Câmera no aeroporto de Incheon, na Coreia do Sul: todos os viajantes têm a temperatura checada ao entrar no país. O governo monitora por aplicativo quem está cumprindo a quarentena | SeongJoon Cho/Bloomberg/Getty Images /
Da Redação
Publicado em 9 de abril de 2020 às 05h15.
Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 14h45.
Taipé, a capital de Taiwan, é considerada uma das cidades mais seguras do mundo. Roubos são raros e assaltos a mão armada praticamente não existem. A taxa de homicídios é de menos de três moradores para cada 100.000 habitantes — no Brasil, esse número é dez vezes maior. Nas últimas semanas, no entanto, os habitantes de Taipé passaram a ser surpreendidos por policiais batendo à porta de pessoas outrora insuspeitas. Basta deixar o celular desligado por mais de 10 minutos para a polícia tocar a sirene — o usuário recebe uma enxurrada de mensagens no celular avisando que, se o aparelho não for religado rapidamente, poderá ser emitida uma ordem de prisão.
Desde o início do surto de coronavírus, no começo do ano, o governo de Taiwan, uma ilha a 130 quilômetros da China, determinou uma série de medidas extremas para controlar a propagação da doença. As cinco principais companhias telefônicas de Taiwan foram convocadas a quebrar o sigilo dos usuários em nome da saúde pública. O governo passou a ter acesso a nomes e números de telefone de quase todos os 24 milhões de moradores da ilha, cujos aparelhos devem estar com a geolocalização ativada. A polícia e o Ministério da Saúde recebem, em tempo real, informações sobre o paradeiro das pessoas. Quem infringir as regras da quarentena poderá ser multado em milhares de dólares e corre o risco de ser preso.
Nem todos os moradores estão em isolamento. O sistema de vigilância aliado a medidas sanitárias, com testes maciços da população, fez com que o país não precisasse parar inteiramente. Taiwan figura no ranking dos lugares com menos gente infectada. Enquanto o número de doentes explodiu em países como os Estados Unidos e a Itália, onde, respectivamente, 0,1% e 0,2% da população foi contaminada, em Taiwan há menos de 500 casos registrados — o que equivale a 0,0015% do país. “De fato, foi possível controlar a doença, mas duvido que as medidas policialescas tomadas por Taiwan sejam replicáveis e desejáveis em países mais abertos e democráticos”, diz Albert Fox Cahn, professor de direito na Universidade de Nova York, nos Estados Unidos.
Taiwan, obviamente, não está sozinha no controle social extremo. China, Coreia do Sul, Israel, Rússia e outros países têm usado um leque de tecnologias de monitoramento da população diante da ameaça à saúde pública. Uma questão que se coloca para todos os governantes: é legítimo invadir a privacidade dos cidadãos para enfrentar uma pandemia? “Combater o coronavírus exige medidas de guerra, mas não podemos deixar de lado a reflexão sobre valores como a liberdade e a confidencialidade de nossos dados”, afirma Cahn.
É verdade que não é de hoje que os governos têm flertado com a tentação do Estado Leviatã (o filósofo inglês Thomas Hobbes definiu o Estado como um monstro, o Leviatã, com poder absoluto sobre os indivíduos) na medida em que as tecnologias disruptivas exponencializaram a capacidade de vigilância sobre os cidadãos. Estima-se que a China tenha aproximadamente 400 milhões de câmeras de segurança em operação no país — cerca de uma para cada quatro chineses. O alcance dos equipamentos foi potencializado por algoritmos de reconhecimento facial que permitem localizar uma pessoa em uma multidão. A justificativa para o uso desse tipo de tecnologia tem sido a de reforçar as políticas de segurança pública — um argumento que engloba desde a desejável redução da criminalidade até a supressão de manifestações políticas que incomodem o governante da ocasião. Tudo isso já acontecia no mundo pré-coronavírus.
Em países em que o Estado já ocupa um papel gigante, não houve a menor dúvida de qual seria o caminho a seguir. Na supervigilante China, foi fácil confinar quase 60 milhões de pessoas na província de Hubei, epicentro da covid-19. Logo depois do aumento de casos de contaminação, no início do ano, Pequim determinou o uso de aplicativos (criados pelos gigantes e arquirrivais Alibaba e Tencent) que rastreiam os passos dos usuários, suas ligações telefônicas e até se mantiveram distância das outras pessoas em locais como supermercados e restaurantes. A inteligência artificial ajuda a gerar um código de probabilidade de contágio nas cores vermelho, amarelo e verde. Quem foi diagnosticado com a covid-19 ou apresenta febre e tosse e ainda aguarda a confirmação dos testes, é código vermelho. Os cidadãos que tiveram contato com infectados e ainda não completaram o período de quarentena domiciliar de 14 dias recebem o sinal amarelo. Já o código verde significa que a pessoa está livre para circular, podendo utilizar o transporte público, por exemplo. Detalhe: as pessoas que voltaram recentemente à China foram colocadas em isolamento residencial, com um aparelho que atua como lacre da porta. Se alguém sair da casa, a polícia é acionada.
Agora, com as cidades chinesas tentando voltar à normalidade, o uso do sistema de cores segue firme. Há restaurantes e lojas que permitem a entrada apenas dos portadores do código verde. “Embora funcione para conter a pandemia, é um sistema de vigilância total”, diz o coreano Jung Won Sonn, professor de desenvolvimento econômico regional na Universidade de Londres, no Reino Unido. “A China e outros países asiáticos, como Coreia do Sul e Taiwan, conseguiram não impor a quarentena total, o que ajudou a preservar a economia, mas para isso tiveram de usar tecnologias invasivas.” Em Hong Kong, quem chega ao aeroporto recebe uma pulseira que averigua o cumprimento da quarentena. O território independente está usando um supercomputador da polícia para investigar as pessoas que podem ter contraído o vírus e os lugares que elas frequentaram. A máquina cruza os dados referentes a viagens recentes ao exterior, contatos com pessoas infectadas e rotina de deslocamentos. A partir daí, é possível deduzir quem corre mais risco de ser contaminado e de passar o vírus para outras pessoas. Um estudo da Universidade de Oxford, no Reino Unido, publicado no início de abril na revista Science, recomenda a criação de um aplicativo de rastreamento de contatos para apoiar os serviços de saúde. De acordo com o estudo, metade das transmissões ocorre na fase inicial da infecção, antes que algum sintoma seja perceptível.
Da Ásia, onde as políticas de controle social já eram mais toleradas, os instrumentos de monitoramento se espalham para o resto do mundo. Na Austrália, o estado de Austrália Ocidental, que ocupa um terço do território do país, está instalando câmeras de vigilância nas casas de quem foi diagnosticado com coronavírus para ter certeza de que essas pessoas estão cumprindo a quarentena. Quem remover o aparelho terá de pagar uma multa de 7.400 dólares. Em Israel, ferramentas usadas na guerra ao terrorismo estão sendo empregadas para tentar conter a pandemia, com aprovação do Parlamento. Pela primeira vez, o governo israelense autorizou o Shin Bet, serviço secreto do país, a passar informações confidenciais dos cidadãos, como o registro de ligações telefônicas, o local de moradia e a rotina de deslocamentos, ao Ministério da Saúde, em uma regulamentação promulgada no dia 17 de março, com validade até o fim do mês. Pouco antes do prazo de expiração, o gabinete do primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, pediu ao Parlamento a aprovação de uma medida semelhante. Com a participação da sociedade civil, os parlamentares deram o sinal verde para a nova regulamentação. “Foram acrescentados pontos importantes, como uma limitação de aplicabilidade da lei apenas em épocas extremas e raras, como a pandemia”, diz o israelense Michael Birnhack, professor de direito na Universidade de Tel-Aviv, que tomou parte no debate no Parlamento. “Estamos dando superpoderes ao Estado agora porque estamos vivendo uma situação emergencial, mas nada garante que o governo abrirá mão deles quando a pandemia acabar.”
Integrantes de um dos principais ecossistemas de inovação do mundo, as startups de Israel logo encontraram uma oportunidade para desenvolver novas tecnologias. A startup Vocalis Health está analisando a voz de pacientes de coronavírus para definir, por meio de tecnologias como machine learning e inteligência artificial, um padrão sonoro das pessoas infectadas. Como a doença muitas vezes atinge o pulmão e a respiração fica mais difícil, o tom de voz pode ser alterado.
A startup acabou de fazer uma parceria com o Ministério da Saúde de Israel para acelerar o desenvolvimento do aplicativo. “É um método ainda novo, que pode ajudar muito na identificação precoce dos casos”, diz o empreendedor Tal Wenderow, cofundador da empresa. A Vocalis Health, fundada no ano passado, já atende 50.000 pacientes no país, e permite o acompanhamento mais preciso da evolução clínica dos doentes. Já a GlobeKeeper, de Tel-Aviv, criou um aplicativo em que o usuário insere seus dados pessoais, como idade e histórico de saúde, e ativa sua localização. Caso o usuário autorize, essas informações podem ser enviadas ao Ministério da Saúde, que analisa o grau de risco de contágio e toma as providências adequadas. Quase 20% da população do país já baixou o aplicativo. Quando mais gente estiver usando a ferramenta, vai ser mais fácil prever novos casos da doença e preparar os hospitais. Há 8.000 infectados no país.
No Brasil, o uso da tecnologia para monitorar a população está no início. A startup pernambucana de geolocalização In Loco criou um sistema que monitora a adoção do isolamento social no país, a partir de uma base que analisa dados de mais de 60 milhões de dispositivos móveis em todo o Brasil. Na segunda-feira 6 de abril, 57% da população brasileira estava reclusa em seus lares, de acordo com os dados da In Loco. Desenvolvida em março, a ferramenta é gratuita para os governos. Até agora, 20 estados já fecharam parceria com a empresa e estão começando a receber relatórios que trazem dados cartográficos e estatísticos, dos quais é possível inferir o percentual de pessoas que não se deslocam.
Recife, em Pernambuco, foi a primeira cidade a usar a tecnologia da In Loco. Em média, 60% da população do município está em quarentena — antes da explosão da covid-19 no país, apenas 25% dos recifenses permaneciam dentro de casa. Quando os dados apontam que uma região ou um bairro continua com alto fluxo de movimentação, a prefeitura manda carros de som para dispersar e conscientizar as pessoas. São dez veículos percorrendo a cidade. Após duas semanas de isolamento social na cidade, um dos lugares de Recife que ainda apresentavam grande movimentação era no entorno do Parque da Jaqueira, uma das principais áreas verdes da cidade. A decisão da prefeitura foi fechar os 11 parques municipais nos fins de semana. “Com os dados, conseguimos fazer políticas públicas mais assertivas”, diz Tullio Ponzi, secretário de Inovação Urbana de Recife.
A tecnologia da In Loco coleta informações da localidade dos aparelhos celulares por meio de sensores instalados nos smartphones, como Wi-Fi, Bluetooth e GPS. Mas a empresa não tem acesso aos dados de identificação do dono do celular, como nome, RG e CPF. “É possível analisar os dados de forma agregada, mantendo a privacidade do usuário, e ainda assim ter uma alta efetividade”, diz André Ferraz, cofundador e presidente da In Loco.
Manter os dados anônimos é também a prerrogativa do acordo firmado na última semana pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) com as principais empresas de telecomunicações com atuação no Brasil: Claro, Oi, TIM, Vivo e Algar Telecom. “Vamos unir os dados em uma única plataforma e permitir o acesso do Ministério da Saúde e dos governos estaduais e municipais”, diz Carlos Araujo, diretor de novos negócios da Claro. Assim como a tecnologia da In Loco, a ideia é verificar a eficácia do isolamento social em diversas regiões, bem como pontos de aglomeração, o que pode ajudar, por exemplo, a equilibrar as demandas entre os hospitais. Isso será feito por meio de uma série de informações relacionadas ao uso das redes de telefonia pelos usuários. Um menor uso da internet móvel e um maior acesso a redes fixas domésticas indicam adesão à quarentena. As operadoras também registram o uso das antenas de telefonia, que, nas grandes cidades, cobrem um raio de cerca de 200 metros. Quando há circulação, as empresas identificam que um mesmo usuário acessou mais de uma antena. Atualmente, as equipes das organizações trabalham para padronizar metodologias, já que cada uma colhia os mesmos dados de maneira diferente. “O MCTIC aponta as aplicações de interesse para o uso dos dados. E ter o ministério como elo entre empresas e governo é uma medida para evitar o uso inadequado das informações”, diz Leonardo Capdeville, vice-presidente de tecnologia da TIM.
O uso de dados agregados e de forma anônima é uma preocupação generalizada entre as empresas de telefonia para que não corram o risco de infringir a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), sancionada em 2018 e que entrará em vigor em agosto (se não houver adiamento). Com base na legislação análoga europeia, a LGPD prevê multas significativas em casos de vazamento de dados e restringe a captação de informações, que deve ter finalidades justificadas. Justamente por isso, na Alemanha a companhia telefônica Deutsche Telecom entregou, no início de março, dados de seus 46 milhões de usuários para o centro de controle de doenças do país. São informações como idade e principais locais visitados, mas sem identificar o cidadão. Na França, as empresas de telefonia se comprometeram a fornecer informações parecidas. Aqui no Brasil o tratamento de dados também é citado na recente Lei do Coronavírus, sancionada em fevereiro, que obriga o compartilhamento, entre órgãos públicos, de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou sob suspeita de infecção pelo vírus. Empresas privadas são obrigadas a fornecer dados caso sejam solicitados por uma autoridade sanitária.
A estratégia de usar dados pessoais para conter a pandemia, é claro, não está livre de riscos. “Se pessoas forem expostas, poderá haver estigmatização”, diz Flora Sartorelli de Souza, advogada do escritório Duarte Garcia. “Também não sabemos o que vai ser feito desses dados no futuro, e há o risco de vivenciarmos um estado de vigilância sem precedentes.” Um artigo do Centro de Informática Médica da Universidade Yale, nos Estados Unidos, aponta para a necessidade de redefinir práticas e legislações relacionadas à coleta de informações pessoais para defender a privacidade. “O uso de dados para ações de vigilância expande o poder do governo, o que leva a interferências na vida das pessoas — tanto pelas autoridades quanto por companhias privadas”, diz a pesquisadora Bonnie Kaplan, da Universidade Yale, e uma das autoras do trabalho. “É preciso lembrar, ainda, que dados podem ser hackeados ou roubados.” Segundo Kaplan, há tempos os dados pessoais coletados para fins de saúde pública acabam sendo usados para outras finalidades, de ações de marketing a decisões relacionadas à cessão de créditos e financiamentos. “A privacidade não pode ser 100% assegurada, mas pode ser melhorada”, diz.
Cresce a certeza de que o mundo pós-coronavírus será diferente em muitas dimensões. No mundo dos negócios, as cadeias globais de produção serão colocadas em xeque. Na vida pessoal, teremos dificuldade em lidar com aglomerações e espaços com intenso fluxo de indivíduos. O trabalho e o estudo à distância deverão ser cada vez mais comuns em nossa rotina. Mas, ao final desse período, é quase certo que os governos saibam muito mais sobre seus cidadãos do que eles são capazes hoje em dia. Talvez a sociedade do Grande Irmão se materialize porque um vírus, uma das formas de vida menos complexas, mudou o mundo para sempre em 2020.
Professor na Universidade de Londres diz que países como os Estados Unidos e a Itália não consideraram a experiência asiática em lidar com epidemias | Carla Aranha
O coreano Jung Won Sonn, professor de desenvolvimento econômico na Universidade de Londres, no Reino Unido, é considerado um dos maiores especialistas mundiais em crescimento sustentável e evolução tecnológica.
Em entrevista à EXAME, ele reflete sobre o papel do Estado e das ferramentas de vigilância no combate à pandemia.
Como o senhor vê o uso de tecnologias de vigilância pela China e outros países asiáticos?
É fácil criticar os países que vêm adotando essas medidas, como a China e a Coreia do Sul, mas a alternativa é o completo fechamento da economia.
Na China, apenas parte do país, ainda que relevante, foi fechada. Foram medidas acertadas para a proteção da economia, mas são discutíveis nos países democráticos, em que a liberdade individual é respeitada.
Países como os Estados Unidos e a Itália poderiam ter tomado as mesmas medidas da Ásia?
Eles negaram a gravidade da doença, em um primeiro momento, e ignoraram a experiência asiática. Hong Kong, Taiwan e Coreia do Sul já tinham passado por epidemias similares e sabiam o que precisava ser feito. Os países ocidentais perderam a janela de tempo em que ainda seria útil rastrear as pessoas para isolar aquelas com mais risco de contrair a doença. De qualquer forma, a decisão de empregar a tecnologia dessa maneira, colocando em xeque a privacidade, precisaria ser debatida nos países democráticos.
Qual deveria ser o papel do Estado numa crise sanitária como a do coronavírus?
Os países estão adotando medidas autoritárias e uma supervigilância dos cidadãos. Claro que tudo isso faz parte de um conjunto de medidas para proteger a população, mas os governos podem acabar extrapolando. Isso é perigoso. Quando o Estado ganha poder, é difícil imaginar que vai abrir mão disso graciosamente.