Brian Chesky: fundador do Airbnb enviou carta com os motivos para desligar equipes em massa na pandemia (Stefanie Keenan/Getty Images)
“Eu realmente sinto muito. Por favor, saiba que não é sua culpa. O mundo nunca vai parar de procurar por qualidades e talentos como você. Eu quero agradecê-lo, do fundo do meu coração.” Essa poderia ser a carta de um término de relacionamento amoroso.
O autor dela, na verdade, é Brian Chesky, um dos fundadores da plataforma de reserva de acomodações Airbnb. O texto foi escrito em 2020 para comunicar o corte de 1.900 funcionários da empresa no início da pandemia.
Além de dar detalhes sobre a demissão e admitir a falta de respostas para a crise, Chesky explicou no texto as medidas de assistência a quem estava deixando a empresa. A carta rodou as redes sociais. Muita gente ficou surpresa com a transparência do Airbnb na crise.
Existe um jeito menos traumático de lidar com uma situação naturalmente delicada como uma demissão? Pode ser difícil encontrar uma resposta uníssona — se é que há alguma resposta. Dito isso, uma coisa é certa: o momento do corte vem ganhando relevância nas empresas para além das rodinhas de gestores de recursos humanos.
O poder das redes sociais de detonar a imagem de uma organização está por trás de grande parte dessa preocupação. Com certa frequência, relatos de gente chateada depois de ser cortada viralizam nesses espaços. Alguns deles ficaram emblemáticos.
Em dezembro de 2021, a startup americana de hipotecas Better.com anunciou o corte de 900 pessoas pelo Zoom num recado acompanhado de ofensas — o CEO Vishal Garg acusou os demitidos de “roubarem” os colegas e de trabalharem somente “uma ou duas horas” por dia.
Em maio, Sebastian Siemiatkowski, CEO da fintech sueca Klarna, demitiu 700 empregados usando uma mensagem gravada e distribuída nas redes da empresa. O detalhe: a equipe inteira precisou aguardar 48 horas até a divulgação dos nomes de quem, de fato, estava de saída. O suspense só terminou após o envio de e-mails aos eliminados. O processo todo foi massacrado nas redes sociais pela falta de contato humano.
No Brasil, ficou célebre o caso do médico Victor Hugo Heckert, informado numa mensagem enviada por engano pelo WhatsApp a respeito de sua dispensa numa empresa prestadora de serviços terceirizados da prefeitura de Barão de Cotegipe, no interior do Rio Grande do Sul.
“Vc já avisou o Victor que o último dia vai ser quinta desta semana?”, recebeu o médico pelo aplicativo de mensagens. Depois de o ocorrido circular pelas redes, o médico acabou virando uma celebridade instantânea, a ponto de ser convidado para relatar o caso no programa Encontro, da TV Globo.
Em comum nas histórias está o filme queimado de quem demitiu de forma atabalhoada — um problema com risco de escalar para algo mais sério.
“Processos malconduzidos, principalmente em massa, inevitavelmente vão cair nas redes sociais ou na mídia”, diz Fernanda Medei, fundadora da Medei, plataforma de gestão especializada em desligamentos. “Isso tudo gera um problema de reputação para a empresa na condição de empregadora, mas também para os consumidores dela, que podem não querer se associar a uma marca com práticas como essa.”
A dissonância cognitiva fica mais evidente numa era de empresas ávidas por mostrar ao mercado preocupações para além do retorno aos acionistas e por fazer o bem para a sociedade e o planeta. Como alinhar esse discurso com a necessidade de segurar custos em momentos difíceis?
No fundo, a reputação ESG dos negócios está em jogo. “Uma demissão malconduzida tem um impacto negativo na marca empregadora das companhias. Pensar em maneiras de impactar positivamente os funcionários demitidos está diretamente relacionado a ser socialmente responsável”, diz Diogo Forghieri, diretor na Randstad, consultoria holandesa de recursos humanos.
Live para realocação
Em boa medida, essa é a sina do momento para muitas empresas de tecnologia. Em razão do aumento nos juros feito por bancos centrais mundo afora para combater a inflação, o custo do capital ficou mais alto para startups e unicórnios até então operando no vermelho.
O jeito tem sido enxugar custos apesar de manter planos ambiciosos para o futuro. De 2020 para cá, até o fechamento desta reportagem, 1.089 startups demitiram 164.614 funcionários. O ritmo atual de desligamentos só perde para o da fase mais dura da pandemia, de acordo com o Layoffs.fyi, um contador online de demissões no setor de tecnologia global.
A consciência sobre o aumento da importância da responsabilidade corporativa fez a gestora de seguros e produtos financeiros Wiz criar uma força-tarefa de apoio a funcionários num momento delicado da companhia.
Em 2021, após 47 anos como cliente, a Caixa Econômica Federal encerrou o contrato com a Wiz. De uma hora para outra, a companhia perdeu 80% da receita. O jeito foi demitir cerca de 3.000 funcionários. Antes, a direção criou uma estratégia de contenção de crise.
O primeiro passo foi mapear vagas dentro da empresa capazes de comportar a turma na lista de desligamentos. Essa medida realocou 160 pessoas. A seguir, a direção da Wiz bateu na porta de empresas com vagas abertas nas áreas de atuação de quem estava na lista de demissões.
Por causa do isolamento social, essa ação foi feita numa live transmitida nos canais da Wiz. Quem fracassou na busca por um novo emprego entrou num programa de demissão voluntária na Wiz com benesses adicionais aos de uma demissão-padrão.
A empresa estendeu o plano de saúde por seis meses e pagou uma indenização adicional à multa por demissão sem justa causa. De quebra, estendeu aos funcionários cortados o acesso a uma plataforma online de cursos profissionalizantes até então restrita aos efetivos. “Foi um momento extremamente difícil até mesmo para nós do RH”, diz Carolina Bento, diretora de gente e cultura da Wiz.
Na era do trabalho híbrido, em que funcionários são contratados de forma remota e têm pouca interação presencial com pares, demissões online — e não raro de muita gente na mesma tacada — passaram a ser rotina. A modalidade já ganhou até nome: zoomfire.
“Ainda estamos criando etiquetas e regras para navegar nesse novo contexto”, diz Tatiana Iwai, pesquisadora da escola de negócios Insper em comportamento organizacional e liderança. “Mas é claro que demissões em lote são incompatíveis com uma comunicação transparente, com espaço para o funcionário se sentir ouvido e, na medida do possível, acolhido.”
Como outros aspectos do trabalho híbrido, a hora do adeus também está sendo criada na base da tentativa e erro. Por isso, especialistas recomendam à liderança das empresas humildade para evoluir com os rituais da demissão, mesmo quando o desligado em questão está longe.
A edtech Driven Education, de São Paulo, reviu o fluxo de desligamentos depois de um funcionário ter se sentido “chutado da companhia” após os acessos dele à intranet, a aplicativos de comunicação e a softwares de trabalho terem sido bloqueados assim que ele pediu demissão.
“Eu e nosso CEO entramos em contato com a pessoa e pedimos desculpas”, diz Nairana Leal, diretora de pessoas, que comunicou ao time dela o erro e um novo processo pós-desligamento. “Hoje, os acessos ficam ativos por mais dois dias.”
O jeito de comunicar a demissão de alguém acostumado com o home office merece um cuidado especial, dizem especialistas. “O gestor imediato é quem deve desligar a pessoa, porque ele é quem consegue dar o melhor feedback”, diz Medei. “Mas, para isso, ele precisa ser preparado inclusive psicologicamente.”
Um bom exemplo vem do gigante de papel e celulose Suzano. Em 2020, a empresa criou o Desembarque Humanizado, um programa para treinar gestores para o momento do adeus. De lá para cá, 1.000 funcionários já passaram por aulas de comunicação e empatia num momento de fragilidade de quem está de saída. Foi o primeiro programa estruturado do tipo na companhia fundada em 1924.
“A demissão não precisa ser um tabu e deve ser algo planejado”, diz Claudia Beatriz, diretora de gente e gestão na Suzano. “Afinal, todos vão sair da companhia eventualmente, de forma voluntária ou não.” O cuidado na demissão colaborou para a boa imagem da Suzano — e, de quebra, para a retenção de talentos.
No Glassdoor, plataforma de avaliações sobre o clima nas empresas, a nota da companhia é 4,5, numa escala de 0 a 5. Em boa medida pelo processo de demissão, a Suzano colheu dados relevantes às políticas do RH para melhorar o clima organizacional. O resultado: a saída de profissionais considerados “talentos” caiu 50% em dois anos.
Coaching contra corte
Um cuidado-chave para uma demissão com pouca chance de ser traumática é envolver a alta liderança. Tudo isso para dar tempo de mais gente conseguir mapear os riscos do desligamento. Se o motivo é o desempenho de um funcionário, a antecedência deve ser a máxima possível.
É o norte adotado no gigante de tecnologia Intel, com 110.000 funcionários pelo mundo. Por ali, além de a avaliação de desempenho ser realizada a cada três meses, metade do intervalo usual nas empresas, o processo obriga gestores a dar feedbacks constantes aos funcionários.
Quem recebe avaliação ruim tem à disposição o Probation, uma espécie de “aula de recuperação” com duração de um ano. No período, o empregado tem mentorias e sessões de coaching mediadas pelo time de RH. Se for o caso, a Intel paga cursos externos ou permite ao funcionário ir para outra área.
“O baixo desempenho de um funcionário pode ser ocasionado por diversos fatores, como não se encaixar na área, na equipe ou no próprio estilo de gestão do líder”, diz Carolina Prado, líder de comunicação da Intel para a América Latina. Em 2021, a operação brasileira teve apenas uma demissão. “Vamos fundo na busca dos problemas por trás do mau desempenho.”
Aos poucos, o que muitas empresas estão descobrindo é que o gasto de tempo, energia e dinheiro com uma demissão malfeita é maior do que com programas para alinhar a expectativa do funcionário com a da empresa. E, se nada disso funcionar, é melhor sentir menos culpa na hora de dar o adeus.
Seis boas práticas para conduzir processos de desligamento — online ou presencialmente
O que deve ser feito:
Principalmente quando o assunto é performance, o desligamento é o último passo e o profissional já deve ter recebido feedbacks anteriormente, de preferência acompanhados de um plano de desenvolvimento.
Por que é importante:
Os especialistas são unânimes: se a pessoa demitida for pega de surpresa, já é um mau sinal.
O que evitar:
Demitir profissionais que nem sequer receberam um feedback ou que só receberam retornos positivos anteriormente — sinal de que a avaliação de desempenho falhou.
O que deve ser feito:
Para garantir o respeito, após a comunicação geral, o aconselhável é que o gestor de cada funcionário demitido se reúna com ele para uma conversa individual.
Por que é importante:
Por mais que cortes em larga escala aconteçam, demitir várias pessoas de uma vez é algo muito impessoal.
O que evitar:
Reunir todos os funcionários em uma sala de videoconferência e dar a notícia de forma seca, já encaminhando os profissionais para a assinatura da rescisão do contrato. Utilizar meios como WhatsApp, e-mail ou mesmo planilhas com nomes dos desligados também está fora de cogitação.
O que deve ser feito:
No caso de empresas enfrentando crises financeiras, antes mesmo da demissão em si os líderes, preferencialmente o CEO, devem ser claros sobre a situação da companhia.
Por que é importante:
É preciso garantir o alinhamento e evitar que a narrativa escape das mãos da empresa. No dia das demissões, deve-se explicar quais atitudes foram tomadas antes do corte e quais foram os critérios utilizados para a escolha de quem foi demitido ou não.
O que evitar:
Afirmar que não houve critério para o desligamento ou, pior, que ele foi motivado apenas pelo tempo de casa ou por quem tinha o salário mais alto.
O que deve ser feito:
Em situações em que a empresa está fazendo demissões em larga escala devido a cortes de custos, pode parecer incoerente a oferta de extensão de benefícios ou mesmo a ajuda com serviços de recolocação. Mas isso deve ser considerado.
Por que é importante:
Especialistas alertam que é preciso pensar no longo prazo. A aparente economia pode ser muito pequena considerando o prejuízo para a marca empregadora ou em engajamento resultante de uma demissão malfeita, sem nenhuma contrapartida.
O que evitar:
Cortar benefícios, como plano de saúde, assim que a pessoa é demitida. É preciso considerar, por exemplo, se ela está fazendo algum tipo de tratamento ou acompanhamento médico, no mínimo.
O que deve ser feito:
Preparar a liderança dias antes da data dos desligamentos tem como foco principal a comunicação e a narrativa que a empresa vai apresentar para a demissão, mas também o repasse de informações sobre questões burocráticas do processo de desligamento, além do acolhimento de funcionários mais fragilizados.
Por que é importante:
A demissão é difícil para ambas as partes, tanto para quem dá quanto para quem recebe a notícia. Quanto mais preparado o líder estiver, menos risco há de uma demissão que cause ruído.
O que evitar:
Avisar o próprio líder no dia do desligamento ou, pior, dar a notícia por meio de terceiros, que não conviveram com a pessoa no dia a dia.
O que deve ser feito:
Parece óbvio, mas os funcionários que foram demitidos precisam de, no mínimo, um agradecimento pelo tempo dedicado à companhia. Considere deixar os logins ativos por mais tempo para que os colegas também tenham tempo de se despedir.
Por que é importante:
A demissão impacta quem sai, mas também quem fica. Dar tempo de as pessoas se despedirem de quem saiu diminui a possibilidade de criação de rumores, por exemplo. Além de, claro, mostrar respeito às pessoas.
O que evitar:
Cortar os acessos das pessoas assim que ela for desligada ou dizer que, agora, importa apenas quem ficou na equipe.