VLT do Rio de Janeiro: os bondes transportam 60.000 pessoas por dia, um quinto da demanda prevista | Rogério Reis/Pulsar Imagens
André Jankavski
Publicado em 28 de março de 2019 às 05h48.
Última atualização em 25 de julho de 2019 às 15h49.
Um imbróglio que dura mais de uma década está próximo do fim. O Centro Administrativo do Distrito Federal (Centrad), conjunto concluído há cinco anos após uma parceria público-privada (PPP) assinada em 2009 entre o governo do Distrito Federal e um consórcio formado pelas empreiteiras Odebrecht e Via Engenharia, deve se tornar em abril, finalmente, a sede da equipe do governador Ibaneis Rocha (MDB). Com 16 prédios, o objetivo do complexo era aglutinar todo o time administrativo do Distrito Federal em um só local, permitindo melhor organização e economia de até 82 milhões de reais por ano com aluguéis.
Ao custo de 1,4 bilhão de reais, as obras do Centrad acabaram citadas nas investigações da Operação Lava-Jato — vale lembrar que a Odebrecht foi a maior protagonista dos escândalos de corrupção. Entre as acusações estava a de desvio de parte dos recursos para caixa dois de campanhas eleitorais. A PPP foi assinada e iniciada pelo ex-governador José Roberto Arruda (PR) e concluída pelo sucessor, Agnelo Queiróz (PT). No fim de 2018, um grupo de trabalho criado para analisar a situação jurídica do Centrad recomendou a nulidade do contrato de concessão. Se isso for confirmado, o governador Rocha afirma que pagará o que é devido às construtoras. Haverá ainda um custo adicional que pode superar os 300 milhões de reais com itens como mobiliário e telefonia. “Esse projeto tinha tudo para dar certo, mas foi criminalizado. Mesmo assim, continuamos apostando em PPPs”, afirma o governador Rocha. EXAME apurou que as conversas entre a Odebrecht e o governo do Distrito Federal estão prosseguindo.
O episódio do Centrad evidencia como não é fácil manter parcerias entre empresas e o setor público. A pedido de EXAME, a consultoria Radar PPP, especializada no tema, fez um levantamento sobre as parcerias no Brasil. O resultado, em todas as esferas do governo, é que uma em cada quatro das 111 PPPs assinadas até hoje no país tiveram algum problema ou foram simplesmente encerradas durante a vigência do contrato. Quando se analisa o universo de projetos em consulta — apenas os que chegaram até a fase de licitação, os quais somam 406 propostas —, 110 deles foram paralisados ou cancelados por falta de viabilidade. “Para as PPPs darem certo e sobreviverem a futuros governos, é necessário que haja um valor real para a sociedade e projetos bem-feitos”, diz Bruno Pereira, sócio da Radar PPP. “E a Lava-Jato escancarou que existia um modo de operar com outros objetivos.”
Em alguns casos, os problemas são encontrados ainda no processo de licitação — e há culpados nos dois lados da parceria. Foi o que ocorreu com a PPP municipal da iluminação pública, em São Paulo, iniciada por Fernando Haddad (PT) e licitada durante a gestão como prefeito de João Doria (PSDB), agora governador do estado. Em abril de 2018, a Justiça suspendeu o contrato de parceria entre a prefeitura paulistana e o consórcio FM Rodrigues, empresa especializada em construção e manutenção de redes de energia elétrica e vencedora da licitação. A alegação foi uma gravação que indicava pagamento de propina da empresa para servidores da prefeitura.
Esse exemplo, contudo, não deve atrapalhar as futuras concessões ou PPPs do governo de São Paulo — pelo menos, é o que espera o secretário da Fazenda e -Planejamento do Estado, Henrique Meirelles. “Temos de fazer PPPs que tenham adesão da sociedade, pois é esta que vai garantir que os governos no futuro mantenham os projetos”, diz Meirelles. Entre as principais metas do governo paulista estão PPPs em hidrovias, como a Tietê-Paraná, além de rodovias e das avenidas marginais dos rios Tietê e Pinheiros, localizadas na capital e cujas parcerias serão feitas junto com a prefeitura.
Para fazer parcerias em mais obras, as prefeituras e os governos precisam dar mais transparência aos projetos — e o mesmo vale para as empresas participantes. Muitas companhias não se pronunciam a não ser na Justiça ou aos governos. A FM Rodrigues, procurada por EXAME por causa dos problemas na PPP de iluminação de São Paulo, disse que se recusava a falar com a imprensa, mesmo participando de obras públicas.
A despeito desses obstáculos, o Brasil é visto como um dos países mais promissores para desenvolver PPPs. O índice Infrascope, criado pela consultoria britânica The Economist Intelligence Unit, traz uma visão geral dos emergentes mais atraentes nesse campo. No ranking geral, o Brasil está atrás apenas de Colômbia, Chile e Peru, as atuais estrelas da América Latina. Fica devendo, porém, em categorias específicas do levantamento, como a de ambiente de negócios, na qual o Brasil perde até para pequenos países, como Timor Leste e Trinidad & Tobago. Em engajamento político, ocupamos a 37a posição entre 40 analisados.
Não ajuda em nada nesse cenário o caso da retomada do Maracanã pelo estado do Rio de Janeiro. Na segunda-feira 19 de março, o governador Wilson Witzel anunciou o cancelamento da concessão patrocinada (contrato que obriga o governo a também fazer contrapartidas) do estádio com o Consórcio Maracanã, liderado pela Odebrecht. A justificativa foi o não pagamento de uma dívida ao governo de 35 milhões de reais e ilegalidades apontadas pela Justiça, que já havia suspendido o contrato em setembro de 2018. “A PPP do Maracanã tinha objetivos que não foram cumpridos e não foram poucas as reuniões para resolver o problema”, diz Lucas Tristão, secretário de Desenvolvimento Econômico e Geração de Emprego e Renda do Rio. “O estado e a sociedade não podem ficar à mercê da empresa, que é ré confessa.”
Do outro lado, o episódio do Maracanã acendeu um sinal amarelo para executivos da empreiteira, que temem que o governo fluminense utilize o mesmo expediente em outros contratos. Segundo fontes próximas à Odebrecht, as intervenções estatais no Rio começaram em 2013: um terreno anexo ao Maracanã, que estava na proposta original da concessão e poderia ser usado para a construção de um empreendimento com lojas e restaurantes, foi retirado do projeto. Por essa alteração, o governo do estado deveria ter depositado 200 milhões de reais relativos aos custos das intervenções já realizadas — e isso não foi feito. O discurso do governo fluminense ao atacar a empresa foi visto como uma possível estratégia para não pagar as dívidas. A Odebrecht não quis dar entrevista.
Logo depois, foi a vez de a prefeitura carioca dar motivos para desconfiança. Devendo 110 milhões de reais ao consórcio que administra o veículo leve sobre trilhos (VLT) da cidade, a prefeitura decidiu rever os termos da PPP. A justificativa foi que precisaria haver uma revisão “diante de graves problemas encontrados no contrato de concessão do VLT”. Um dos participantes da obra que custou 1,2 bilhão de reais, o grupo japonês Mitsui não gostou da revisão imposta pelo parceiro público. A cizânia veio em má hora. A empresa negocia um acordo de 800 milhões de reais para comprar a fatia da Odebrecht na SuperVia, operadora do serviço de trens metropolitanos no Rio de Janeiro. Segundo EXAME apurou, o grupo Mitsui vê o calote da prefeitura no VLT como um alerta para investimentos no Brasil, podendo interferir na disposição de compra da SuperVia. Procurado, o grupo japonês preferiu não comentar.
A judicialização das disputas é um dos fatores que os estrangeiros conhecem como “risco Brasil”. Isso afeta o número de interessados em investir no país e, consequentemente, o valor que estão dispostos a pagar pelos ativos. “O Estado precisa começar a aceitar as regras do jogo e a criar uma relação saudável entre o público e o privado”, diz o advogado Fernando Marcondes, sócio da área de infraestrutura do escritório L.O. Baptista. “Mas as empresas também precisam tomar cuidado com estimativas irrealistas nos projetos.” O próprio VLT do Rio de Janeiro foi criado para uma demanda que a realidade não comprovou: esperava-se transportar por dia 300.000 passageiros, mas a crise econômica fez o movimento alcançar 60.000 apenas.
“Não adianta acelerar os projetos. Eles precisam ser consistentes”, diz Adalberto Vasconcelos, secretário executivo do Programa de Parceria de Investimentos do Governo Federal. “Na nova concessão de aeroportos, colocamos cláusulas que exigem que o investimento só seja feito de acordo com a demanda, para evitar gastos desnecessários.” No leilão de 12 aeroportos realizado em março, o governo obteve 2,4 bilhões de reais, um ágio de 2,2 bilhões em relação ao lance mínimo.
As PPPs costumam ser bem-aceitas por todo o espectro político. Afinal, o modelo de parcerias garante uma injeção de recursos — que o Estado não teria mesmo — sem privatizar propriamente o ativo. No Reino Unido, considerado o berço das PPPs, trabalhistas e conservadores também costumavam chegar a um lugar-comum. Os projetos começaram no início da década de 90 sob o comando do conservador John Major e foram consolidados no mandato do trabalhista Tony Blair, que durou até 2007. Porém, a qualidade do serviço prestado pelas empresas e a capacidade da gestão pública de arcar com os custos no longo prazo têm colocado o modelo em xeque.
Assim como por aqui, muitos contratos no Reino Unido superaram, e muito, o valor inicial acordado. Obras para a atualização do Guy’s Hospital, em Londres, saltaram de 47 milhões para 163 milhões de dólares. Além disso, houve um escândalo envolvendo obras em oito escolas: uma delas pegou fogo e escancarou falhas de projeto, que deixara de lado intervenções fundamentais para proteção contra incêndio. Para completar, em 2012, a London Underground, responsável pelo metrô de Londres, cancelou um contrato ao identificar sobrepreço de 540 milhões de dólares em uma PPP com a Tube Lines. Resultado: pagou 210 milhões de dólares para antecipar o fim do negócio que levaria três décadas para terminar.
É fato que problemas podem ocorrer em qualquer parceria, mas é necessário que os participantes estejam abertos à renegociação. Como a relação entre governo e empresas, numa PPP, pode ultrapassar os 25 anos, em um momento ou outro alguém terá de ceder. É o que ocorre na cidade de Rio das Ostras, onde a concessão do saneamento foi feita pela prefeitura com a companhia BRK Ambiental. Hoje, a empresa está abrindo mão de receber uma fatia do valor que havia sido combinado em contrato. O motivo? Minguou o dinheiro dos royalties de petróleo da cidade. Se, nos anos 2000, o município chegava a levar 400 milhões de reais por ano, em 2017 recebeu menos de 120 milhões.
“Tudo é uma questão de equilíbrio entre os agentes e de sentar à mesa para conversar”, diz Fernando Mangabeira, diretor de concessão na BRK. Assim como em um casamento, muitas vezes, discutir a relação é necessário. Mas há momentos que acabam em divórcio — e litigioso. Para o bem dos muitos projetos que necessitam de investimento, ambos os lados precisam agir com maturidade.