Carla Moraes, vice-presidente de serviços financeiros da Oracle (Leandro Fonseca/Exame)
Redação Exame
Publicado em 29 de outubro de 2024 às 06h00.
Última atualização em 30 de outubro de 2024 às 11h32.
A esta altura das discussões a respeito da equidade de gênero, um gargalo social que poderia adicionar 172 trilhões de dólares à economia global, as mulheres ainda são minoria entre os líderes corporativos. Olhando o copo meio cheio, elas estão avançando consistentemente em segmentos estratégicos, à frente da revolução digital. Enquanto os chamados setores legados, como manufatura, petróleo e gás e mineração, ainda parecem resistir à promoção de suas executivas, as mulheres têm ocupado espaços importantes em empresas de tecnologia e saúde.
É o caso de Cristina Palmaka, que exerce a presidência da SAP para a América Latina e Caribe. Quando assumiu a divisão brasileira da companhia, sinônimo de sistemas de gestão empresarial, ela firmou o compromisso de aumentar para 25% a presença feminina na gerência até 2018. O resultado foi alcançado em seis meses, o que deu margem para novas conquistas em prol da ascensão corporativa das mulheres. “O fundamental é escalar a conscientização para os demais líderes”, defende Palmaka. A seguir, conheça a trajetória dela e de outras executivas que chegaram ao topo de algumas das companhias mais inovadoras no país.
vice-presidente de serviços financeiros da Oracle
Aos 30 anos, ela deixou sua cidade natal, Santos, para a decepção da mãe, que já a via como uma pessoa bem-sucedida. “Minha mãe achou que eu estava dizendo ‘não’ para a vida que tinha”, conta Carla Moraes. “De certa forma, era isso. Eu sabia que queria e podia mais.” Ela começou a trabalhar, aos 16 anos, no setor público, ao qual deu adeus para estagiar na iniciativa privada. No processo seletivo para uma grande montadora, concorreu com mais de 1.000 inscritos, para 12 vagas. Três mulheres foram selecionadas, e ela era a única pessoa negra do grupo.
Sua rotina se converteu num sobe e desce diário da Serra do Mar, de Santos até São Paulo, onde foi trabalhar. No tempo que sobrava, costurava as próprias roupas para cumprir o dress code da empresa. O bom desempenho dos tempos de vestibulanda se manteve nas entregas corporativas, e Moraes construiu uma carreira sólida e multidisciplinar, norteada por tecnologia e inovação. Enfrentando ambientes majoritariamente masculinos e sem referências de profissionais negros, se acostumou a ser a exceção: a única mulher, a única pessoa negra.
Após três décadas de carreira e dois MBAs, conquistou a primeira cadeira de C-level. Em 2022, assumiu a vice-presidência de pré-vendas e arquitetura de soluções da multinacional americana de tecnologia Oracle, uma das maiores empresas de softwares empresariais do mundo. Passou a comandar um time de 240 pessoas e ficou responsável por 18 indústrias em toda a América Latina, desafio claramente compatível com sua carreira, mas ainda distante e raro para muitas mulheres que, como ela, precisam ultrapassar uma cascata de obstáculos em razão de gênero, raça e classe social para chegar a cargos de alta liderança.
Desde 2023, ela é a vice-presidente de serviços financeiros da Oracle. Sua meta é chegar, um dia, à cadeira de CEO. “Nosso acesso ainda é barrado antes de vislumbrarmos um lugar tão alto por questão de preconceito, tanto para mulheres quanto para pessoas negras em geral”, afirma. “Mas vejo mais de nós chegando, com mais preparo e confiança.”
CEO da Intel
Quando Claudia Muchaluat decidiu conciliar o ensino médio com o curso preparatório para o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), a instituição só admitia homens como estudantes. Apenas em 1995, pasmem, as portas do ITA foram abertas para as mulheres, inicialmente uma por turma. “Mesmo assim, insisti em fazer o curso para chegar mais bem preparada à universidade”, conta a executiva, que costuma se apresentar como uma geek, apelido carinhoso dos aficionados por tecnologia. “Acreditava em sonhos grandes e já me preocupava com o impacto que poderia gerar ao meu redor.”
Ela se voltou para o ITA em razão do apreço pela informática. Formou-se em engenharia eletrônica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) porque esta instituição — diferentemente do ITA — aceitava mulheres. Sua classe, no entanto, tinha apenas duas, contando com Muchaluat. “Reconheço que não foi fácil”, diz ela, que também estudou em Harvard, entre outras instituições de prestígio. “Sofri microagressões e ainda hoje enfrentamos questionamentos e cobranças a partir de vieses conscientes e inconscientes, que se tornam barreiras adicionais à ascensão feminina.”
Nos primeiros 20 anos de carreira, Muchaluat teve apenas homens como líderes. Desde 2022, ela preside a Intel, a maior fabricante de processadores para computadores do mundo. Chegou ao topo, mas ainda é uma exceção. Das mais de 400 empresas listadas na B3, a Bolsa de Valores de São Paulo, apenas três possuem uma mulher como CEO. E isso considerando que, segundo o IBGE, há mais mulheres do que homens com ensino superior no Brasil — 21,3% das profissionais com 25 anos ou mais, ante 16,3% dos homens.
As mulheres também trabalham mais: a carga horária laboral feminina é, em média, 2,3 horas maior que a dos homens, somando funções remuneradas, afazeres domésticos e cuidados com pessoas. No recorte de raça, a disparidade é ainda maior. Mulheres pretas ou pardas representam 27,8% da população brasileira, mas só uma fatia muito pequena delas consegue acessar o mercado corporativo. Atualmente, elas ocupam 0,4% das posições de alta liderança.
CEO da Novo Nordisk Brasil
“Há um momento de nossa jornada em que as demandas pessoais brigam com as prioridades de carreira”, afirma Isabella Wanderley, general manager no Brasil da Novo Nordisk, farmacêutica dinamarquesa que se tornou a empresa mais valiosa da Europa ao lançar o remédio Ozempic, para emagrecimento e diabetes. “O papel das empresas é manter a possibilidade de escolhas, dar visibilidade e apoiar o indivíduo”, diz Wanderley.
A executiva fala com conhecimento de causa. Quando sua filha nasceu, Wanderley foi desligada logo após o período de estabilidade, nunca tendo retornado da licença. Explica-se: sua então empregadora, uma grande cervejaria, sugeriu que ela continuasse em casa até se desligar. “Foi a primeira vez que fui demitida e, claro, questionei se me encaixava e onde havia errado. Por outro lado, já sentia e hoje tenho certeza de que não seria feliz ali.”
Desnecessário dizer quão injusta e precon-ceituo-sa foi a atitude da tal cervejaria. Convém registrar, no entanto, um estudo do Banco Mundial. De acordo com o documento, alcançar a igualdade de participação na força de trabalho com equidade salarial entre homens e mulheres resultaria em um enorme incremento à economia global — um dividendo de gênero estimado em 172 trilhões de dólares.
O panorama atual não parece otimista, mas tem melhorado. Lançada há 20 anos, a pesquisa -Women in Business, da consultoria Grant Thornton, mostra uma evolução. Em 2004, 19,4% dos cargos de liderança em grandes empresas, globalmente, eram ocupados por mulheres. Na edição deste ano, o percentual subiu para 33,5%.
Algumas áreas apresentam maior evolução da presença feminina no C-level. Esses setores também se destacam por liderar a chamada revolução digital, transformação econômica em curso que promete gerar um dos processos de disrupção criativa mais intensos da história. Enquanto setores como manufatura, petróleo e gás e mineração parecem arraigados ao passado, as mulheres têm ocupado espaços importantes em empresas de tecnologia e saúde. A CEO da Novo Nordisk Brasil é prova disso.
CEO da SAP
Ao lado de Tânia Cosentino, presidente da Microsoft no Brasil, e Paula Bellizia, presidente da Ebanx, Cristina Palmaka pode ser considerada uma veterana na alta liderança de big techs. Desde 2020, ela exerce a presidência da SAP para a América Latina e Caribe — a companhia é sinônimo de sistemas de gestão empresarial. Em 2013, a executiva se tornou a primeira mulher a assumir a operação brasileira da empresa. Palmaka vinha de uma longa vivência na gestão de companhias do setor. Logo ao chegar, firmou o compromisso de aumentar para 25% a presença feminina na gerência até 2018.
O resultado foi alcançado em seis meses e, de lá para cá, 35,3% da força de trabalho e 28,6% dos cargos de liderança da multinacional alemã no Brasil são ocupados por mulheres. Quando precisou passar o bastão para encarar o desafio atual, Palmaka conseguiu mais um feito ao deixar a presidência brasileira para a executiva Adriana Aroulho. Uma escolha natural dentro do processo de sucessão que já se desenhava, mas que, Palmaka explica, também é reflexo do olhar cuidadoso estimulado em sua gestão.
“Houve um momento em que tivemos de parar para examinar onde as mulheres se perdiam. Percebemos um grande gap a partir de quando assumiam o primeiro cargo gerencial”, lembra Palmaka, que tem propriedade de sobra para falar sobre o assunto. “Assim, direcionamos as ações afirmativas principalmente para esse nível. O fundamental é escalar a conscientização para os demais líderes. Da minha cadeira, por mais que me envolva, não consigo ver tudo e preciso garantir que quem está abaixo assuma o mesmo compromisso.”
Como garantir que mais mulheres cheguem tão longe como ela? A resposta, acredita Palmaka, depende de uma ação que envolva diversos segmentos da sociedade e em todos os níveis, inclusive entre as próprias mulheres. “Organizações têm políticas, mas são feitas de pessoas, que devem incorporar a cultura de inclusão e fomentar um ambiente seguro”, diz a presidente da SAP para a América Latina e Caribe. Está coberta de razão.