Resta saber se o próximo presidente conseguirá cumprir seu objetivo (Drew Angerer/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 17 de dezembro de 2020 às 05h18.
Joe Biden prometeu que os Estados Unidos vão voltar ao Acordo de Paris em 20 de janeiro, primeiro dia de seu mandato. Será uma de suas primeiras medidas e um sinal da nova orientação da política externa americana: colaboração internacional e multilateralismo em vez de “os Estados Unidos em primeiro lugar” de Donald Trump. A decisão de retomar o compromisso com a agenda da ONU para responder à ameaça da mudança climática representa uma ruptura radical da diplomacia americana dos últimos quatro anos — e deve ter consequências diretas para o Brasil.
O democrata vai assumir o governo em um momento de crise de proporções históricas. A pandemia da covid-19 já deixou 300.000 mortos no país e segue fora de controle. Até o fechamento desta edição, ainda não havia esperança de acordo para uma nova rodada de estímulo econômico, mesmo diante de uma nova onda de restrições de circulação e redução da atividade econômica. No ocaso de seus dias na Casa Branca, Trump essencialmente abandonou o cargo — passa os dias repetindo teorias da conspiração sobre fraude eleitoral.
Tudo isso significa que a atenção imediata do novo presidente deve estar voltada para os problemas domésticos. Mas a agenda climática foi um dos temas centrais de sua campanha, e a expectativa é que Biden seja especialmente atuante no tema. O ex-secretário de Estado John Kerry será o responsável por liderar os esforços do novo governo.
Kerry, cujo título formal é “enviado especial para o clima”, terá status de ministro e um assento no Conselho de Segurança Nacional. “É um sinal claro de que Biden está falando sério”, diz Daniel Wilkinson, diretor de meio ambiente da ONG Human Rights Watch, em Nova York.
Ainda é cedo para estimar o que isso representa na prática para o governo brasileiro, mas os sinais não são promissores. O desmatamento segue batendo recordes na Amazônia, e a resposta-padrão do governo brasileiro tem sido defensiva: apontar supostas tentativas de interferência na soberania nacional. Em um debate, Biden afirmou que o país deveria “sofrer consequências econômicas significativas” caso a devastação siga sem controle.
O risco de um entrincheiramento de Jair Bolsonaro — que um mês e meio depois ainda não reconheceu a vitória eleitoral de Biden — pode levar a um “azedamento nas relações entre os dois países”, escreveu Ian Bremmer, presidente da influente consultoria de risco político Eurasia Group, em uma nota enviada a seus clientes no começo de dezembro. Para Bremmer, o Brasil “se destaca como um dos perdedores” quando se considera o papel da proteção do meio ambiente na política externa do governo democrata.
Um exemplo do que pode estar por vir é o impasse no acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul. Depois de duas décadas de negociações, o tratado foi finalizado no ano passado, mas a França colocou impedimentos na ratificação alegando que o Brasil não faz o suficiente para proteger a Floresta Amazônica.
Em recente visita a Brasília, um enviado da UE afirmou que “por enquanto não há condições” para submeter o acordo à aprovação. “Ninguém está dizendo o que o país tem de fazer. Está claro que a proteção da floresta cabe ao Brasil e aos brasileiros”, afirma Wilkinson. O alinhamento de Biden com o Green Deal europeu, cujo objetivo é uma economia com nível zero de emissões líquidas em 2050, sugere que os americanos possam usar o mesmo tipo de estratégia.
Virgílio Viana, presidente da ONG Fundação Amazonas Sustentável, descreve como “um pouco esquizofrênica” a postura do governo brasileiro. Por um lado, a pressão internacional fez com que o tema deixasse de ser encarado só como questão do Ministério do Meio Ambiente e passasse para a Vice-Presidência, além de virar assunto para o Ministério da Economia, por causa dos investidores internacionais. De outro, isso alimenta uma narrativa nacionalista: “A Amazônia é nossa, fazemos o que bem entendemos com ela”.
É claro que existem interesses econômicos e protecionistas envolvidos nas demandas internacionais. Os Estados Unidos competem com o Brasil no agronegócio; a França, também. Justamente por esse motivo, Viana sugere uma realpolitik: “O governo pode ser primário, batendo no peito, ou então mais sofisticado ao lidar com essa pressão. Um exemplo: por que não criamos um mercado bilateral para negociar emissões de carbono?”.
Biden também falou em convocar uma cúpula em 2021 para discutir a mudança climática. Em meados de dezembro, uma reunião virtual organizada pela ONU para celebrar os cinco anos do Acordo de Paris deixou de fora Jair Bolsonaro. Segundo os organizadores, as metas de emissão em 2060 propostas pelo país ficaram aquém do esperado. Foi mais uma situação constrangedora para a diplomacia brasileira em um tema no qual o país ocupa um lugar central nas discussões internacionais.
Outro fator que pode acabar influenciando a postura de Biden em relação ao Brasil é a composição do Senado, diz Silvio Cascione, diretor da Eurasia Group no Brasil. Caso ele não obtenha a maioria no Senado (falta a definição de duas cadeiras do estado da Geórgia), os planos mais ambiciosos do novo presidente serão barrados pelo Partido Republicano. As atenções então tendem a se voltar para fora, e o Brasil, hoje, “é o vilão da história”, afirma Cascione.
Outro tema que potencialmente pode causar estranhamentos entre Biden e Bolsonaro é a compra de equipamentos da chinesa Huawei para a infraestrutura das redes de celulares de quinta geração. Os americanos alegam que a Huawei serve como um braço de espionagem do governo chinês. Bolsonaro vem tentando encontrar maneiras de impedir a participação da empresa no 5G do país, mas as operadoras brasileiras e o próprio vice-presidente Hamilton Mourão resistem.
UM RECOMEÇO
Em relação aos outros aliados tradicionais, especialmente os europeus, o governo Biden terá a missão de resgatar a reputação americana. Reafirmar o compromisso com a cooperação e as instituições internacionais, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), é apenas o primeiro passo de um longo caminho de reconstrução de pontes.
Experiência não faltará ao novo presidente. Biden presidiu a Comissão de Assuntos Externos do Senado e foi vice-presidente durante oito anos. Se os Estados Unidos não podem mais reivindicar a dominância do pós-guerra, como escreveu Jake Sullivan, indicado para o cargo de assessor de segurança nacional, o país deve continuar exercendo liderança.
Um dos testes será a China. A condenação das violações de direitos humanos no país e da repressão aos protestos pró-democracia em Hong Kong terá de ser equilibrada com a colaboração de Pequim no tema da mudança climática. Além disso, Biden vai herdar a guerra comercial iniciada por Trump.
Em uma entrevista ao The New York Times, ele indicou que não há pressa em voltar atrás. Os americanos precisam ter melhores condições para negociar, “e ainda não as temos”, afirmou ele numa conversa com o colunista Thomas Friedman. Para isso, os Estados Unidos precisam se capacitar e desenvolver uma política industrial.
Uma das promessas de Biden é exigir que o governo americano compre apenas produtos “made in the USA”. Assim como Trump tentou fazer, Biden quer trazer de volta indústrias americanas instaladas em outros países. Resta saber se o próximo presidente conseguirá cumprir seu objetivo — e se usará métodos diferentes do seu antecessor.