Revista Exame

A freada da Uber na bolsa de valores

O tropeço na abertura do capital da startup mais ambiciosa do momento põe em xeque alguns dos mantras da economia digital

IPO da Uber em Nova York: a quinta pior experiência em 24 anos | Andrew Kelly/Reuters

IPO da Uber em Nova York: a quinta pior experiência em 24 anos | Andrew Kelly/Reuters

DC

David Cohen

Publicado em 23 de maio de 2019 às 05h16.

Última atualização em 27 de junho de 2019 às 16h18.

Depois de dez anos de polêmicas, a empresa de transporte via aplicativo Uber parece ter finalmente gerado um extraordinário consenso: é praticamente unânime a opinião de que sua abertura de capital (IPO, na sigla em inglês), no dia 9 de maio, foi um fiasco. Para empresas avaliadas em mais de 10 bilhões de dólares, a abertura da Uber teve o quinto pior retorno nos últimos 24 anos, segundo os dados da plataforma de serviços financeiros Dealogic, com a ação caindo 7,6% no primeiro pregão e outros 7,1% no segundo. “Obviamente nossas ações não foram tão bem quanto esperávamos no pós-IPO”, afirmou o próprio executivo-chefe da Uber, Dara Khosrowshahi, em mensagem por e-mail a todos os funcionários. Seu argumento para animar a turma é que no longo prazo a empresa provará seu valor. “Há muitas versões do nosso futuro que são altamente lucrativas e valiosas, e há algumas, é claro, que o são menos. Em tempos de humor negativo no mercado, as vozes pessimistas ficam mais altas e as otimistas se retraem”, disse.

De fato, nos dias subsequentes à abertura, as ações da Uber tiveram alguma recuperação. Pequena, porém. Seu preço variou até chegar perto de 40 dólares, quase 11% abaixo da oferta inicial — que já era baixa. No ano passado, quando a empresa começou a se preparar para o IPO, os bancos afirmaram que ela podia atingir um valor de 120 bilhões de dólares. Essa cifra acabou balizando as expectativas. O valor de 100 bilhões, aventado no começo de abril, quando foram entregues os papéis para o IPO, ainda era extraordinário, considerando a piora geral no mercado. Mas no final do mês já se falava numa faixa de 80 bilhões a 91 bilhões de dólares. No pior momento, acabou valendo 67 bilhões, pouco mais da metade daquele sonho — um sonho, aliás, que foi gravado no acordo com Khosrowshahi: ele ganhará algo entre 80 milhões e 100 milhões de dólares de bônus caso a empresa atinja e se mantenha por alguns meses no valor de 120 bilhões de dólares nos próximos cinco anos.

Não é impossível, longe disso. O gigante de comércio eletrônico chinês Alibaba abriu o capital nos Estados Unidos em 2014, vendendo ações a um preço que lhe projetava um valor total de 231 bilhões de dólares. Hoje, está avaliado em 420 bilhões. O problema é que, para protagonizar uma façanha como a do Alibaba, é necessário que algumas das melhores versões de futuro da Uber prevaleçam. E isso não está fácil. Porque o mundo mudou, e a Uber talvez seja o melhor exemplo para várias dessas mudanças. A começar pelo significado de um IPO. A unanimidade que considera a abertura do capital da Uber um fiasco não chega a ser burra, mas menospreza dois argumentos importantes. O primeiro é que a empresa levantou 8,1 bilhões de dólares com o movimento. Claro, há números maiores. O citado Alibaba arrecadou 25 bilhões de dólares. Mas chamar 8,1 bilhões de dólares de fiasco requer um desapego ao capital que, convenhamos, é difícil de encontrar até nos monastérios do Tibete.

O segundo ponto contestável na qualificação de que o IPO foi um fracasso é que não houve exatamente um IPO. O capital da Uber já estava aberto havia muito tempo: praticamente todos os fundos de investimento que costumam comprar ações na bolsa em ofertas iniciais já são acionistas da Uber. Para entender quanto o mundo dos IPOs mudou, basta uma rápida comparação com a Amazon. Em 1997, quando foi a mercado, a empresa de Jeff Bezos tinha passado por duas rodadas de investimentos e angariado 100 milhões de dólares. Antes de seu IPO, a Uber passou por 23 rodadas de investimentos e recebeu 25 bilhões de dólares. Considerando a inflação no período, cerca de 60%, é um número 156 vezes maior do  que o da mãe de todos os comércios eletrônicos. Não foi só o dinheiro, o tempo também se expandiu. Até 2005, as startups costumavam abrir o capital três anos depois de criadas. Hoje, a média está perto dos 11 anos.

Por isso alguns analistas afirmam, em tom de apenas meia brincadeira, que o fechado é o novo aberto. Ou seja, que os investimentos de fundos privados se comportam mais e mais como um mercado de capitais. Também basta um exemplo para compreender o fundo de verdade dessa brincadeira. No início de maio, o Softbank, do megaempresário japonês Masayoshi Son, anunciou a criação de um segundo fundo Vision voltado para empresas de tecnologia, com os mesmos 100 bilhões de dólares do primeiro, formado há dois anos. Ora, nos últimos dois anos o valor arrecadado em todos os IPOs de empresas de tecnologia e comunicações foi de 106 bilhões de dólares, segundo a Bloomberg. Se um único fundo de investimentos privados, mesmo sendo o maior deles, investiu mais ou menos a mesma coisa, é sinal de que o mercado aberto não é mais tão crucial para o financiamento das empresas.

Esse processo se deu por dois motivos básicos: excesso de liquidez, com dinheiro jogado na economia pelos governos dos Estados Unidos e de países da Europa para combater os efeitos da crise de 2008; e a busca de empresas de alto crescimento pelos investidores, alimentada pelos juros quase nulos. Foi daí que começou a febre dos unicórnios. Quando inventou o termo, em 2013, a venture capitalist Aileen Lee identificou 39 startups fechadas com suposto valor de 1 bilhão de dólares. Pareciam seres mitológicos, de tão raras. Agora há mais de 320 delas no mundo. Fala-se em decacórnios (empresas de 10 bilhões de dólares) e hectocórnios (100 bilhões).

Entrega da Rappi: mesmo gigante, é difícil para a Uber barrar novos concorrentes | Germano Lüders

Nesse sentido, o IPO da Uber foi apenas mais uma rodada de investimentos. E, claro, uma oportunidade para quem investiu logo no começo, quando a ação valia 6 ou 7 dólares, fazer um belo lucro. Nem isso, porém, funciona como costumava ser. Uma startup clássica, em seu início, atrai empregados com pacotes de ações. A garotada (em geral é uma garotada) aceita ganhar pouco em troca de bilhetes de loteria da empresa. Se ela der certo, eles ganham muito, muito dinheiro. Na Uber, porém, esse sistema já havia deixado de ser assim. Há dois ou três anos, o modelo de remuneração tem muito menos ações e bem mais salários e bônus. Como em empresas “adultas”.

A febre das startups levou ao paroxismo dois conceitos dos quais a Amazon é o principal exemplo de sucesso; e a Uber, o maior ponto de interrogação. O primeiro deles é que crescimento vale mais do que lucro. A lógica da Amazon é que, se parar de crescer, abrirá um flanco para concorrentes num vasto mundo que ainda está por ser desbravado. Não à toa, seu lema, inscrito na entrada do edifício-sede em Seattle, é que a internet está em seu primeiro dia. A disposição de crescer, abrindo mão de lucros vultosos, faz toda a diferença. Como disse Jeff Bezos, “a sua margem é a minha oportunidade”. É essa cartilha que seguia Khosrowshahi quando afirmou, no início do processo do IPO, que a “Uber ainda não conquistou nem 1% de seu mercado potencial”. Como pode uma empresa ser líder de mercado com menos de 1% do mercado? Redefinindo seus objetivos. No caso, para todas as viagens, de todas as distâncias, de pessoas ou carga, de qualquer modo.

Só que a Uber decidiu comprar crescimento em um nível exuberante. Em todo o período de prejuízo antes de virar para o azul, a Amazon perdeu 3 bilhões de dólares. Essa quantia a Uber gastou apenas no ano passado. No ano anterior, havia gastado 4 bilhões de dólares. E os planos são de manter o pé no acelerador. A filial brasileira tem mais de 1 500 empregados e 277 vagas em aberto. Abriu um centro de engenharia que deverá receber 250 milhões de reais nos próximos cinco anos. Nesse ritmo de gastança, a recompensa pelo crescimento tem de ser grandiosa. É aí que vem o segundo conceito que virou mantra da economia digital: a disrupção.

Não há dúvida que a Uber rompeu os modelos tradicionais de transporte. E está dobrando a aposta, investindo agora nas bicicletas, nas patinetes, no frete e na entrega de refeições (um programa piloto iniciado há poucos dias no Brasil permite que até pessoas a pé façam as entregas). O problema é que em nenhum desses setores havia uma margem de lucro muito grande.

]O táxi é caro, mas porque a atividade, no mundo inteiro, paga o preço do corporativismo e da regulamentação. Em sua essência, ela é enxuta: cerca de 85% dos custos são com o trabalhador e com a manutenção. As frotas são até mais eficientes do que o conjunto de motoristas de aplicativo que têm de manter seus carros isoladamente: elas têm advogados para recorrer de multas, escala para conseguir seguro mais barato, comunicação centralizada.Não é que não haja uma margem que se transforme em oportunidade, mas ela não é a margem dos taxistas. É a margem do Estado. E o Estado, embora letárgico, é forte. E tem começado a agir em diversas cidades, impondo limites à Uber. Algo semelhante acontece com as entregas e com as bicicletas.

Son, do Softbank: o maior acionista da Uber investe na concorrência | AP Images/Glow Images

De onde virá, então, a recompensa pela compra do crescimento? Há várias versões de futuro, para emprestar a expressão usada por Khosrowshahi: espremer ainda mais o ganho dos motoristas (diminuindo o subsídio às corridas), substituí-los inteiramente por robôs (no futuro), vender anúncios aproveitando os dados colhidos nas viagens ou o tempo ocioso do passageiro, transformar-se numa companhia de venda de trabalho atomizado (uma espécie de multinacional do subemprego ou, para usar um termo da moda, da gig economy). Há um obstáculo forte, porém. O gigantismo da Uber não impõe barreiras de entrada a concorrentes. Como ensina o empreendedor Peter Thiel no livro De Zero a Um, a finalidade da disrupção é construir um monopólio. Mas não há muitos indícios de que, uma vez estabelecida, a Uber não será ameaçada por novos entrantes.

E aí entra um problema extra, uma última característica do capitalismo moderno. A Uber é financiada por investidores que também investem em seus concorrentes. O Softbank, um dos principais apoiadores da Uber (seu maior acionista individual pré-IPO, com mais de 16% de participação), é também um grande investidor da chinesa Didi. E a Didi é dona da 99. Ah, sim, a Uber também tem uma parte da Didi, como parte de um acordo para abandonar a disputa do mercado chinês. Traduzindo: Uber e 99 competem, mas a Uber tem parte da 99, e um dos donos da Uber (o Softbank) é também um dos donos da 99 — e está financiando seu crescimento na América Latina. No ramo das entregas, o Softbank investe na colombiana Rappi, rival da Uber Eats. E a Amazon acaba de anunciar investimento no Deliveroo, embora Jeff Bezos seja também um acionista da Uber.

Não é por acaso que o site Information afirmou que uma das possibilidades para a Uber é pressionar o Softbank a pedir às empresas em que investe que parem de queimar dinheiro em subsídio às viagens — uma solução que abriria as portas a uma série de questionamentos sobre livre concorrência e monopólios.

Desde seu início, a Uber trafegou por caminhos não mapeados. Entender suas escolhas e o que a empresa vai colher delas trará, certamente, lições valiosas para entender a economia do século 21. Só não se sabe se a professora conseguirá usufruir de suas próprias lições.

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