Cartaz da Apple em Las Vegas, em 2019, durante a feira CES: “O que acontece no seu iPhone fica no seu iPhone” . (Picture Alliance/Getty Images)
Redação Exame
Publicado em 26 de abril de 2023 às 06h00.
Uma decisão do Google, anunciada em janeiro de 2020, tira o sono do ecossistema de publicidade digital até agora. O que o gigante de tecnologia anunciou foi a intenção de descontinuar o uso de cookies de terceiros pelo Chrome. Boa parte dos anúncios digitais se vale desses cookies, que favorecem campanhas bem efetivas, mas não se importam com a privacidade dos internautas. Para criar alternativas que preservem melhor os dados deles — mas que não travem o sucesso dos negócios digitais —, a Alphabet, dona do Google, criou em 2019 uma divisão chamada Privacy Sandbox.
Inicialmente, a meta era fechar o cerco contra os tais cookies no início de 2022. Em junho de 2021, porém, o gigante das buscas decidiu adiar a transição, aumentando a janela para a indústria de publicidade digital elaborar anúncios direcionados que não ferissem a privacidade. “A sugestão que mais recebemos de todas as partes interessadas está relacionada à necessidade de mais tempo para avaliar e testar as novas tecnologias Privacy Sandbox, antes de encerrar o suporte aos cookies de terceiros no Chrome”, declarou, em julho do ano passado, Anthony Chavez, vice-presidente da nova divisão.
Na mesma época, o executivo informou que a companhia agora pretende dar um basta a eles no segundo semestre de 2024. Até lá, espera o Google, as novas interfaces de programação de aplicação (APIs) desenvolvidas pela Privacy Sandbox já terão sido largamente adotadas. O objetivo é integrá-las ao Chrome no terceiro trimestre deste ano. “Essa estratégia deliberada para uma transição de cookies de terceiros assegura o avanço futuro da internet, deixando de depender de identificadores de rastreamento entre sites ou de tecnologias ocultas, como o ‘fingerprinting’”, acrescentou o vice-presidente da Privacy Sandbox.
Em resumo, cookies nada mais são do que arquivos de texto que cada site visitado envia para o seu navegador. Os chamados cookies primários armazenam as informações de todo mundo anonimamente e salvam eventuais dados de login e preferências, por exemplo, em relação a idiomas — tudo para otimizar e acelerar a navegação.
Até aí, são só vantagens. Já imaginou ser obrigado a digitar o nome de usuário a cada novo acesso ao Gmail? Ou precisar preencher cada formulário online do zero? Agradeça aos cookies primários, responsáveis pela aplicação automática das configurações que você previamente definiu. Também é graças a eles que você navega em um site de passagens aéreas, por exemplo, e se depara, na próxima visita, com exatamente aquilo que pesquisou anteriormente.
Mais: caso os cookies não existissem, seria impossível dar início a uma compra num e-commerce qualquer, fechar a página sem comprar nada e, dias depois, voltar ao mesmo endereço e encontrar o carrinho com exatamente os mesmos itens de antes. Alguns sites, por sinal, só funcionam se os cookies estiverem habilitados. É o caso do Facebook e do YouTube, por exemplo.
Já os cookies de terceiros, como o nome indica, partem de servidores ou domínios diferentes daquele que o usuário está visitando. São enviados para os dispositivos dos internautas, geralmente por motivos publicitários, por meio de outros sites, programados para isso. São altamente valorizados porque permitem que os anunciantes rastreiem a atividade online de cada um — para dispararem, em seguida, anúncios altamente personalizados e efetivos.
A Alphabet, registre-se, não tem nada contra os cookies primários — e muito menos contra a publicidade digital. Pelo contrário. No último trimestre do ano passado, a companhia faturou 59 bilhões de dólares com anúncios.
Em vigor na União Europeia desde maio de 2018, o célebre Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) tentou, entre outras coisas, pôr ordem no armazenamento de cookies. Ele determina que os cookies, de terceiros ou primários, não são ilegais — desde que os internautas deem aval para eles.
Está explicado por que ninguém escapa, ao visitar um site pela primeira vez, da chatice de concordar ou não com a política dele em relação aos cookies. Em agosto de 2018, o Brasil sancionou uma lei parecida com a da Europa. Nos Estados Unidos, a proteção de dados dos internautas é garantida por uma série de regulações.
A Apple se voltou contra os cookies de terceiros também em 2020. Naquele ano, eles passaram a ser bloqueados pelo chamado Intelligent Tracking Prevention (ITP), recurso adicionado ao Safari e ao sistema operacional iOS. A companhia criada por Steve Jobs levantou a bandeira da privacidade dos usuários em 2015. Foi quando agregou, pela primeira vez, um bloqueador de anúncios no Safari. O ITP foi lançado em 2017 e, dois anos depois, incorporado ao sistema operacional dos Macs.
Em 2019, não por acaso, a Apple fixou um outdoor do lado de fora da feira CES, em Las Vegas, que dizia o seguinte: “O que acontece no seu iPhone fica no seu iPhone”. Mais um passo foi dado em 2021, com uma atualização do iOS — o sistema operacional passou a solicitar aos usuários que informem se desejam ou não o rastreamento de anúncios.
Logo em seguida, a Meta declarou que a mudança anunciada pela Apple diminuiria o faturamento do Facebook em 10 bilhões de dólares. “É um vento contrário bastante significativo para o nosso negócio”, declarou na época o chief financial officer (CFO) da Meta, Dave Wehner, se referindo à atualização do iOS.
Tim Cook, pouco antes, havia tuitado o seguinte: “Acreditamos que os usuários devem ter a escolha sobre os dados que estão sendo coletados deles e sobre como são usados. O Facebook pode continuar rastreando usuários em aplicativos e sites como antes”. Mas a rede social de Mark Zuckerberg terá de pedir o ok deles antes, acrescentou o CEO da Apple.
Ao que tudo indica, portanto, a era dos cookies de terceiros está com os dias contados — o que impõe novos desafios para as equipes de marketing e aumenta a importância dos dados primários. Segundo a oitava edição do relatório State of Marketing, que descortina as principais tendências do setor para 2023, os profissionais desse meio já estão se antecipando à descontinuação dos cookies de terceiros.
Eles ainda são utilizados, de acordo com o levantamento, por 75% dos entrevistados — elaborada pela Salesforce, a pesquisa se baseia nas respostas de 6.000 gerentes, diretores e vice-presidentes de marketing, além de CMOs, de 35 países, incluindo o Brasil. Apesar disso, 68% das pessoas ouvidas dizem já ter conseguido definir estratégias para se distanciar dos cookies que estão à beira da extinção.
Os profissionais da área, no entanto, estão na corda bamba. Por um lado, parecem estar de acordo com as medidas que visam aumentar a privacidade e a segurança dos clientes — tidas, por sinal, como essenciais para fomentar e manter a confiança nas campanhas. Por outro lado, temem dar adeus aos cookies de terceiros, que se mostraram aliados valiosos por muito tempo. Segundo o relatório, só 51% dos profissionais da área dizem ir além das regulamentações e dos padrões do setor para proteger a privacidade dos clientes — 49%, portanto, se contentam com o mínimo.
O que todos têm feito além de recorrer à estratégia de sempre? Atualmente, de acordo com o mesmo levantamento, 83% fazem uso de dados transacionais, e o mesmo tanto recorre a identidades digitais conhecidas. As preferências e os interesses declarados pelos consumidores norteiam o trabalho de 82% dos entrevistados, e os chamados dados secundários servem de base para 77%. O mesmo percentual de profissionais se vale de preferências ou interesses deduzidos; 75% apostam em identidades digitais anônimas; 69% se fiam em identidades offline; e 58%, em dados não transacionais.
A verdade é que dados continuam indispensáveis para o desenvolvimento de campanhas vitoriosas e que justifiquem cada esforço e real despendidos. E quanto mais dados, melhor, o que vale tanto para equipes de marketing quanto para qualquer time de vendas. Segundo uma pesquisa da Gartner de 2021, apenas 14% das empresas têm uma visão de 360 graus de seus clientes. As poucas organizações que têm, constatou o mesmo estudo, creditam isso ao uso de plataformas que concentram os dados dos clientes.
Outra descoberta curiosa do relatório da Salesforce: muitos dos profissionais de marketing estão apostando em estratégias que incluem incentivos aos consumidores — em troca do compartilhamento voluntário de informações, o que ajuda a enriquecer as plataformas de dados. Outras equipes, convém registrar, depositam enorme esperança na Web3.
O ecossistema online descentralizado com base na tecnologia blockchain, sustenta a Salesforce, pode abrir um novo capítulo na evolução do marketing. À medida que a Web3 ganha mais popularidade, os profissionais da área se veem autorizados a elaborar campanhas que utilizam inovações, como os NFTs.
Surpreendentemente, 51% das equipes de marketing já criaram alguma estratégia fundamentada em alguma novidade relacionada à Web3, o que inclui os gadgets que facilitam a imersão no metaverso, como os óculos de realidade virtual. Com a era dos cookies de terceiros chegando ao fim, as criptomoedas, o metaverso e os NFTs se apresentam como boas oportunidades para a coleta de dados primários.
O Starbucks que o diga. Em dezembro, a rede de cafeterias roubou a cena ao lançar uma coleção de selos digitais protegidos pela tecnologia blockchain. Em março, voltou à carga com uma nova leva que esgotou em minutos — cada item custava 100 dólares. Os tais selos, que os clientes adoram postar nas redes sociais e abrem caminho para a coleta de uma enormidade de dados, fazem parte do programa de fidelidade da empresa, chamado Odisseia do Starbucks. Cada um dá direito a uma quantidade de pontos, que podem ser transformados, por exemplo, numa viagem para a fazenda de café do grupo na Costa Rica.