Co-fundador do 1º unicórnio do Brasil batalhou família, prejuízo e doenças
Paulo Veras, da 99, relata uma trajetória empreendedora cheia de obstáculos até ver seu aplicativo ser vendido à chinesa Didi Chuxing
Mariana Fonseca
Publicado em 24 de maio de 2018 às 06h00.
Última atualização em 24 de maio de 2018 às 09h18.
São Paulo - Paulo Veras foi um dos empreendedores responsáveis pela melhor notícia para as startups brasileiras no ano passado - mas divulgada apenas no começo deste ano. O aplicativo de mobilidade urbana 99 se transformou no primeiro unicórnio brasileiro (negócio inovador avaliado em um bilhão de dólares) ao ser vendido para o grupo chinês Didi Chuxing em uma transação de 960 milhões de dólares, ou 3,5 bilhões de reais.
A 99 foi a sexta startup de Veras, que hoje se dedica ao investimento, seja como anjo ou pelo fundo de investimento Canary.
Mais de 20 anos atrás, porém, a decisão de se tornar empreendedor não foi fácil. A incredulidade da família, as decepções com os primeiros negócios e problemas de saúde foram alguns dos obstáculos que o co-fundador da 99 teve de enfrentar.
“Eu acho legal fazer um plano de negócios mas, no dia que você tem seu Day1 e começa a empreender de verdade, o business plan sai pela janela”, conta Veras no evento Endeavor Day1 2018, com palestras sobre dias decisivos na vida de empreendedores. O co-fundador da 99 relembrou sua trajetória e deu dicas para quem também quer ter sucesso com um negócio próprio.
Começo empreendedor
Veras começou se interessar por tecnologia ainda na escola, na década de 80, conversando com amigos que também tinham computadores em casa e programando na linguagem BASIC. Ele aprofundou seu conhecimento em computação ao cursar Engenharia Mecatrônica na Universidade de São Paulo (USP).
Um dos primeiros trabalhos do estudante foi criar um software de gestão para clínicas médicas - e também o primeiro arrependimento. “Se eu tivesse me perguntando ‘quantas outras clínicas também poderiam usar esse software?’, a resposta seria ‘milhares’. Eu vi, muito tempo depois, que perdi uma grande oportunidade. Poderia ter feito uma das primeiras empresas de software de gestão no país.”
O empreendedor e seus amigos se juntaram para montar diversos projetos, desde um sistema de educação online até um site com programação de cinemas e lista de restaurantes, chamado GuiaSP. Novos projetos começaram a cair no colo dos empreendedores.
Porém, Veras trabalhava na multinacional Asea Brown Boveri (ABB) e a jornada dupla pesava. Foi um desafio convencer seus pais de que iria abandonar o emprego seguro de automação de indústrias para abrir um negócio próprio, com amigos, na área de tecnologia.
Ele se reuniu com os pais e contou que estava perdendo grandes oportunidades - e que, por isso, pediria demissão. A mãe criticou sua falta de experiência, aos 23 anos de idade, e ressaltou que a multinacional lhe daria uma carreira. Seu pai achou que era tudo uma brincadeira e, ao descobrir que era verdade, repetiu os argumentos da esposa.
“Esse foi meu primeiro Day1. Foi o dia em que eu decidi queimar pontes e vi que queria mesmo empreender. Ainda não tinha nenhuma experiência de negócios, trabalhava como engenheiro, mas tinha certeza de que era minha paixão e toquei o barco.”
Lições de negócio
O ano era 1996 e a internet começava a se popularizar no Brasil. Veras tocava uma empresa de webdesign chamada Tesla (sim, o mesmo nome do empreendimento de carros elétricos de Elon Musk), que já havia criado antes o GuiaSP.
O negócio atraiu investidores como os bancos Credit Suisse e JPMorgan Chase (com este último, fechou um aporte). Ao ser avaliado, descobriu a diferença entre o lucro presumido e o lucro real.
“A gente nunca tinha feito essa conta na nossa vida. Os investidores falaram que teriam de refazer nossa contabilidade dos últimos dois anos para apurar o lucro real. Tivemos uma surpresa não tão divertida: desde o primeiro dia em que montamos a Tesla, ela tinha dado prejuízo e pagamos muito mais imposto do que precisávamos.”
Veras percebeu uma falta de formação em negócios e foi fazer um MBA na escola francesa INSEAD. Na volta, viu que a maioria das empresas que inspiravam a Tesla tinham ido de gigantes a pó.
“Eu achei que a gente tinha de repensar e propus que liderássemos um planejamento estratégico. Apresentei minhas preocupações e tentei convencer todo mundo a mudar o modelo. Não conquistei ninguém e resolvi sair.”
Após liderar por quase cinco anos a Endeavor no Brasil, o empreendedor investiu em diversos negócios. Em maio de 2010, criou seu primeiro negócio que escalou ao nível do Vale do Silício: o site de compras coletivas Imperdível.
“Seis meses depois, tínhamos cem funcionários, faturávamos milhões por mês e achamos que tínhamos o melhor negócio do mundo das mãos. Três meses depois, eu estava completamente desiludido e falei que o modelo de compra coletiva não parava em pé, porque não havia recorrência.”
Buscando um novo negócio, o empreendedor conheceu Ariel Lambrecht e Renato Freitas. Investidores achavam que o negócio deles, chamado Ebah, não tinha muito futuro - mas os empreendedores eram bons. Veras repassou aos dois a análise e começou a discutir como melhorar a startup de compartilhamento de materiais acadêmicos.
Altos e baixos na 99
As conversas levariam a outro negócio, chamado 99. “O problema era muito claro. Na nossa conta, os táxis movimentavam 20 bilhões de reais por ano no Brasil, mas eram um mercado cheio de ineficiências. Entramos de cabeça e fomos tocar a 99”. Os três tocaram o negócio de 2012 até o fim de 2017, quando a venda para a Didi Chuxing foi acordada.
Enquanto a empresa batia um milhão de corridas por mês e se expandia pelo país, Veras equilibrava momentos bons e ruins. Em 2014, colocou seu apartamento em garantia para fazer a 99 mudar de sede, quando o negócio ainda não tinha garantias de faturamento. Em 2015, a 99 conquistou aportes série A e B necessários para competir contra players como o Uber.
No mesmo ano, Veras recebeu um diagnóstico de leucemia. “Estava lá, tocando a 99 naquele ritmo maluco de crescimento. Passei praticamente o segundo semestre todo no hospital. Estava fazendo o tratamento, mas meus sócios me visitavam duas vezes por semana e eu fazia reuniões por Skype”, conta. “Para encarar uma doença grave, a mentalidade empreendedora me ajudou muito. Eu enxergava o lado positivo, via que tinha saída e era pró-ativo”.
Em 2016, contraiu pneumonia - e conseguiu superá-la em alguns meses - e enfrentou um momento difícil para a startup, com concorrência apertada e investimento secando. Já 2017 foi um ano fantástico para a 99, na visão do empreendedor, com a reformulação do posicionamento da marca e a inclusão da categoria para motoristas populares. O investimento pela Didi Chuxing fez o último ano fechar com chave de ouro.
“A perseverança é fundamental. A gente tinha muitos motivos para duvidar e desistir ao longo da jornada. Mas tínhamos valores muito fortes.”