políticas de diversidade da empresa e ajudar o time de RH a tirar tudo do papel. Um exemplo: os membros do Plural têm acompanhado as profissionais em licença-maternidade para entender os perrengues que enfrentam — e auxiliar na retomada da carreira ao fim do período.
Masculinidade tóxica
Tudo isso tem aberto espaço para mais mulheres conciliarem os papéis de mãe e gestora — elas ocupam 65% dos cargos de liderança na Renner. No mapa de sucessão, dedicado a mapear as futuras lideranças, sete em dez candidatos são mulheres.
“As mulheres sofrem mais com a pandemia pela dupla jornada e, por isso, investimos em programas de acolhimento”, diz Regina Durante, diretora de gente e desenvolvimento da Lojas Renner.
A estratégia de expandir a discussão de gênero para questões correlatas, como a discriminação a funcionárias negras ou trans, ou mesmo a masculinidade tóxica, é apoiada por quem entende do assunto. “Há um movimento muito forte e que olha para as interseccionalidades femininas. Isso é positivo e precisa ser acelerado”, diz Margareth Goldenberg, gestora executiva do Movimento Mulher 360, que reúne 81 empresas com práticas de equidade de gênero.
Quem saiu na frente na discussão do empoderamento feminino se destacou ao longo de 2020. Em abril do ano passado, a fabricante de bens de consumo Unilever anunciou que 50% dos cargos gerenciais nos negócios globais passaram a ser representados por mulheres — meta atingida seis meses antes do prazo inicial, dezembro de 2020.
O resultado veio depois de muita mentoria para formar lideranças femininas e de um cuidado da área de recursos humanos para evitar disparidades salariais entre homens e mulheres em cargos semelhantes. Em paralelo, gestores receberam treinamentos antivieses inconscientes capazes de brecar o avanço da carreira delas. “Do estágio ao board, do escritório à fábrica, precisamos garantir a presença feminina e entender particularidades de cada público”, diz Luciana Paganato, vice-presidente de RH da Unilever. “A equidade de gênero é fundamental para o sucesso dos negócios.”
No longo prazo, essa discussão tem o potencial de mudar a lógica dos benefícios corporativos. Em 2019, a fabricante de bebidas Diageo, dona das marcas Johnnie Walker, Tanqueray e Ypióca, instituiu a licença familiar de seis meses a mães e pais. O racional é: o fardo de cuidar dos filhos não é só da mãe.
Para isso, a Diageo convenceu os funcionários homens a usar o benefício — 32 já aderiram. Em outra frente, a Diageo quer incluir mais mulheres no mundo dos drinques, tradicionalmente masculino. Em abril, a bartender Bianca Lima venceu o World Class Brasil, campeonato de drinques da empresa.
Lima descobriu o ofício de bartender no Learning for Life, uma capacitação da empresa criada no Brasil. “Espero encorajar mais mulheres na coquetelaria”, disse Lima ao receber o prêmio. No fim de 2020, a empresa anunciou a meta de ter metade das lideranças mulheres até 2030. “Nosso negócio está ligado à celebração, e as mulheres devem se sentir seguras nesses ambientes”, diz Daniela de Fiori, diretora de relações corporativas da companhia.
Das 192 empresas inscritas no Guia EXAME de Diversidade, apenas 30% indicam ter metas para ampliar a presença de pessoas com deficiência entre gerentes. Apesar disso, quase oito entre dez empresas entrevistadas promovem campanhas de conscientização sobre o tema
Em meio ao crescente enfoque das empresas no tema da diversidade, alguns grupos pouco representados podem ganhar visibilidade e políticas específicas de inclusão — e outros, não. Entre os pouco vistos nas empresas, ao que tudo indica, está o grupo de pessoas com algum tipo de deficiência.
Das 192 inscritas no Guia EXAME de Diversidade, apenas 30% indicam ter metas para reduzir a desproporção dos cargos ocupados por pessoas com e sem deficiência em quadros gerenciais.
Não é por falta de aviso que as empresas brasileiras têm poucos funcionários dentro desse perfil. Há uma legislação estabelecendo cotas progressivas para pessoas com deficiência de acordo com o porte do negócio.
Empresas com até 200 empregados devem destinar 2% das vagas a funcionários com deficiências físicas ou mentais; em negócios com mais de 1.001 funcionários a fatia chega a 5%. De acordo com o Guia EXAME de Diversidade, as empresas entendem o tamanho do problema.
De acordo com a pesquisa, 79% promovem campanhas de conscientização interna sobre a diversidade para o público. Mas só metade possui grupos de afinidade que trabalham especificamente a inclusão das pessoas com deficiência. “Parte das empresas capacita gestores a programas de saúde mental, mas é preciso esforço e acompanhamento constante. A inclusão começa, de fato, após a contratação”, diz Ivone Santana, presidente do Instituto Modo Parités, que atua na inclusão social no mercado de trabalho, e secretária executiva da Rede Empresarial de Inclusão Social.
Na indústria química Bayer, a gestão da pessoa com deficiência é acompanhada de perto e serve de inspiração para os demais escritórios globais da companhia.
A diretriz da multinacional de capital alemão é preencher 5% das vagas em todas as unidades e em todos os cargos com pessoas com algum tipo de deficiência até 2030. Para garantir isso, o time de recursos humanos da operação brasileira da Bayer acompanha de perto os indicadores, conversa com aqueles que parecem estar perto de sair da empresa por alguma dificuldade de desenvolvimento, e trabalha para garantir a retenção. Um dos projetos desenvolvidos com esse intuito é o Cultivar, realizado desde 2018 e com mais de 350 pessoas.
Como resultado, no ano passado os pedidos de demissão dos funcionários com algum tipo de dificuldade na adaptação ao dia a dia da empresa caíram de 10% para 4%.
Em outro programa, o Geração de Valor, as pessoas com deficiência apresentam projetos para os líderes da companhia. O vencedor identificou uma melhoria de processo no setor de embalagens dos sites, reduzindo em até 30% o custo de uso de embalagens. “Vemos importantes movimentações na organização, inclusive com impacto global.
Para além da acessibilidade física e do cumprimento da cota, o objetivo é a inclusão de fato”, diz Kleber Carvalho, consultor sênior para diversidade na Bayer.
A farmacêutica Merck também segue a linha dos grupos de afinidade. “Graças a eles, temos a oportunidade de ouvir sugestões e projetos que vêm diretamente de nossos colaboradores, o que faz com que as ideias e os projetos sejam ainda mais ricos”, afirma Edise Toreta, diretora de recursos humanos da empresa no Brasil.
Em 2016, a companhia criou o programa Capacita, em parceria com instituições de ensino. Nele, pessoas com deficiência fazem um ano de estágio remunerado, com possibilidade de efetivação.
A iniciativa é voltada para o primeiro emprego e já ajudou a elevar a contratação de pessoas com deficiência para além da cota em 116%. “Um programa de inclusão com qualidade ocorre quando todas as partes envolvidas estão comprometidas”, afirma Toreta.
Na Ambev, o grupo de diversidade voltado para pessoas com deficiência ganhou o apelido de IPA, sigla para Improve People Accessibility e também um tipo de cerveja apreciado pelo mundo.
O IPA é formado por 15 pessoas incumbidas de compartilhar conhecimentos na liderança, além de facilitar o dia a dia dos funcionários. “Independentemente da deficiência, todas as pessoas merecem as mesmas oportunidades”, diz Mariana Holanda, que comanda o tema na Ambev. “Um ambiente de alta performance precisa ter diversidade, e isso inclui pessoas com deficiência.”
Na esteira da mobilização mundial contra o racismo em 2020, empresas criaram políticas também para outros grupos pouco representados, como refugiados, indígenas e trabalhadores acima dos 50 anos. A tendência veio para ficar?
Conquistar e manter direitos fundamentais é uma luta contínua. O fim da escravidão, para os negros, representou apenas o começo de uma jornada em busca da igualdade, que perdura até os dias de hoje.
O sufrágio não deu às mulheres, automaticamente, o direito de frequentar os mesmos espaços profissionais que os homens. Para uma série de grupos socialmente minorizados, essa primeira vitória, que abre espaço para conquistas mais amplas, ainda está apenas no horizonte. É o caso de indígenas, refugiados e empregados mais velhos.
No Brasil, os indígenas compõem um mosaico cultural único no mundo. No último censo, realizado em 2010, foram computadas 305 etnias, cada uma com sua cosmologia e seus costumes.
Entre as inscritas nesta edição do Guia EXAME de Diversidade, no entanto, apenas 9% possuem grupos de afinidade voltados para essa importante parcela da população brasileira. Não há registro de programas para contratação de indígenas.
Há um descompasso entre a realidade brasileira e a mundial na presença dos grupos menos representados dentro do universo de quem já tem pouca visibilidade.
Nos Estados Unidos, empresas como a fabricante de iogurtes Chobani e a varejista Amazon são reconhecidas por aceitar currículos de trabalhadores refugiados (o que, no caso da varejista, trouxe desafios adicionais ao negócio, como um piquete por salários melhores, organizado por empregados de origem somali num centro de distribuição da companhia no estado do Minnesota, em 2018).
Companhias como a fabricante de artigos esportivos Nike mantêm grupos para a contratação de descendentes de povos indígenas. No início de 2021, a bolsa de tecnologia Nasdaq propôs colocar a promoção de diversidade com todos os grupos pouco representados como um critério eliminatório às empresas listadas.
Na Europa, continente sob uma pressão demográfica causada pela combinação de expectativa de vida elevada e natalidade baixa, a demanda é por uma maior inclusão de empregados acima dos 50 anos no mercado de trabalho. Nos últimos meses, a União Europeia publicou diversos estudos com ideias para ampliar a contratação de mão de obra da terceira idade, como a concessão de benefícios fiscais às empresas signatárias da iniciativa.
O envelhecimento da população brasileira traz outro desafio para a diversidade empresarial. Pela primeira vez há quatro gerações no mesmo ambiente de trabalho. No Brasil, a população com 50 anos ou mais passou de 54 milhões de pessoas em 2020, o que representa cerca de 25% do total.
Ao mesmo tempo, em 2020 a taxa de desemprego nessa faixa etária superou 7% pela primeira vez. “A integração dessa faixa etária no mercado de trabalho é tão necessária quanto produtiva, já que eles se diferenciam tanto pelas qualificações técnicas quanto pela experiência e pelas soft skills”, diz Mauro Wainstock, sócio fundador da consultoria HUB 40+. Pesquisas concluíram que a lealdade e o envolvimento com a empresa são atributos desses profissionais.
Em boa medida os grupos menos representados dentro do mercado de trabalho estão sendo beneficiados pela comoção mundial pela morte de George Floyd, cidadão negro assassinado por um policial branco em Minneapolis, Estados Unidos.
“Esse episódio fez com que companhias entendessem que é preciso assumir uma posição”, diz Daniel Teixeira, diretor de projetos do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). Nos Estados Unidos, onde 13% da população é negra, as empresas anunciaram doações que somam 50 bilhões de dólares ao combate ao racismo e à promoção de ambientes de trabalho mais inclusivos com indígenas, refugiados e por aí vai.
Ao que tudo indica, as próprias circunstâncias do Brasil deverão forçar um olhar mais apurado para outros tipos de diversidades daqui para a frente. Um caso é o dos refugiados.
De 2016 para cá, 51.251 foram reconhecidos em território brasileiro, segundo a Acnur, agência das Nações Unidas para o tema. Do total, 90% são venezuelanos fugindo da deterioração da situação econômica no país.
A pandemia piorou a situação deles por aqui. Segundo a Acnur, as chances de um trabalhador venezuelano ser contratado no Brasil, hoje, são 64% menores que a de um brasileiro com as mesmas qualificações.
“Nos últimos anos, o Brasil vem acolhendo um número crescente de pessoas refugiadas, que ainda enfrentam desafios”, diz Paulo Sergio Almeida, oficial da Acnur.
Aqui e ali há iniciativas para colocar mais refugiados na mão de obra. A Accenture, por meio do projeto de capacitação Migralab, contratou 30 refugiados em 2019 e 2020.
A varejista Renner contratou 86 imigrantes desde 2016. “Com a ajuda de organizações como a ONU e o Exército direcionamos eles para as lojas em todo o país”, diz Eduardo Ferlauto, gerente de sustentabilidade da Renner. São exemplos que tendem a ser cada vez mais frequentes.
Veja a lista completa com as 69 destacadas aqui.