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Os grandes desafios do Nordeste

Conheça cinco empresas emergentes cujos negócios estão ajudando a resolver os principais problemas da região

Nordeste (Wikimedia Commons)
DR

Da Redação

Publicado em 16 de outubro de 2014 às 12h23.

São Paulo - Nos últimos anos, o Nordeste se consolidou como símbolo de um ­país em transformação. O número de nordestinos que fazem parte da classe média mais do que dobrou de 2003 para 2013. Nas regiões metropolitanas de Recife e Salvador, a renda média do trabalhador teve um aumento real de 30% no mesmo período.

“Ainda há muito espaço para a classe média crescer”, diz Renato Meirelles, sócio do Data Popular, instituto que faz pesquisas sobre a base da pirâmide. “Mais de 40% da população da região ainda é considerada pobre ou muito pobre.” A consolidação de um forte mercado consumidor é a notícia boa.

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A ruim é que o Nordeste ainda sofre com problemas de uma nação desigual. Há quatro hospitais ou postos de saúde para cada 100 000 habitantes — metade da proporção do Centro-Oeste. Cinco em cada dez pessoas não têm conta em banco — quase o dobro do registrado no Sudeste. Cerca de 10% dos domicílios rurais não têm energia elétrica — proporção cinco vezes maior do que a do Sul.

Os cinco empreendedores que aparecem nesta reportagem, a quarta da série Sou Empreendedor — Meu Sonho Move o Brasil de 2014, ajudam a resolver alguns dos desafios mais urgentes. A recifense TecSaúde, fundada pela engenheira Iliane Alencar, presta serviços de manutenção de aparelhos médicos, o que evita que seus clientes (a maior parte hospitais) parem de atender por falta de equipamentos.

O cearense Alexandre Ribeiro está à frente da Construtora Granito, de Fortaleza, que amplia a rede de esgoto e de água. Também de Fortaleza, o empreendedor Joaquim Caracas, da Impacto Protensão, desenvolve técnicas que aumentam a eficiência das obras.

O pernambucano Márcio Waked, da Bio Fair Trade, de Recife, ajuda mulheres de baixa formação a aumentar sua renda. Já o paulista Vinicius Saraceni, da Geodinâmica, capacita professores com conteúdos sobre o Nordeste. Conheça suas histórias.

Saneamento básico para mais gente

Até dois anos atrás, a dona de ca­sa cearense Francisca Gomes, de 37 anos, fazia parte de um Brasil quase medieval. A rua onde ela mora, no bairro do Jóquei Club, em Fortaleza — segunda cidade mais populosa do Nordeste —, não era conectada à rede de esgoto.

Parte dos dejetos era tratada em fossas, e as ruas eram tomadas pela lama e pelo mau cheiro. “Quando os ônibus passavam, a sujeira se espalhava e chegava até a porta de casa”, diz Francisca.

A vizinhança mudou muito desde que a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) concluiu a expansão da rede de esgoto para o Jóquei Club, em 2012. “Agora dá até para chamar os amigos para bater papo em frente ao portão”, diz ela. Boa parte da população de Fortaleza não tem a mesma sorte.

A cobertura da rede de esgoto na cidade é baixa. De acordo com a Cagece, ela chega a apenas 57% da área urbana — onde moram 1,5 milhão de pessoas, quase dois terços da população. Em todo o Nordeste, 26% dos domicílios ainda estão em ruas onde o esgoto corre a céu aberto. Só no Norte a situação é pior.

O engenheiro cearense Alexandre Ribeiro, de 40 anos, vê nessas estatísticas alarmantes uma oportunidade. Ele é sócio do pai e do tio na Granito, construtora fortalezense que se especializou em construir redes de água e de esgoto.

No ano passado, quando o faturamento chegou a 50 milhões de reais, esse tipo de obra respondeu por 60% da receita — o restante veio da construção de hospitais, terminais rodoviários e faculdades em estados como Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte.

A empresa deverá crescer 20% em 2014. “Nossa região carece de obras básicas de infraestrutura urbana”, diz Ribeiro. “Ainda há muito trabalho a ser feito aqui.”

Pequenas cidades do interior do Ceará, como Orós, Barroquinha e Madalena, já inauguraram obras da Granito. Nesses lugares, é comum que a empresa também instale privadas, pias e tanques nas casas mais humildes. “Muitas famílias nunca tiveram isso porque em sua casa não havia água encanada, muito menos esgoto”, diz Ribeiro.

De acordo com o Instituto Trata Brasil, 25% das internações por doen­ças gastrintestinais infecciosas no Brasil poderiam ser evitadas se toda a população tivesse acesso a serviços de saneamento.

“Obras como as da Granito garantem uma qualidade de vida mínima para os moradores”, diz Luiz Pladevall, presidente da Associação Paulista de Empresas de Consultoria e Serviços em Saneamento e Meio Ambiente.

Alexandre Ribeiro, da Construtora Granito, e Mário Waked, da Bio Fair Trade (Drawlio Joca / Lusco)

Artesanato nordestino tipo exportação

A cada 15 dias, a dona de casa Sulamita Lourenço, de 56 anos, toma um ônibus em Camaragibe, na região metropolitana de Recife, para ir às compras. Uma hora depois, ela desembarca próximo à rua Santa Rita, no centro da capital pernambucana, onde há vários armarinhos que vendem todo tipo de miudeza para confecção, como botões, miçangas, tecidos e fitas.

De lá, Sulamita sai abastecida de matéria-prima para fabricar as bolsas, os bonecos e os enfeites natalinos que aprendeu a fazer na Amacoração, associação de mulheres artesãs da qual faz parte.

Os produtos da Amacoração têm percorrido uma distância muito maior do que a que separa Camaragibe de Recife. Boa parte das peças é vendida em lojas de decoração de países como Holanda, Bélgica e Alemanha.

Sulamita, que até sete anos atrás vendia cestas de café da manhã, viu sua renda mensal multiplicar por 6 desde que começou a fabricar artesanato. “Sinto que meu trabalho tem valor”, diz ela. “Meu maior orgulho é saber que o que produzimos aqui enfeita as casas de gente ao redor do mundo.”

Um dos responsáveis por fazer com que o trabalho de Sulamita chegue a países que ela só conhece de nome é o empreendedor pernambucano Márcio Waked, de 46 anos. Ele é sócio da Bio Fair Trade, empresa de Recife que cresce intermediando a venda de peças produzidas por grupos de artesãos do Nordeste para redes de varejo europeias e brasileiras.

Atualmente, 50% do faturamento da empresa vem da exportação dos itens. No Brasil, os principais clientes são a rede de lojas de decoração e de utensílios para casa Tok&Stok e a Ferreira Costa. A empresa gera receitas com comissões de até 20% sobre o valor das transações. Em 2013, o faturamento foi de 1 milhão de reais, 55% mais do que em 2012.

A Bio Fair Trade nasceu em 2007, quando Waked conheceu a administradora Fabiana Dumont, de 40 anos, que gerenciava a venda de artesanato de uma ONG. “Embora houvesse muita demanda, o grupo não conseguia gerar escala por causa da falta de capital de giro”, diz Waked. “Isso impedia a criação de uma relação de longo prazo com os clientes.”

A Bio Fair Trade deu um ar profissional ao trabalho dos artesãos. A empresa acompanha todo o processo de produção e venda do artesanato. Seus designers dão consultoria para o desenvolvimento dos itens e, em muitos casos, Waked negocia com os compradores o repasse de 50% do valor do pedido antecipadamente. A empresa também cuida do controle de qualidade e do leva e traz das peças.

Atualmente, 300 grupos fornecem para a Bio Fair Trade. Pelo menos 85% deles são formados por mulheres de 25 a 60 anos. Para muitas, o artesanato é o principal complemento da renda. É o caso de Sulamita, a dona de casa de Camaragibe. “Com o dinheiro extra, ajudo meu marido a sustentar a casa e dá para comprar roupas para meus dois netos”, diz ela.

Na região metropolitana de Recife — onde Sulamita vive —, 15,7% das mulheres em idade ativa estão desempregadas, segundo o Dieese. É a segunda maior taxa entre as áreas investigadas pelo órgão, ficando atrás só de outra região metropolitana nordestina — a de Salvador.

“Oferecer uma oportuni­dade de trabalho garante a essas mulheres não apenas melhoria financeira mas também o resgate de sua identidade”, diz Marion Teodósio de Quadros, pesquisadora do Centro de Estudos de Família, Gênero e Sexualidade da Universidade Federal de Pernambuco.

Mais eficiência no canteiro de obras

O estádio Governador Plácido Castelo, o Castelão, em Fortaleza, foi palco de dois jogos do Brasil na Copa do Mundo. O primeiro, contra o México, deu fama ao goleiro Guillermo Ochoa, que defendeu os chutes a gol da seleção brasileira e impediu que o jogo saísse do zero a zero.

O segundo, contra a Colômbia nas quartas de final, foi a última vitória do Brasil na competição. Para o engenheiro cearense Joaquim Caracas, de 58 anos, a Copa foi uma alegria só — apesar da campanha da seleção.

Caracas é fundador da Impacto Protensão, uma das empresas envolvidas na reforma do Castelão — o primeiro dos 12 estádios a ficar pronto para a Copa, quase um ano e meio antes da competição. A Impacto construiu 18 novas rampas que dão acesso às arquibancadas. “Fomos escolhidos porque adaptamos uma técnica utilizada na construção de pontes e viadutos a obras de menor porte”, diz Caracas.

A técnica da Impacto serve para construir estruturas usadas em todo tipo de obra, como lajes, rampas e fundações. Funciona assim: os engenheiros projetam uma espécie de esqueleto gigante — feito com um tipo de plástico super-resistente e cabos de aço —, que serve de base para uma camada de concreto.

Com esse sistema, é possível usar até 20% menos concreto do que numa laje comum. “O tempo da obra e o número de trabalhadores necessários para concluí-la também diminuem”, diz Caracas.

Sistemas inovadores, como o utilizado pela Impacto, permitem ganhos de eficiência na cadeia da construção civil — um setor em que o Nordeste está a mil. De acordo com o Anuário EXAME de Infraestrutura 2013-2014, a região é hoje a segunda com mais investimentos em obras no país.

São 198 bilhões de reais, quase um quarto do total dos recursos empregados em obras já iniciadas ou em fase de projeto e licitação. Numa época de intensa atividade, é a produtividade da mão de obra que preocupa os especialistas do setor.

Um trabalhador nordestino da construção civil produz 27% menos do que a média nacional, de acordo com dados do IBGE analisados pela consultoria Ceplan, de Recife. “O ritmo intenso no canteiro de obras não permite às empresas gastar muito tempo com o treinamento dos funcionários”, diz Marcos Moliterno, consultor especializado em construção civil. “Qualquer tecnologia que aumente a eficiência da força de trabalho é bem-vinda.”

No ano passado, a Impacto faturou 50 milhões de reais — e deverá crescer 15% em 2014. Pelos cálculos de Caracas, mais de 80% da receita vem de obras no Nordeste.

“Estamos empenhados em desenvolver novos métodos construtivos que tornem as obras mais rápidas e eficientes”, diz Caracas. “Temos 14 patentes em fase de aprovação, pois acreditamos que a inovação pode nos diferenciar da concorrência.”

Ajuda para não deixar o atendimento parar

O metroviário Dimas Assis, de 49 anos de idade, é um dos visitantes mais antigos da unidade da Fundação Hemope de Recife. Há 25 anos ele doa sangue a cada seis meses. Sua primeira doação foi para atender a um pedido da empresa onde trabalha, a Companhia de Trens Urbanos, que opera o metrô de Recife.

“Um colega passaria por uma cirurgia, e boa parte dos funcionários se prontificou a doar sangue”, diz Assis. “Desde então, isso se tornou um hábito para mim.”

Nos primeiros anos, Assis doava sangue numa sala em que não havia mais de dez cadeiras. Era comum que o atendimento atrasasse mais de 1 hora e não havia equipamentos para atender muitas pessoas ao mesmo tempo. “As enfermeiras vinham a toda hora ver se as bolsas de sangue já estavam cheias, porque não havia aparelhos para avisar”, diz Assis.

Nos últimos anos, apesar de o número de pacientes da Hemope de Recife ter crescido — o número de atendimentos aumentou 25% de 2006 a 2012 —, o serviço só melhorou. “Não espero mais de 10 minutos para ser atendido”, diz Assis.

Os processos da Hemope têm ficado mais rápidos desde que a fundação contratou a TecSaúde, empresa de Recife que presta serviços de engenharia clínica. Na prática, os profissionais da TecSaúde fazem um diagnóstico para ajudar gestores de hospitais, clínicas e laboratórios a usar melhor seus recursos.

Parte do trabalho consiste em fazer um inventário dos aparelhos já existentes e o mapeamento das necessidades atuais. Depois, a TecSaúde ajuda a comprar novos equipamentos, acompanha a fase de instalação e fornece um software de gestão que integra todos os aparelhos.

“Isso ajuda os clientes a saber a necessidade real de investimento e a evitar desperdícios”, diz a engenheira pernambucana Iliane Alencar, de 37 anos, sócia da empresa.

Joaquim Caracas, da Impacto Protensão, e Iliane Alencar, da TecSaúde (Drawlio Joca / Lusco)

Iliane criou a TecSaúde em 1997, quando se juntou aos sócios Zeev Katz e Sérgio Lomachinsky. Hoje a empresa tem clientes em 12 estados. Em 2013, ela faturou 14 milhões de reais — e deverá crescer 25% neste ano. “Metade de nosso faturamento vem de estados do Nordeste”, diz Iliane.

Ao ajudar os gestores de saúde a aplicar melhor seus recursos, a TecSaúde ajuda a resolver um dos maiores problemas dessa área no Nordeste — a falta de equipamentos. Para cada 1 milhão de nordestinos, há só quatro aparelhos de ressonância magnética — a menor proporção do país. Também faltam mamógrafos, aparelhos de raios X e tomógrafos.

“Ainda há a agravante de a infraestrutura estar concentrada em poucas capitais”, diz Herbert Gonçalves, sócio da consultoria de saúde Primeira Consulta.

No caso da Hemope, o trabalho da TecSaúde ajudou a diminuir de uma semana para dois dias o tempo médio que aparelhos como centrífugas e geladeiras especiais ficam parados. “Antes, quando um aparelho quebrava, não estávamos preparados para substituí-lo imediatamente”, diz Fátima Bandeira, diretora de articulação da Hemope. “Agora isso dificilmente acontece, pois a gestão melhorou.”

Conteúdos didáticos com enfoque regional

Em agosto de ano passado, cerca de 200 alunos do Colégio Estadual Polivalente, no município baiano de Conceição do Almeida, trocaram a sala de aula pela roça. Eles foram conhecer uma das poucas fazendas de cultivo de araruta da região.

A araruta é uma planta originária das áreas tropicais da América do Sul cuja raiz os sertanejos antigos usavam para fabricar uma farinha utilizada em bolos, mingaus e biscoitos. “Plantamos mais de 100 mudas e tivemos uma aula para entender por que a araruta se adaptou bem à nossa terra”, diz Jonas Fonseca, de 16 anos, um dos adolescentes que participaram da atividade.

A visita fez parte de um projeto desenvolvido pela professora de geografia Margarete Nunes, de 40 anos. “Antigamente, a araruta fazia parte da base alimentar dos habitantes do Recôncavo Baiano”, diz ela. “Com o tempo, as pessoas passaram a plantar mandioca, que era negociada a preços melhores, e a araruta foi esquecida.”

O projeto para resgatar a importância da planta surgiu depois que Margarete começou a usar em sala de aula o livro Bahia, Brasil — Espaço, Ambiente e Cultura, criado pela Geodinâmica, que produz material paradidático que serve de complemento ao conteúdo obrigatório.

Em 2013, a Geodinâmica faturou 6,4 milhões de reais — quase um terço mais do que em 2012. Embora a sede fique em São Paulo, 70% do faturamento vem do Nordeste. Seu fundador, o paulista Vinicius Saraceni, de 37 anos, começou a produzir livros paradidáticos em 2009 para atender ao pedido de clientes de sua outra empresa, a Vistadivina, que faz mapas com base em imagens de satélite.

“Atendíamos a muitas escolas cujos professores sentiam falta de materiais que retratassem as particularidades de cada região brasileira”, diz Saraceni. “Descobri aí uma boa oportunidade para expandir os negócios.”

Os livros da Geodinâmica trazem explicações detalhadas sobre a geografia e a formação dos estados onde ficam seus clientes. Um exemplo é o livro sobre a Bahia, usado pela professora Margarete. Na publicação, o tema água é trabalhado com base em um infográfico sobre o caminho do rio São Francisco no estado. Já as lições sobre biodiversidade são ilustradas com imagens da caatinga e do cerrado baiano.

Para que o material seja bem aproveitado, a Geodinâmica promove cursos de capacitação do corpo docente das escolas. A professora Margarete participou de um deles, na cidade de Santo Antônio de Jesus, a 15 quilômetros de Conceição do Almeida, onde fica sua escola.

“Saí de lá renovada”, diz ela. Iniciativas assim valorizam a educação numa região onde a qualificação dos professores é mais baixa do que no restante do Brasil. Segundo dados do Censo Escolar, apenas 64,7% dos professores de nível básico — que dão aulas para turmas dos ciclos infantil, fundamental e médio — do Nordeste têm ensino superior. Só um quinto possui pós-graduação.

Os cursos de capacitação duram 64 horas, divididas em quatro encontros ao longo do ano letivo. Normalmente, quem participa das aulas repassa o conteúdo para os demais professores da região em que atua. Os educadores também contam com um suporte online para tirar dúvidas sobre os livros.

“Iniciativas assim não substituem a graduação, mas ajudam os professores a se sentir mais seguros, o que aumenta seu comprometimento e eleva a qualidade do ensino”, diz Verônica Soares Fernandes, mestre em educação e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, do Rio Grande do Norte. Em todo o Brasil, os livros da Geodinâmica são usados por 500 000 alunos — e 1 000 professores já foram capacitados.

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