Revista Exame

A era dos vazamentos traz novas questões éticas

Os desafios éticos da prática que está transformando o cenário político no mundo — e no Brasil

Moro e Dallagnol: um vazamento tão importante pela forma quanto pelo conteúdo | Aílton de Freitas/Agência O Globo

Moro e Dallagnol: um vazamento tão importante pela forma quanto pelo conteúdo | Aílton de Freitas/Agência O Globo

DC

David Cohen

Publicado em 20 de junho de 2019 às 05h46.

Última atualização em 25 de junho de 2019 às 14h13.

Em sua acepção original, “vazar” é o mesmo que “esvaziar”. Deriva do latim vacivus (vazio) e do verbo associado vacare (tornar vago, desocupar). Um dos significados do verbo é deixar algo (especialmente líquidos) sair aos poucos. E é por uma analogia com esse sentido que o termo migrou para o noticiário político, no qual, recentemente, o sujeito se tornou objeto direto. Antes, o que vazava era o recipiente. Hoje em dia o verbo denota também a ação de alguém que faz o recipiente esvaziar. É claro que essa ação, em si, não é nova. Nem a analogia. No século 2 a.C., o dramaturgo romano Públio Terêncio Afro escreveu, na peça O Eunuco, sobre uma personagem que não conseguia manter um segredo: “Eu estou cheio de buracos, eu vazo por todos os poros”. Mas, quando a língua se adapta para denotar uma atividade, tanto ou mais do que uma situação, é porque a prática do vazamento mudou de patamar.

Por isso, o mais recente vazamento de informações a abalar a política nacional — o das supostas mas prováveis conversas entre o então juiz e agora ministro da Justiça, Sergio Moro, e o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Operação Lava-Jato — é importante não apenas pelo conteúdo mas pela forma. O conteúdo aponta para questionamentos sobre a mais importante operação anticorrupção da história do país. A forma, não menos grave, sinaliza o tamanho da crise institucional com que deparamos.

Não é uma questão apenas brasileira. É mundial. O atual fenômeno começou com a primeira grande revelação do site WikiLeaks, fundado pelo australiano Julian Assange (preso neste ano, depois de ser expulso da embaixada do Equador em Londres). Em 2010, o soldado americano Bradley (que viraria Chelsea) Manning passou ao site de Assange centenas de milhares de comunicações militares relativas às operações americanas no Afeganistão, no Iraque e em embaixadas pelo mundo. As informações foram julgadas traição (Manning foi condenada a 35 anos de prisão; e Assange, acusado de cumplicidade, pode ser condenado a cinco), mas o ato também foi considerado heroísmo, por revelar dezenas de milhares de mortes de civis e prática de tortura pelos aliados iraquianos. A esse primeiro grande vazamento seguiram-se outros: o de Edward Snowden, em 2013, sobre os programas de vigilância do governo americano, inclusive sobre os próprios cidadãos, e os documentos de uma firma de advocacia no Panamá, em 2015, dando conta de inúmeros escândalos de corrupção no mundo.

Vazamentos desse tipo costumam ser comparados aos dois grandes abalos da década de 70 nos Estados Unidos: os papéis do Pentágono, que desvendaram ações militares condenáveis durante a Guerra do Vietnã, e o escândalo de Watergate, que derrubou o então presidente Richard Nixon. Mas os episódios desta década são um bicho diferente. Eles podem ser perpetrados por gente de escalões inferiores, ou mesmo de fora das organizações, e são estimulados por uma descrença generalizada em todo e qualquer tipo de autoridade.

Vazamento, não. Inundação

Nem sequer faz sentido chamá-los de vazamentos, de acordo com um artigo da professora de direito Margaret Kwoka, da Universidade de Denver. Pela simples quantidade de informações oferecidas, eles estão mais para dilúvio. Esse dilúvio está em alta por três motivos, segundo Kwoka: as informações hoje circulam entre mais pessoas; a evolução tecnológica deu novas possibilidades não só de acesso às informações como também à sua distribuição; e existem, hoje, ferramentas capazes de garantir anonimato aos denunciantes.

Com o dilúvio, vêm novos dilemas. O primeiro deles, sobre o próprio ato de vazar. Em artigo no ano passado na revista Foreign Affairs, o cientista político americano Michael Walzer, professor no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton, distingue entre o vazador (que revela ao público informações embaraçosas para uma organização) e o denunciador (que recorre aos próprios superiores ou ao público). O vazamento, segundo ele, seria uma espécie de acelerador de reações, um atalho para os caminhos burocráticos, algo como desrespeitar regras de trânsito para levar alguém a um hospital.

Esse dilema, obviamente, não é novo. Ao reportar o julgamento do oficial nazista Adolf Eichman em Jerusalém em 1961, a filósofa Hannah Arendt cunhou o termo “banalidade do mal” para frisar que a obediência a uma burocracia não deve neutralizar a consciência individual. Mas as instituições tampouco deveriam ser banalizadas. Como afirmou o professor de ciência política Peter Feaver, da Universidade Duke, em resposta a Walzer na mesma revista, a denúncia aos superiores pode não levar a nada se a própria cadeia de comando for corrupta, mas “ela é preferível à alternativa, que coloca o indivíduo como a própria lei”. Em outras palavras, o vazador assume o papel de julgar se é certo ou errado o procedimento da instituição que denuncia. Antes de acelerar seu carro, ele deveria tentar chamar uma ambulância.

Se o problema sempre existiu, é potencializado pela quantidade de informações vazadas hoje em dia. Numa montanha de documentos, muitos podem causar mais mal do que bem — como a revelação de operações militares sem relação com os abusos. Isso sem falar de vazamentos questionáveis, como os dados de 37 milhões de usuários do site Ashley Madison, de encontros sexuais, em 2015.

Nessa questão, os vazamentos já evoluíram. Para minimizar a divulgação de dados indesejáveis, Snowden associou-se ao jornalista independente Glenn Greenwald, do site The Intercept (o mesmo que acolheu as supostas comunicações de Moro e Dallagnol). Não é uma precaução à prova de viés, porém, como mostra a reação do professor de direito Matthew Stephenson, da Universidade Harvard, sobre o vazamento Moro-Dallagnol. Num primeiro momento, ele considerou a comunicação uma “indesculpável quebra da ética judicial”. Alguns dias depois, reformulou sua opinião, afirmando que o escândalo parece menos grave do que a interpretação das mensagens divulgada pelo site, cujo viés é de esquerda.

Não quer dizer que o problema não exista, segundo Stephenson. Mas não é do tamanho que a princípio ele julgou ter. Bem mais prudente foi a condução do vazamento dos papéis do Panamá. Não por acaso, ela foi levada a cabo por um consórcio de jornalistas investigativos. Apenas para dar um exemplo, em 2016 já estavam em andamento alguns processos contra dirigentes da Fifa, federação internacional de futebol, e havia documentos sobre o assunto nos arquivos vazados. Mesmo assim, os jornalistas continuaram a rever e contextualizar as informações metodicamente antes de liberar artigos sobre o assunto.

Julian Assange: um pioneiro na inundação de informações anônimas | Euan Cherry/WENN/AGB Photo

Isso está de acordo com as regras básicas do jornalismo. Uma delas recomenda — exige, na verdade — que se chequem as credenciais e as motivações da fonte das informações. O problema é que os vazamentos se tornaram um elemento crucial do jornalismo. E a multiplicação de canais de divulgação impõe pressa à análise das notícias, sob pena de o veículo ficar alheio ao debate. Também ocorre que as organizações em geral, e o governo em particular, adotaram nas últimas décadas mais obstáculos à comunicação. As empresas proíbem os funcionários de dar declarações, e até porta-vozes do governo costumam pedir anonimato, em flagrante contradição com o cargo. Assim, os vazamentos tornam-se cada vez mais prevalentes.

Em linhas gerais, eles indicam, para além do comportamento possivelmente condenável a que se referem, uma falha na cultura organizacional. Um exemplo? Um post no blog da engenheira Susan Fowler que denunciava uma cultura machista e deflagrou uma enorme crise na Uber em 2017. Suas queixas pelos caminhos normais foram ignoradas — um erro comum de organizações.

Os vazamentos são muito mais um sintoma do que um problema em si, afirma o professor Feaver. No caso brasileiro, um sintoma de que o governo não valoriza a transparência, de que as instituições que deveriam verificar as denúncias de má conduta de autoridades não estão agindo com a devida eficiência, e principalmente de que há uma atroz divisão social, que faz com que um grupo enorme de pessoas desconfie dos caminhos institucionais para resolver seus conflitos. Nesse caso, o vazamento não é uma tentativa de corrigir uma falha do sistema. É uma tentativa de burlar o sistema como um todo. E esse é um problema ainda maior do que o conteúdo vazado.

Acompanhe tudo sobre:Deltan DallagnolGoverno BolsonaroSergio Moro

Mais de Revista Exame

Linho, leve e solto: confira itens essenciais para preparar a mala para o verão

Trump de volta: o que o mundo e o Brasil podem esperar do 2º mandato dele?

Ano novo, ciclo novo. Mesmo

Uma meta para 2025