Empreendedores adotam o modelo venda um, doe outro
Misturar empreendedorismo com causas sociais pode ser um bom negócio, como prova uma nova geração de startups nos Estados Unidos
Da Redação
Publicado em 18 de abril de 2013 às 10h07.
São Paulo - Todo ano, no mês de abril, a Tom’s Shoes promove o "Dia sem Sapatos". A empresa americana quer que seus clientes passem um dia inteiro justamente sem usar o produto que vende, porque isso é parte fundamental de seu negócio. Para cada par vendido pela Tom’s Shoes, outro é doado para uma pessoa que anda descalça todos os dias por não poder comprar sapatos.
O que parecia uma ideia radical poucos anos atrás — ser uma companhia lucrativa doando essencialmente metade de sua produção — tornou-se um modelo que vem crescendo rapidamente nos Estados Unidos . Existe uma nova maneira de fazer caridade, e ela está diretamente ligada ao empreendedorismo .
Esse novo tipo de negócio ganhou o nome de "Compre um, doe um", ou simplesmente "Um por um". Quem primeiro ganhou destaque com essa estratégia foi a OLPC, entidade que criou um laptop de baixo custo, conhecido como o computador de 100 dólares (embora ele custasse mais que isso).
Hoje existem empresas que fazem de tudo, de roupas de bebê a óculos, adotando esse modelo. Algumas não doam exatamente o que produzem — não faz sentido doar uma gravata, por exemplo. Mas a ideia de unir ação social a empreendedorismo parece ter vindo para ficar.
Que o digam quatro amigos que se conheceram na Universidade Wharton, na Filadélfia. Três anos atrás, Neil Blumenthal, David Gilboa, Jeffrey Raider e Andrew Hunt decidiram se arriscar num negócio que concorre com marcas como Gucci, Prada e Calvin Klein.
Mas eles não eram estilistas — a ideia era produzir óculos bonitos e de boa qualidade por um preço razoável. Assim nasceu a Warby Parker. O preço inicial dos óculos da empresa, com lentes, é 95 dólares — a armação de uma grife famosa custa três ou quatro vezes esse valor.
Uma das explicações para o preço mais em conta é que a Warby Parker vende apenas pela internet. O cliente pode receber até cinco modelos, de graça, para experimentar em casa, ou então provar virtualmente, com uma foto. Cada armação vendida corresponde a uma doada por intermédio de entidades de assistência ao redor do mundo.
"Mais de 1 bilhão de pessoas não têm condições de comprar óculos", diz Andrew Hunt, um dos fundadores da companhia. "Isso significa que uma enorme porção da população não consegue ler ou estudar por não enxergar direito."
O sucesso da empresa foi enorme, em grande parte porque os clientes, como a empresa, não apenas querem fazer o bem mas também espalhar a ideia. O marketing viral em redes sociais garante que a marca da Warby Parker cresça a um custo quase zero.
Esse foi um dos motivos pelos quais a empresa conseguiu 50 milhões de dólares em investimentos de fundos de capital de risco. Entre os investidores para esse tipo de negócio existe, além dos fundos tradicionais que apostam em startups, um novo grupo de capitalistas. São os fundos que fazem “investimento de impacto” — em outras palavras, aplicam dinheiro em empreendimentos que tenham em suas missões algum tipo de aspecto social.
Nem todo tipo de negócio “Um por um” tem as vantagens de ter uma operação online. A Two Degrees Foods, de São Francisco, vende barrinhas de cereais e tem de aparecer no hipercompetitivo varejo dos Estados Unidos. Lauren Walters, o fundador da empresa, acredita numa característica particular ligada a seu produto: as vendas recorrentes.
"Você compra um par de óculos, um par de sapatos por ano", diz ele. "Mas comida você compra praticamente todos os dias." A cada barrinha de cereais vendida, a empresa entrega uma refeição a moradores carentes de países como Mianmar, Haiti, Malaui — e também dos Estados Unidos. Nos primeiros dois anos de existência, a Two Degrees forneceu 750.000 refeições.
A meta é que só neste ano, o terceiro, esse número passe dos 2 milhões. Walters, que está perto do Vale do Silício e conhece bem empresas de tecnologia, diz que não é razoável esperar de sua startup um crescimento fabuloso como o que acontece no mundo digital. Mas ele acredita ser possível conseguir investimentos institucionais para crescer.
Uma das diferenças fundamentais do modelo "Compre um, doe outro" é que a sustentabilidade tem mão dupla. Além de administrar o negócio de forma lucrativa, é preciso garantir que as doações cheguem a quem realmente precisa delas. Por mais bem-intencionadas que sejam, muitas iniciativas humanitárias mais atrapalham do que ajudam.
Um problema conhecido é o sumiço do dinheiro entregue nas mãos de governantes corruptos. Mas existe outra variável importante nessa equação. “Quem despeja dezenas de milhares de camisetas num país pobre pode estar criando um problema sério para quem tenta ganhar a vida vendendo roupas naquele lugar”, afirma William Easterly, professor da Universidade de Nova York e crítico desse tipo de ajuda.
A Figs, empresa criada pela designer Heather Hasson, produz cachecóis, xales e gravatas feitos de materiais de primeira linha, como seda e caxemira. Hasson viajou extensivamente pela África, e criou a campanha Threads for threads (fios por fios): cada gravata vendida pela empresa equivale à doação de um uniforme para crianças em idade escolar no Quênia, na Tanzânia e no Nepal.
Mas a Figs não doa as roupas simplesmente. A ideia é que elas sejam produzidas localmente. "Os uniformes são motivo de orgulho para as crianças, que muitas vezes não vão para a escola por falta de roupas", diz Hasson. "Os adultos das comunidades também saem ganhando, com uma oportunidade de trabalho e fonte de renda com a produção de uniformes."
Outra preocupação desse tipo de empresa é garantir que as doações cheguem de fato a quem precisa. A Warby Parker, por exemplo, faz a distribuição somente por intermédio de ONGs de um certo porte e de reputação estabelecida. Já a pequena Baby Teresa, da Austrália, vende roupas de bebês (a contrapartida doada é comida para bebês órfãos) e recorreu a um sistema bem mais simples.
"Temos uma rede de voluntários espalhados pelo mundo que fazem esse trabalho", afirma Kirsti Dunphey, uma das fundadoras da empresa. "Pedimos que eles documentem suas atividades com fotos e textos".
Tudo vai para o blog da Baby Teresa, o que torna a boa ação bem mais palpável para seus clientes. A própria Dunphey esteve recentemente em Vanuatu, um pequeno arquipélago do Pacífico, e fez uma doação, devidamente relatada no blog.
Muitas das iniciativas com base no modelo "Um por um" não dependem apenas de vendas. Além de vender (e doar) bolas de futebol, a One World Futbol anunciou em janeiro uma parceria com a GM para distribuir 20.000 bolas em Zanzibar, região semiautônoma na costa da Tanzânia. Estima-se que as bolas possam ser usadas por mais de 300.000 crianças da ilha.
A One Million Lights, fundada pela indiana Anna Sidana, fechou parcerias com a Energizer, Intel e eBay para a distribuição de suas lanternas movidas a energia solar — calcula-se que a iluminação com lâmpadas de querosene, usadas por 1,3 bilhão de pessoas ao redor do mundo, cause mais de 1 milhão de mortes por ano, especialmente por causa de doenças respiratórias, além de queimaduras.
O preço também pesa no orçamento de famílias pobres: a empresa calcula que 36 bilhões de dólares sejam gastos por ano com o combustível. A esperança da One Million Lights é, um dia, substituir as lâmpadas de querosene — uma por uma.
São Paulo - Todo ano, no mês de abril, a Tom’s Shoes promove o "Dia sem Sapatos". A empresa americana quer que seus clientes passem um dia inteiro justamente sem usar o produto que vende, porque isso é parte fundamental de seu negócio. Para cada par vendido pela Tom’s Shoes, outro é doado para uma pessoa que anda descalça todos os dias por não poder comprar sapatos.
O que parecia uma ideia radical poucos anos atrás — ser uma companhia lucrativa doando essencialmente metade de sua produção — tornou-se um modelo que vem crescendo rapidamente nos Estados Unidos . Existe uma nova maneira de fazer caridade, e ela está diretamente ligada ao empreendedorismo .
Esse novo tipo de negócio ganhou o nome de "Compre um, doe um", ou simplesmente "Um por um". Quem primeiro ganhou destaque com essa estratégia foi a OLPC, entidade que criou um laptop de baixo custo, conhecido como o computador de 100 dólares (embora ele custasse mais que isso).
Hoje existem empresas que fazem de tudo, de roupas de bebê a óculos, adotando esse modelo. Algumas não doam exatamente o que produzem — não faz sentido doar uma gravata, por exemplo. Mas a ideia de unir ação social a empreendedorismo parece ter vindo para ficar.
Que o digam quatro amigos que se conheceram na Universidade Wharton, na Filadélfia. Três anos atrás, Neil Blumenthal, David Gilboa, Jeffrey Raider e Andrew Hunt decidiram se arriscar num negócio que concorre com marcas como Gucci, Prada e Calvin Klein.
Mas eles não eram estilistas — a ideia era produzir óculos bonitos e de boa qualidade por um preço razoável. Assim nasceu a Warby Parker. O preço inicial dos óculos da empresa, com lentes, é 95 dólares — a armação de uma grife famosa custa três ou quatro vezes esse valor.
Uma das explicações para o preço mais em conta é que a Warby Parker vende apenas pela internet. O cliente pode receber até cinco modelos, de graça, para experimentar em casa, ou então provar virtualmente, com uma foto. Cada armação vendida corresponde a uma doada por intermédio de entidades de assistência ao redor do mundo.
"Mais de 1 bilhão de pessoas não têm condições de comprar óculos", diz Andrew Hunt, um dos fundadores da companhia. "Isso significa que uma enorme porção da população não consegue ler ou estudar por não enxergar direito."
O sucesso da empresa foi enorme, em grande parte porque os clientes, como a empresa, não apenas querem fazer o bem mas também espalhar a ideia. O marketing viral em redes sociais garante que a marca da Warby Parker cresça a um custo quase zero.
Esse foi um dos motivos pelos quais a empresa conseguiu 50 milhões de dólares em investimentos de fundos de capital de risco. Entre os investidores para esse tipo de negócio existe, além dos fundos tradicionais que apostam em startups, um novo grupo de capitalistas. São os fundos que fazem “investimento de impacto” — em outras palavras, aplicam dinheiro em empreendimentos que tenham em suas missões algum tipo de aspecto social.
Nem todo tipo de negócio “Um por um” tem as vantagens de ter uma operação online. A Two Degrees Foods, de São Francisco, vende barrinhas de cereais e tem de aparecer no hipercompetitivo varejo dos Estados Unidos. Lauren Walters, o fundador da empresa, acredita numa característica particular ligada a seu produto: as vendas recorrentes.
"Você compra um par de óculos, um par de sapatos por ano", diz ele. "Mas comida você compra praticamente todos os dias." A cada barrinha de cereais vendida, a empresa entrega uma refeição a moradores carentes de países como Mianmar, Haiti, Malaui — e também dos Estados Unidos. Nos primeiros dois anos de existência, a Two Degrees forneceu 750.000 refeições.
A meta é que só neste ano, o terceiro, esse número passe dos 2 milhões. Walters, que está perto do Vale do Silício e conhece bem empresas de tecnologia, diz que não é razoável esperar de sua startup um crescimento fabuloso como o que acontece no mundo digital. Mas ele acredita ser possível conseguir investimentos institucionais para crescer.
Uma das diferenças fundamentais do modelo "Compre um, doe outro" é que a sustentabilidade tem mão dupla. Além de administrar o negócio de forma lucrativa, é preciso garantir que as doações cheguem a quem realmente precisa delas. Por mais bem-intencionadas que sejam, muitas iniciativas humanitárias mais atrapalham do que ajudam.
Um problema conhecido é o sumiço do dinheiro entregue nas mãos de governantes corruptos. Mas existe outra variável importante nessa equação. “Quem despeja dezenas de milhares de camisetas num país pobre pode estar criando um problema sério para quem tenta ganhar a vida vendendo roupas naquele lugar”, afirma William Easterly, professor da Universidade de Nova York e crítico desse tipo de ajuda.
A Figs, empresa criada pela designer Heather Hasson, produz cachecóis, xales e gravatas feitos de materiais de primeira linha, como seda e caxemira. Hasson viajou extensivamente pela África, e criou a campanha Threads for threads (fios por fios): cada gravata vendida pela empresa equivale à doação de um uniforme para crianças em idade escolar no Quênia, na Tanzânia e no Nepal.
Mas a Figs não doa as roupas simplesmente. A ideia é que elas sejam produzidas localmente. "Os uniformes são motivo de orgulho para as crianças, que muitas vezes não vão para a escola por falta de roupas", diz Hasson. "Os adultos das comunidades também saem ganhando, com uma oportunidade de trabalho e fonte de renda com a produção de uniformes."
Outra preocupação desse tipo de empresa é garantir que as doações cheguem de fato a quem precisa. A Warby Parker, por exemplo, faz a distribuição somente por intermédio de ONGs de um certo porte e de reputação estabelecida. Já a pequena Baby Teresa, da Austrália, vende roupas de bebês (a contrapartida doada é comida para bebês órfãos) e recorreu a um sistema bem mais simples.
"Temos uma rede de voluntários espalhados pelo mundo que fazem esse trabalho", afirma Kirsti Dunphey, uma das fundadoras da empresa. "Pedimos que eles documentem suas atividades com fotos e textos".
Tudo vai para o blog da Baby Teresa, o que torna a boa ação bem mais palpável para seus clientes. A própria Dunphey esteve recentemente em Vanuatu, um pequeno arquipélago do Pacífico, e fez uma doação, devidamente relatada no blog.
Muitas das iniciativas com base no modelo "Um por um" não dependem apenas de vendas. Além de vender (e doar) bolas de futebol, a One World Futbol anunciou em janeiro uma parceria com a GM para distribuir 20.000 bolas em Zanzibar, região semiautônoma na costa da Tanzânia. Estima-se que as bolas possam ser usadas por mais de 300.000 crianças da ilha.
A One Million Lights, fundada pela indiana Anna Sidana, fechou parcerias com a Energizer, Intel e eBay para a distribuição de suas lanternas movidas a energia solar — calcula-se que a iluminação com lâmpadas de querosene, usadas por 1,3 bilhão de pessoas ao redor do mundo, cause mais de 1 milhão de mortes por ano, especialmente por causa de doenças respiratórias, além de queimaduras.
O preço também pesa no orçamento de famílias pobres: a empresa calcula que 36 bilhões de dólares sejam gastos por ano com o combustível. A esperança da One Million Lights é, um dia, substituir as lâmpadas de querosene — uma por uma.