Regina Moura, diretora da Roche Brasil: após 55 anos, a farmacêutica buscou um novo espaço, com mais áreas de interação (Leandro Fonseca/Exame)
Qual é o valor de um escritório? A Pixar pode ter algumas pistas. Desde que começou a emplacar um sucesso de bilheteria atrás do outro, o estúdio de animação virou referência em criatividade. Em 2014, Edwin Catmull, que cofundou a empresa com Steve Jobs, publicou um livro considerado por muitos a Bíblia para quem busca criar uma cultura de inovação corporativa. Trata-se da obra Criatividade S.A.: Superando as Forças Invisíveis que Ficam no Caminho da Verdadeira Inspiração.
Além de autonomia para os funcionários e uma série de rituais para manter a criatividade pulsante no time, em diversas oportunidades Catmull citou algo que facilitava a colaboração entre as equipes: o escritório da Pixar.
O prédio, localizado na Califórnia, foi criado por Steve Jobs com o objetivo de fazer com que pessoas de diferentes áreas interagissem. Inspirado nos armazéns dos anos 1920, o espaço conta com dois andares e um grande átrio no centro, em que há um refeitório, uma cafeteria, banheiros, sala de jogos, sala de reuniões e cinema. “A ideia é que todos os funcionários tenham motivos para ir a esse átrio repetidamente e, assim, esbarrem com algum colega. É difícil descrever quão valiosos são os encontros casuais resultantes disso”, escreveu Catmull em um artigo para a Harvard Business Review, em 2008.
Com a adoção do trabalho híbrido ou mesmo totalmente remoto pós-pandemia, assim como a Pixar, muitas empresas estão precisando repensar o escritório ou desenvolver iniciativas para aumentar as oportunidades desses encontros fortuitos entre os times. As razões para isso são óbvias: se já era difícil interagir com colegas de diferentes áreas presencialmente, à distância esse desafio se tornou ainda pior.
“No home office, as interações são mais planejadas e objetivas. Com isso, perdeu-se um pouco das conexões mais espontâneas, aquela conversa no cafezinho que dava origem a um projeto, um comitê ou mesmo um insight para resolver um problema”, diz Tey Yanagawa, líder de pesquisas da Cia de Talentos que, em parceria com a consultoria Wiz&Watcher, realizou um estudo que apontou a desconexão como um dos dilemas pós-pandemia.
Os números comprovam isso. Dados do Instituto Gensler, braço de pesquisas da empresa de arquitetura de mesmo nome que estuda o ambiente de trabalho há 15 anos, mostram que, antes da pandemia, os profissionais gastavam em média 43% do tempo em atividades colaborativas, seja presencialmente, seja online. Com o home office, o número despencou para apenas 27%.
Não à toa, uma pesquisa da Universidade Yale, feita com 418 pessoas entre 2019 e 2020, apontou que as redes de contatos profissionais e pessoais diminuíram 16% desde o início da crise sanitária, com um aumento do sentimento de solidão.
A resposta de algumas empresas foi, assim que a pandemia arrefeceu, exigir a volta dos funcionários ao trabalho presencial. O banco americano Goldman Sachs foi uma delas. No final de janeiro deste ano, a instituição financeira enviou um comunicado para os 10.000 funcionários sinalizando que eles deveriam deixar o home office dentro de duas semanas. Só que não adiantou ameaçar: apenas 50% dos profissionais apareceram no dia da reabertura do escritório.
Não é um caso isolado. O CEO da Starbucks, Howard Schultz, chegou a declarar que implorou aos funcionários para que voltassem ao escritório, sem sucesso. De instituições financeiras a gigantes de tecnologia, diversas empresas estão lutando para trazer os funcionários ao trabalho presencial depois da pandemia, com muitas enfrentando ondas de demissão após a exigência da volta total ou mesmo parcial.
“Embora os profissionais sintam falta da interação com os colegas, a pandemia trouxe uma reavaliação de valores para muitos, que passaram a valorizar a flexibilidade do home office. Então, não adianta as empresas tentarem voltar ao que eram antes; é preciso criatividade para encontrar formas de conexão neste mundo híbrido”, diz Tatiana Fernandes, sócia da PwC, consultoria global que, há mais de 169 anos, pesquisa tendências no ambiente de trabalho.
A distância física é especialmente complicada para manter conexões com times de diferentes áreas. De acordo com uma pesquisa da Harvard Business School, enquanto as trocas entre funcionários da mesma equipe aumentaram 40% após o home office, a comunicação com colegas de times mais distantes caiu 10% no mesmo contexto.
Essa realidade foi sentida na WeWork, rede de coworkings que emprega mais de 650 pessoas na América Latina. Por lá, 40% dos empregados trabalham presencialmente, e o restante atua em modelo híbrido.
A orientação é para irem dois dias ao escritório central da WeWork, em São Paulo, e outros dois dias à unidade da rede que preferirem. “Ficou nítida a criação de silos; as áreas estavam mais fechadas dentro delas mesmas. As equipes precisam trabalhar orientadas para a estratégia do negócio, e não para os objetivos de cada uma delas individualmente”, diz Clecia Simões, líder de recursos humanos da WeWork para a América Latina.
A capacidade de se conectar com grupos distintos é algo tão importante para o futuro das companhias que vem sendo tema de estudo de diversos especialistas mundo afora. Um deles, o vice-presidente de talentos e desenvolvimento da Amazon e ex-executivo da General Motors, Michael Arena, escreveu a obra Adaptive Space: How GM and Other Companies Are Positively Disrupting Themselves and Transforming into Agile Organizations, lançada em 2018, na qual desenvolveu o conceito de capital ponte.
Diferente do capital de conexão, que é a habilidade de se conectar com quem está próximo, o capital ponte seria a habilidade de criar conexões com quem não está no nosso dia a dia e possui habilidades e interesses diferentes dos nossos. “As conexões pontes fazem com que as relações dentro das empresas sejam mais amplas e, com isso, gerem mais inovação.
Algo que se tornou um desafio no contexto atual, não só pelo híbrido mas pelas novas configurações de trabalho, com pessoas atuando por projetos, parcerias e outros modelos”, diz Cintia Gonçalves, fundadora da consultoria Wiz&Watcher, que estuda a obra de Michael Arena.
A saída da WeWork para esse dilema foi criar um orçamento destinado às atividades de team builder, com valor de 80 reais para cada funcionário. Os times são livres para decidir em quais atividades vão gastar os recursos. Desde o lançamento, há seis meses, já houve encontros em karaokês, boliche, aulas de cerâmica, churrasco e até rafting.
Assim como a Pixar, outras organizações têm apostado na arquitetura dos escritórios como uma ferramenta para aproximar os times e recuperar as conexões perdidas. “Os escritórios viraram hubs, locais em que as pessoas vão para colaborar.
As empresas precisam repensar a existência deles para que, de fato, isso aconteça”, diz Gonçalves, da consultoria Wiz&Watcher. A farmacêutica Roche, depois de passar 55 dos 90 anos em que está no Brasil no mesmo escritório, mudou a localização de sua sede em São Paulo.
O novo prédio, localizado no Brooklin, zona sul da capital paulista, conta com um auditório e um andar reservado apenas para salas de reuniões. No térreo, há bancos e cápsulas para encontros de pequenos grupos, além de uma cafeteria.
Cruzando todos os cinco andares, uma escada em caracol. “A ideia de colocar a escada no meio do escritório foi proposital, para promover um maior encontro entre as pessoas. Também não temos mesas fixas, para que todo dia cada um do time fique perto de um colega diferente”, diz Regina Moura, diretora de comunicação e digital da Roche Farma Brasil.
Com 1.468 funcionários, a companhia adotou o modelo híbrido, com dois dias de trabalho no escritório e o restante em home office. Ciente de que só a arquitetura do prédio não seria o bastante para que as pessoas interagissem, a farmacêutica dividiu as equipes em cinco comunidades, levando em consideração o tamanho das áreas e a similaridade entre elas.
Depois, criou uma escala de dias para elas comparecerem ao escritório. Agora, todas as terças, quartas e quintas-feiras acontecem os chamados Dias das Comunidades, em que dois grupos se encontram, de maneira que todos os cinco tenham pelo menos uma interação no período de três meses. “Tomamos como base um estudo que apontava que nas empresas que atuavam no modelo híbrido as pessoas tendiam a estabelecer um padrão de rotina nos dias em que iam para o escritório, encontrando os mesmos grupos”, afirma Regina Moura.
Num contexto em que não há escritório para o qual voltar, o desafio de criar conexão fica ainda mais difícil. Dados de uma pesquisa da Microsoft, que ouviu 31.000 pessoas em 31 países, apontam que 48% dos profissionais que atuam no modelo híbrido dizem ter um bom relacionamento com pessoas fora de sua equipe.
No entanto, esse número cai para 42% para aqueles que estão totalmente remotos. No caso da fintech Cora, a saída foi ousada: criar um festival para aproximar os funcionários. Fundada em 2020, a companhia trabalha de forma 100% remota desde o começo da pandemia, sendo que o time cresceu de 60 para 400 pessoas nos últimos dois anos.
Como consequência, cerca de 90% dos empregados da startup não se conheciam pessoalmente. “Sabemos que construir relações de confiança no online é mais difícil, então criamos um evento que não tivesse nada a ver com uma convenção de empresa tradicional, que não fosse algo para falar de metas”, afirma Gustavo Viegas, líder de pessoas e cultura da Cora.
Em junho, a companhia fechou um hotel no interior de Minas Gerais e promoveu o Tum Tum Festival. Com cinco dias de duração, a programação do evento contou com shows, uma festa na piscina e um luau. Durante o dia, a companhia convidou nomes como o escritor americano Peter Senge, autor do livro A Quinta Disciplina, para falar sobre pensamento sistêmico.
Para os pais e mães que não tinham com quem deixar os filhos, foram contratados recreadores infantis. A ideia é que a próxima edição do encontro ocorra entre novembro e dezembro deste ano e vire tradição. “A ideia é que, quando houver uma situação desafiadora no dia a dia, elas relembrem a conexão criada nesse momento”, afirma Viegas.
Além de peça fundamental para inovar, a construção de relacionamentos no ambiente corporativo é importante para reter talentos. Ainda segundo a pesquisa da Microsoft, profissionais que relatam ter bons relacionamentos com suas equipes são mais satisfeitos com o trabalho (76%), além de terem mais chances de permanecer na companhia dentro de um ano (61%). Já entre quem possui conexões fracas com suas equipes, os números caem para 57% e 39%, respectivamente.
Conhecer e interagir com as pessoas somente por meio das telas pode abalar até a confiança. Um estudo da Universidade Erasmus, na Holanda, que avaliou o comportamento de 5.400 profissionais em 2020, concluiu que, quanto mais tempo os trabalhadores passaram longe de seus colegas, menos eles relataram acreditar e confiar neles.
Empresas que estão apostando em ações para aproximar os times após os anos de pandemia já colhem resultados. Na WeWork, o Internal Net Promoter Score (INPS) aumentou de 43% no início de 2021 para 57% em janeiro de 2022, quando as ações de conexão entre os times começaram a acontecer. Na Cora, após o Tum Tum Festival, foi realizada uma pesquisa em que o evento obteve 98% de satisfação entre os funcionários.
A fabricante de alimentos Nestlé usou a pandemia e as relações pessoais como um campo de teste prático para o que é confiar e apoiar o próximo. Para substituir funcionários do grupo de risco que atuavam em áreas essenciais que não poderiam parar, como as fábricas ou a logística, a Nestlé criou o projeto Missões Colaborativas no início da pandemia.
O próprio RH selecionava e convidava os profissionais com habilidades que poderiam ser redirecionados, enquanto os do grupo de risco assumiam postos mais administrativos. Ao longo de 2020, foram realizadas 900 missões colaborativas, o que, além de fazer com que a empresa não demitisse ninguém, ajudou as vendas online a crescer três vezes.
O projeto deu tão certo que, depois do auge da pandemia, a Nestlé decidiu torná-lo permanente e deixá-lo aberto para qualquer profissional que quisesse colaborar com projetos de outra área. Para facilitar a conexão, a companhia criou uma plataforma, a People Match, em que, de um lado, profissionais colocam suas habilidades, interesses e hobbies. E, do outro lado, líderes publicam os projetos que estão tocando e nos quais gostariam de contar com a ajuda de pessoas de outros times.
“Incentivamos a atuarem em algo que também não esteja relacionado à sua função. Por exemplo, se você é um vendedor que gosta de games, eventualmente pode contribuir com a área de RH, que está construindo uma plataforma de treinamento gamificada”, diz Daniela Matsumoto, gerente de treinamento e desenvolvimento na Nestlé.
A empresa estima que, até abril deste ano, tenha economizado 500.000 reais que seriam gastos com a contratação de consultorias ou a abertura de novas vagas para os projetos que foram feitos com os recursos que já estavam em casa. Uma conversa de cafezinho, como se vê, pode trazer resultados valiosos.
As ideias de empresas brasileiras dispostas a aumentar a interação dos funcionários no esquema híbrido — e os resultados obtidos
ROCHE
Desafio - Incentivar a conexão entre as equipes, após a adoção do modelo híbrido, em que os funcionários vão duas vezes por semana ao escritório.
Solução - A empresa foi dividida em cinco grandes grupos para os Dias das Comunidades, em que todas as terças, quartas e quintas-feiras duas das comunidades se encontram no escritório, de maneira
que todas tenham pelo menos uma interação em três meses.
Resultado - Média de 400 pessoas indo para o escritório nos Dias das Comunidades. Fora deles, esse número cai para apenas 150 pessoas.
NESTLÉ
Desafio - Continuar a colaboração do time que surgiu no auge da pandemia, quando profissionais precisaram substituir colegas que eram do grupo de risco e estavam em atividades essenciais.
Solução - Criou uma plataforma, batizada de People Match, em que os profissionais inserem informações como habilidades, interesses e hobbies e são conectados com projetos em potencial com os quais poderão colaborar temporariamente.
Resultado - A companhia estima uma economia de 500.000 reais que seriam gastos com a contratação de pessoas ou de consultorias para os projetos que, no final, foram realizados com recursos próprios.
CORA
Desafio - Em um cenário com muitos funcionários contratados na pandemia e que não se conheciam, a fintech queria estreitar os laços para além do remoto.
Solução - Realizou o Tum Tum Festival, reunindo toda a equipe durante cinco dias em um hotel. Além de shows de famosos e festas, o evento teve atividades sobre vulnerabilidade para aproximar os times.
Resultado - Em uma pesquisa realizada pós-festival, os funcionários relataram 98% de satisfação com o evento.
WEWORK
Desafio - Aumentar a colaboração entre as áreas, já que a empresa sentiu que os times ficaram mais fechados em silos durante a pandemia.
Solução - Disponibilizou um orçamento para atividades de team building e deixou os times decidirem em quais atividades vão gastar o recurso. Embora não seja uma regra, a empresa incentiva as equipes a se unirem com outras áreas para realizar os encontros, que incluem churrascos, karaokês, aulas de cerâmica e rafting.
Resultado - O INPS do WeWork, ou seja, o potencial de os funcionários indicarem a companhia como um bom lugar para trabalhar, aumentou de 43% no início de 2021 para 57% em janeiro de 2022.
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