Diretores do Facebook, Twitter e Google falam ao Congresso americano: cerco regulatório sobre as big techs se fecha mundo afora (OLIVIER DOULIERY/AFP/Getty Images)
Repórter de Economia e Mundo
Publicado em 25 de maio de 2023 às 06h00.
Bill Gates disse anos atrás que, na “aldeia global do amanhã”, a internet estava virando a pracinha da cidade. A Constituição da pracinha, porém, tem sofrido pressões por atualização. A regulação de plataformas ganhou destaque no Brasil com o avanço do PL 2.630/20, que instituiria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Em todo o mundo, cada vez mais países têm aprovado legislações (veja abaixo).
As regras que hoje regulam redes sociais e buscadores datam de tempos em que problemas como a desinformação não eram debatidos e as big techs eram menos onipresentes na esfera pública. Em todo lugar, o centro da discussão é se as plataformas são ou não responsáveis pelo conteúdo publicado nelas. Apesar da boa intenção dos projetos, um risco é que, ao responsabilizar as empresas, se abra brecha para ataques à liberdade de expressão — cenário pior ainda em possíveis governos autoritários. Com algumas big techs entre as empresas mais ricas do mundo, ganhou força o tema econômico nas regulações, com demanda por pagamento a autores. Regular a pracinha da cidade nunca foi tão complexo.
Regulações pelo mundo
Quais são as leis já aprovadas e os debates em curso em alguns países
União Europeia: Digital Services Act (2022)
• Regulação ampla, inclui temas como transparência algorítmica, publicidade infantil, exigência de escritório local e cooperação com autoridades;
• válida para todas as intermediárias até o consumidor, incluindo varejistas, como a Amazon.
Austrália: News Bargaining Code (2021)
• Exige negociação entre plataformas e veículos jornalísticos para remuneração;
• ao todo, acordos chegaram a 200 milhões de dólares.
Canadá: Online News Act (em debate)
• Inspirada na lei da Austrália, forçaria plataformas a negociar remuneração de conteúdo jornalístico;
• outra lei, aprovada em abril, inclui remuneração de conteúdo cultural em redes como YouTube, TikTok e streamings.
Estados Unidos: mudança na Section 230 (em debate)
• A Suprema Corte terá de decidir se responsabiliza plataformas por conteúdo;
• o Congresso discute a possibilidade de um fundo jornalístico ou de uma lei como a da Austrália.
A Austrália foi pioneira ao passar em 2021 uma legislação que obriga a negociação de Google e Meta com veículos jornalísticos para remuneração de conteúdo. A regra teve como base recomendações do órgão de concorrência do país, a ACCC, que classificou o cenário anterior como um “desequilíbrio” no livre mercado. O economista Rod Sims, ex-chefe da ACCC que liderou o processo, falou à EXAME sobre o que acredita ter funcionado no caso australiano. Outros países caminham para legislar sobre o tema, como o Canadá. No Brasil, o assunto estava junto com o PL das fake news relatado por Orlando Silva (PCdoB), com proposta parecida com a da Austrália. Antes do fechamento desta edição, o trecho terminou transferido para um antigo projeto de marco legal dos direitos autorais, que pode incluir remuneração a artistas e outros temas. Veja a seguir os principais trechos da entrevista.
O que fez a Austrália enxergar a necessidade de regular a remuneração de conteúdo jornalístico em plataformas digitais?
O governo nos pediu para fazer um levantamento e entendemos que havia um desequilíbrio: empresas jornalísticas tentando negociar e plataformas se recusando. Na legislação da Austrália, se há um claro desequilíbrio no poder de barganha, reguladores podem atuar — por exemplo, podemos permitir a empresas de minério negociarem coletivamente com um porto que tenha monopólio. Já havia, então, essa estrutura bem-aceita, não precisamos criar tudo. No caso das plataformas, a lógica é clara: se as partes não chegarem a um acordo de forma privada, haverá uma arbitragem pública. No fim, o Google fez um acordo com todas as empresas de mídia na Austrália que se classificaram.
Como foi a reação das plataformas?
Quando foi para o Parlamento, o Google ameaçou remover o buscador da Austrália. No dia seguinte, o presidente da Microsoft ligou para o primeiro-ministro, que disse que colocaria todos os recursos por trás do Bing para garantir que o mercado fosse suprido. O Google recuou. E eu acho que isso vale para qualquer país: não acredito que vão tirar os produtos do Canadá e muito menos do Brasil. É impensável a ideia de que o Google vai abrir mão do Brasil. Já o Facebook ameaçou retirar todas as notícias do seu feed — embora se chamasse “feed de notícias” na época. Terminaram retirando alertas de incêndios florestais e de saúde na pandemia. A reação foi enorme, e eles também recuaram.
Por que o foco em poder e mercado, e não em direitos autorais?
Somos um regulador econômico, então era natural pensar na concentração do poder de negociação — o que é uma falha de mercado, claramente. Direito autoral, primeiro, não era algo sobre o qual sabíamos muito e, segundo, na época o departamento governamental nos disse para não seguir por essa linha. Queríamos que as coisas fossem tratadas por meio de negociações comerciais. A simples possibilidade de, se não houvesse negociação, entrar em arbitragem fortaleceu muito o poder das empresas de mídia. A partir daí, cada uma conseguiu negociar algo que a beneficiava de acordo com sua natureza, digital, impresso, TV. E também os pequenos: um grupo de 160 publicações bem pequenas se juntou para negociar um acordo, e conseguiu.
Como o senhor vê o debate no restante do mundo agora?
É muito bom que esteja ocorrendo em outros países. As empresas de tecnologia conseguiram confundir o debate, alegando que a Austrália só beneficiou a News Limited — que, como você sabe, é de Rupert -Murdoch, uma figura polarizadora. Isso não é verdade. Hoje há veículos nativos digitais em todo canto, que, na minha visão, conseguiram um acordo por jornalista até melhor do que os grandes. E também é justo que os grandes sejam compensados. No entanto, acho que um projeto de lei que apenas crie um fundo e o divida sem deixar que as negociações ocorram, como se ventila em alguns lugares, leva a negócios piores. Sinceramente, se eu fosse o Brasil, eu faria algo muito parecido com o que a Austrália fez.
No Brasil, o debate da remuneração ocorre ao mesmo tempo que o da regulação geral das plataformas, e têm ocorrido pressões contrárias. Não houve essa reação na sociedade australiana?
Tivemos o apoio de todos os partidos, houve um consenso. Agora, a questão de as plataformas serem ou não responsáveis pelo que está em seu site, discurso de ódio, algoritmos, tudo é muito importante, mas eu faria um projeto de lei separado. Do contrário, as plataformas usarão essa complicação no debate público. Ajuda a confundir as pessoas.