Revista Exame

A ciência contra-ataca

A covid-19 fez cientistas responder numa velocidade jamais vista para encontrar soluções. É um avanço para a ciência, para a saúde — e para a sociedade

 (Andrew Brookes/Getty Images)

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BC

Beatriz Correia

Publicado em 9 de abril de 2020 às 05h30.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 14h42.

A notícia, no dia 16 de março, de que pesquisadores americanos começaram os primeiros testes clínicos de uma vacina contra a covid-19 foi um marco para a ciência mundial. Fazia apenas dois meses e sete dias que o código genético do novo coronavírus (Sars-CoV-2) havia sido sequenciado pela primeira vez na China, ainda no começo de janeiro.

Foi nessa época que os pesquisadores de uma empresa de biotecnologia americana, chamada Moderna, iniciaram os estudos para encontrar uma molécula que pudesse dar origem a uma vacina contra a doença. Em apenas três dias, eles identificaram o composto e, um mês depois, os primeiros lotes experimentais começaram a ser produzidos nos laboratórios da empresa nos arredores de Boston.

O material foi enviado para avaliação e, já no início de março, as agências reguladoras do país deram o sinal verde para que a nova vacina começasse a ser estudada em humanos.

Ainda deve levar meses ou até anos para que uma vacina contra a covid-19 esteja pronta para ser produzida em larga escala, mas a velocidade com que os cientistas desenvolveram potenciais candidatos é sem precedentes e um exemplo de como pesquisadores do mundo todo se engajaram num esforço coletivo para encontrar saídas para a pandemia. “O que estamos vivendo é um grande aprendizado de como temos de nos preparar melhor para enfrentar uma crise como esta”, diz Marjori Dulcine, diretora médica da farmacêutica Pfizer no Brasil, uma das empresas que têm feito esforços para desenvolver uma vacina.

No caso da pesquisa americana, o que permitiu o desenvolvimento em tão pouco tempo foi a técnica usada pela empresa de biotecnologia Moderna. Fundada em 2010 por pesquisadores da Universidade Harvard, a empresa especializou-se num tipo de terapia genética promissora que tem sido testada em vacinas e medicamentos. Diferentemente das vacinas tradicionais, que usam uma cópia atenuada ou inativa do próprio vírus ou de partes dele, a solução da empresa americana requer somente o código genético do vírus e, por isso, obtém resultados rápidos.

Laboratório da empresa de biotecnologia americana Moderna: a empresa iniciou testes em humanos de uma vacina contra a covid-19 em tempo recorde | David L. Ryan/The Boston Globe/Getty Images

Das mais de 50 vacinas contra a covid-19 em desenvolvimento no mundo listadas pela Organização Mundial da Saúde, somente duas iniciaram os testes em humanos: a do laboratório chinês CanSino Biologics e o estudo desenvolvido pela Moderna. Há ainda outras vacinas promissoras e que também se baseiam no mapeamento genético, como a que está sendo desenvolvida pela farmacêutica Johnson & Johnson. A pesquisa usa uma cópia de um adenovírus morto (um vírus fraco que causa resfriados leves) para transmitir a informação ao sistema imunológico sobre como se defender do coronavírus da covid-19 e usa uma tecnologia desenvolvida pela companhia que permite a produção de vacinas em grandes quantidades. “A grande vantagem é que com essa técnica temos a capacidade de escalar a produção da vacina rapidamente”, diz o holandês Gert Scheper, um dos principais pesquisadores envolvidos no estudo. A expectativa é que os testes em humanos comecem em setembro — um tempo relativamente curto. A companhia diz que vai investir mais de 1 bilhão de dólares no ­desenvolvimento de vacinas.

A BASE É A GENÉTICA

O avanço da ciência no campo da genética é uma das vitórias mais importantes da sociedade nas últimas décadas. Se em 2001 o custo para sequenciar o genoma de uma pessoa era de 100.000 dólares, atual­mente ele fica abaixo de 1.000 dólares. Hoje pesquisadores em biologia molecular trabalham constantemente sequenciando o código genético de todo tipo de ser vivo. Nos últimos cinco anos, mais de 20 petabytes (que equivalem a 20.000 terabytes) de dados foram gerados anualmente com o sequenciamento de genomas no mundo, e esse volume continua crescendo.

A tecnologia empregada no sequenciamento também evoluiu, o que permite aos pesquisadores dar respostas rápidas quando ocorre o surto de uma doença. Na época da epidemia da zika, em 2015, levou quase nove meses para que os cientistas do Brasil fizessem­ o primeiro mapeamento ­genético completo do vírus desde que o primeiro caso foi identificado no país. Agora, o trabalho foi feito em menos de um mês e os resultados saíram em pouquíssimo tempo. Pesquisadores brasileiros sequenciaram o genoma do novo coronavírus em 48 horas. O tempo é recorde. Cientistas de outros países levaram, em média, 15 dias. Na epidemia da sars, em 2003, o prazo médio foi de quatro meses. “A tecnologia de sequenciamento melhorou demais nas últimas décadas; e as máquinas, os sequenciadores, também ficaram mais acessíveis”, diz Ana Tereza de Vasconcelos, do Laboratório Nacional de Computação Científica. A pesquisadora chefiou um es­tudo que mapeou, em apenas 48 horas, o genoma de 19 amostras de coronavírus da covid-19 encontrados em pacientes de diferentes lugares do Brasil. O trabalho é importante para identificar os países de origem desses vírus e analisar como estão se espalhando pelo Brasil, se estão sofrendo mutações e quais são elas. O objetivo agora, segundo a pesquisadora brasileira, é realizar o sequenciamento de mais 1.000 amostras. “Quanto mais sequências tivermos, mais subsídios vamos gerar para outros pes­quisadores que estão desenvolvendo testes de diagnóstico, vacinas ou algum fármaco”, diz Vasconcelos.

O trabalho de sequenciamento auxilia, por exemplo, a pesquisa do médico Jorge Kalil, diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor), em São Paulo. Junto com uma equipe de pesquisadores, Kalil lidera um dos principais esforços científicos no Brasil para desenvolver uma vacina contra a covid-19. O trabalho começou em fevereiro. O próximo passo é sintetizar essa proteína e, em seguida, começar os testes em animais. “O isolamento e o sequenciamento genético do vírus são a base das bases das pesquisas. Sem isso, a gente não consegue fazer nada hoje em dia com a tecnologia que usamos”, diz Kalil.

O conhecimento da estrutura do novo coronavírus é fundamental também para a descoberta de medicamentos. É um trabalho que está sendo feito no Brasil por pesquisadores do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), ligado ao Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM). Empregando uma técnica conhecida como “acoplamento molecular” (ou molecular docking), os cientistas usaram computadores e softwares avançados para simular a interação da molécula de medicamentos com uma das proteínas do vírus. Mais de 2.000 moléculas foram avaliadas em poucos dias e o software concluiu que 16 delas tinham mais potencial. Dois tiveram resultados promissores nos testes com células, sendo que um obteve um resultado comparável ao da cloroquina. “Houve ação rápida de todo o sistema mundial do ponto de vista da biologia molecular. Essa foi justamente uma área que recebeu bastante recursos para a pesquisa nos últimos dez anos ou mais”, diz Antonio José Roque da Silva, presidente do CNPEM.

Linha de produção de medicamentos: a indústria farmacêutica busca terapias adaptadas a cada pessoa | Alexandre Battibugli

A RESPOSTA DA INDÚSTRIA

Enquanto os cientistas do Brasil e do mundo correm para encontrar possíveis remédios e vacinas contra a covid-19, a crise provocada pela pandemia ocorre em um momento de transformação da indústria farmacêutica. Em vez de ser apenas meras fornecedoras de medicamentos, as companhias vinham assumindo um papel mais protagonista, atuando na prevenção de doen­ças e também nos próprios tratamentos dos pacientes. “O que estamos vendo hoje, e especialmente com a covid-19, é que não adianta ter a droga se a empresa não tem o protagonismo na gestão de saúde como um todo”, diz Leonardo Giusti, sócio da consultoria KPMG e líder da área de saúde. É uma tendência que deve se acelerar daqui para a frente e que pode impulsionar a pesquisa dos chamados ­remédios biológicos.

Diferentemente dos medicamentos comuns, produzidos a partir de reações químicas, os biológicos são elaborados com moléculas de proteínas. A diferença é enorme. No caso do tratamento de um tumor, por exemplo, um remédio químico busca uma reação que matará a célula cancerígena, nem que, para isso, tenha de destruir tudo o que está em volta — processo-padrão em uma quimioterapia. Já o biológico é pensado de forma a preencher ou substituir algum componente genético que esteja causando a enfermidade, interrompendo o avanço do tumor. Para isso, ele precisa ser elaborado de acordo com o código genético do paciente e do agente causador da doença.

Para criar esse tipo de medicamento, os cientistas precisam alterar a lógica da pesquisa no setor farmacêutico. Em vez de descobrir como eliminar as células malignas da doença, a busca é por compreender a doença em si e os caminhos que levam a ela. “Uma fábrica de medicamento biológico é como uma cozinha. Não é um processo químico. É um processo bastante intelec­tual”, afirma Padraic Ward, líder de mercados internacionais da Roche e um dos mais tarimbados executivos da farmacêutica. “É muito mais um trabalho feito com dados, no computador, onde as moléculas são inventadas, construídas, exatamente para se encaixar num buraco que interrompe o crescimento do tumor.”

O avanço na pesquisa com novos tipos de medicamento ganha importância adicional num momento de crise, como o da pandemia da covid-19, em que toda a indústria precisa fazer um esforço coletivo para encontrar fármacos para o tratamento da doença. No caso da farmacêutica Novartis, a empresa lidera pesquisas clínicas de três tipos de remédio (a hidroxicloroquina, o ruxolitinibe e a canaquinumabe) e fornece os medicamentos para estudos clínicos em pacientes com o vírus. “A solução para essa pandemia vai ter de vir da indústria farmacêutica. E ela tem feito isso realocando o orçamento e os recursos possíveis, independentemente do retorno financeiro”, afirma Renato Carvalho, presidente da Novartis no Brasil.

VIGILÂNCIA E PREVENÇÃO

Olhando para a frente, uma área em que a ciência e a indústria precisarão avançar é no estudo sobre novos agentes causadores de doenças que podem surgir a qualquer instante. Um estudo de pesquisadores da Sociedade Americana de Microbiologia aponta que existem, no mínimo, 320.000 vírus ainda não descobertos no mundo que podem infectar mamíferos. “É urgente a necessidade de criar um sistema internacional de vigilância e de monitoramento de novos vírus, e o processo mais simples para isso é o sequenciamento de genomas”, afirma Fernando Lucas Melo, virologista da Universidade de Brasília.

A identificação de novos vírus pode ser decisiva em momentos como o da atual pandemia do novo coronavírus. Se um vírus novo se espalha e infecta boa parte de uma população local ou até mesmo mundial, a resposta à doen­ça será mais rápida e efetiva se já houver um sequenciamento de genoma, ou de parte dele. A chance de haver alguma vacina ou a produção em andamento também aumenta. Pesquisadores dos Estados Unidos e do México estimam que seriam necessários 6,3 bilhões de dólares para identificar os 320.000 vírus ainda não descobertos que podem infectar o ser humano. O investimento poderia evitar pandemias e minimizar os impactos econômicos. Os líderes do G20 anunciaram em março a injeção de mais de 5 trilhões de dólares na economia global, em políticas fiscais direcionadas, medidas econômicas e esquemas de garantia para amenizar as perdas causadas pela paralisação mundial por causa da covid-19. O valor é quase 800 vezes maior do que a estimativa de gasto para identificar todos os vírus ainda desconhecidos.

A geneticista Lygia da Veiga Pereira: o mapeamento do genoma dos brasileiros deve auxiliar nas pesquisas de doenças | Agência O Globo

No Brasil, a principal frente de sequenciamento genético é o DNA do Brasil, um projeto coordenado pela geneticista Lygia da Veiga Pereira. O objetivo é montar um banco de dados com o mapeamento dos genomas dos brasileiros para prever e antecipar tratamentos. O projeto estava para ser lançado depois do Carnaval, mas a pandemia mudou o foco dos esforços da pasta para o novo coronavírus. O objetivo é estabelecer um banco de dados que corresponda à miscigenação brasileira. A falta de diversidade em genes sequenciados passou a ser tema de artigos e estudos que apontam que aproximadamente 80% dos genomas levados a mapeamento eram de população branca. “Estamos desenvolvendo medicina de precisão apenas para caucasianos. Já vimos que algumas doenças em indivíduos brancos não reagem do mesmo modo em indiví­duos de outras etnias”, explica Pereira. Para a cientista, o sequenciamento genético é uma grande oportunidade para a indústria farmacêutica. “Essa indústria está colocando muito dinheiro nas iniciativas de sequenciamento de genoma. Eles sabem que é de onde virão as novas descobertas. Vamos conseguir entender quais são os genes envolvidos no desenvolvimento das doenças e, conhecendo o gene, é possível desenhar drogas mais eficazes contra as patologias.”

No caso da covid-19, o sequenciamento de genomas influencia em duas frentes: na identificação de variantes genéticas que podem tornar algumas pessoas mais vulneráveis ao vírus do que outras, e no desenvolvimento de uma vacina e/ou tratamento. “Se a gente entender quais são os genes envolvidos, é possível identificar vias metabólicas dessa infecção. Com um entendimento melhor da biologia do processo infeccioso, é mais fácil procurar fármacos que vão agir no combate à doença.” Conhecer os genes desse e de outros vírus, e investir em pesquisas, é a melhor forma de combater as epidemias. A única certeza é que, após a covid-19, outras virão.


ALGORITMOS SÃO ARMA CONTRA A COVID-19

Grupo de cientista da USP utiliza inteligência artificial para determinar os riscos de pacientes com sintomas de coronavírus | Fabiane Stefano

Alexandre Chiavegatto Filho, da USP: algoritmos usados em estudo sobre a febre amarela foram adaptados para o coronavírus | Alex Silva/Estadão Conteúdo

Um grupo de 13 cientistas da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo corre contra o tempo em uma experiência inédita. Liderados pelo economista Alexandre Chiavegatto Filho, eles fazem parte do Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde e estão aplicando algoritmos de inteligência artificial para avaliar o risco em pacientes com covid-19. O objetivo é, por meio da análise de dados de exames de sangue, identificar quais pessoas com sintomas de coronavírus podem estar de fato infectadas e quais contaminadas poderão desenvolver a versão mais grave da doença, exigindo a utilização de respiradores e a internação em UTIs. “Há cinco anos, trabalhamos com os fatores que predizem o desenvolvimento de uma doença”, diz Chiavegatto, também professor da USP. “Nunca imaginamos testar a tecnologia que desenvolvemos em uma pandemia que está matando milhares de pessoas.”

O grupo de Chiavegatto não partiu do zero. Ele está usando agora os mesmos algoritmos aplicados num estudo para avaliar o risco de morte em infectados com o vírus da febre amarela. Em 2019, os pesquisadores receberam do Hospital das Clínicas de São Paulo uma amostra com 26 exames clínicos de pacientes diagnosticados com a doença. E nenhuma informação a mais sobre o que aconteceu no tratamento daqueles doentes. As ferramentas de inteligência artificial analisaram dezenas de dados associados a, por exemplo, linfócitos e proteínas reativas. O resultado foi que naquele grupo o paciente número 17 corria alto risco de morrer em 60 dias. Para surpresa dos pesquisadores, era exatamente o que havia acontecido.

Todos os pesquisadores do laboratório estão focados na força-tarefa do coronavírus. Eles já receberam exames de pacientes confirmados com a doença de grandes hospitais da capital paulista. E agora “treinam” os algoritmos para desvendar os dados que têm à mão. “Pelo que vimos até agora, será possível determinar o risco de um paciente ter covid-19 apenas com os exames básicos do pronto-socorro”, diz Chiavegatto, que espera ter os primeiros resultados do estudo ainda no início de abril. A descoberta permitirá dar prioridade de diagnóstico na atual situação de excassez de testes. Hoje há uma fila de espera de mais de 16.000 exames aguardando resultado no Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo. “Os achados não substituem os testes, mas ajudarão os médicos a tomar decisões clínicas críticas antes mesmo de a confirmação da doença chegar.”

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