Tudo de segunda mão
Naiara Bertão Os brasileiros nunca compraram como na última década. As vendas de uma série de produtos — de geladeiras e celulares a imóveis e até iates — bateram recorde. Uma combinação de crescimento econômico, aumento da renda e farto acesso a crédito turbinou o consumo nacional, especialmente de 2010 a 2012, quando as vendas […]
Da Redação
Publicado em 27 de outubro de 2016 às 15h55.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h56.
Naiara Bertão
Os brasileiros nunca compraram como na última década. As vendas de uma série de produtos — de geladeiras e celulares a imóveis e até iates — bateram recorde. Uma combinação de crescimento econômico, aumento da renda e farto acesso a crédito turbinou o consumo nacional, especialmente de 2010 a 2012, quando as vendas no varejo cresceram quase 30%, a maior expansão de que se tem notícia. No meio do oba-oba, muita gente acabou comprando o que não devia: carros de luxo cuja manutenção é caríssima, bolsas que custam dezenas de milhares de reais, televisores que ocupam uma parede. Aí veio a crise. Quando começa a faltar dinheiro, a saída é se livrar dos excessos — e, claro, tentar economizar na hora de comprar qualquer coisa de novo. Foi a combinação para criar o mercado mais quente da crise — o da “segunda mão”.
Os produtos vendidos pelo maior site especializado em produtos usados no país, o OLX, somaram 63 bilhões de reais no primeiro semestre do ano, um crescimento de 120% em relação ao mesmo período de 2015. As vendas que mais cresceram foram as de eletroeletrônicos: o volume triplicou e chegou a 1,3 bilhão de reais. Mas a lista inclui jogos de videogame, DVDs, artigos para casa e, claro, esteiras e outros equipamentos de ginástica (que geralmente são comprados no início da dieta e encostados dois meses depois). Há exemplos em outros setores. Nas concessionárias de veículos, as vendas de carros usados cresceram 2% desde o início de 2015, enquanto o mercado de novos encolheu, em média, 25%. “Os usados mais vendidos são veículos com até três anos de uso. Custam até 35% menos do que um zero-quilômetro”, diz Ilídio dos Santos, presidente da Fenauto, federação que reúne os revendedores de veículos usados. A rede de concessionárias Caoa — que, como seus concorrentes, fechou lojas nos últimos anos em razão da queda nas vendas de carros — abriu 12 revendedoras especializadas apenas em automóveis usados neste ano e pretende inaugurar mais oito até dezembro.
Sites criados de 2012 a 2014 para vender certos artigos de segunda mão estão recebendo investimentos e crescendo. É o caso do Enjoei, especializado em roupas e artigos de decoração, que recebeu 47 milhões de reais de fundos como Monashees e Bessemer, cresceu seis vezes desde 2014 e faturou 200 milhões de reais nos últimos 12 meses. O Peguei Bode, que surgiu como um blog em 2011 e se tornou um site no ano seguinte, vende somente roupas, sapatos e bolsas de grifes internacionais, como Gucci, Prada e Hermès. No site, há sapatos de 7 000 reais e bolsas de 200 000 reais — tudo usado. “Só aceitamos peças de pessoas indicadas por amigos para garantir que os produtos sejam originais mesmo”, diz a fundadora, Daniela Carvalho. O site também faz bazares de vez em quando, como o da foto acima, em que só bolsas de segunda mão foram vendidas (a mais barata custava 600 reais, a mais cara, 35 000 ). Também surgiram sites especializados em vender celulares usados, como o Trocafone e o Sou Barato (controlado pela empresa de comércio eletrônico B2W). As vendas de aparelhos usados em algumas lojas dobraram em 2015, e estima-se que crescerão na mesma proporção neste ano, ultrapassando 1 milhão de telefones. “Só não vendemos mais porque não conseguimos coletar na proporção da demanda”, diz José Fróes, presidente no Brasil da empresa americana Brightstar, especializada em coletar, consertar e revender os celulares usados aos sites, que vendem aos consumidores. A Brightstar está presente em 50 países, onde presta serviços para a indústria de celular. No Brasil, atua apenas na revenda de usados.
Consertar e não comprar
O aumento do consumo de produtos usados também está dando um alívio a setores mergulhados na crise. É o caso do segmento de autopeças, que sofre devido à brutal queda na produção de carros novos no país. A demanda por consertos de carros nas oficinas mecânicas aumentou 15% no último ano — em vez de comprar um automóvel novo, muitos consumidores têm preferido consertar o que já têm e economizar. Assim, as fabricantes de autopeças estão vendendo mais para as mecânicas. Na alemã Bosch, enquanto as vendas para montadoras caíram 15% no último ano, as entregas para oficinas aumentaram 8%. “Tivemos de nos reinventar para atender esse mercado”, afirma Amaury Oliveira, diretor no Brasil da fabricante americana de autopeças Delphi. A empresa, que produz bombas de combustíveis, mobilizou funcionários para visitar clientes, entender a nova demanda e ajustar a produção. Hoje, 18% do faturamento da Delphi na América do Sul vem do mercado de reposição — a fatia não chegava a 8% em 2013. Em agosto, o fundo de private equity Advent investiu numa empresa de autopeças voltada para o segmento de reposição, a Fortbras, que faturou 500 milhões de reais nos últimos 12 meses. A aposta é que a demanda por consertos vai aumentar quando mais carros comprados nos anos de euforia ficarem sem a garantia de fábrica e passarem a ser levados para a revisão nas oficinas.
A recessão acabou dando um impulso a esse mercado, mas analistas acreditam que a tendência é de crescimento no longo prazo — mesmo quando a economia voltar a crescer. “A reutilização de produtos é a grande tendência do varejo, aqui e no exterior”, diz Ana Paula Tozzi, presidente da consultoria de varejo GS&AGR. O principal motivo, segundo os analistas, são as incansáveis campanhas de consumo consciente. Mais consumidores estão se habituando a vender o que não usam e a comprar produtos de segunda mão — o que diminui a quantidade de mercadorias novas que precisam ser fabricadas. A tecnologia também ajuda. “O maior acesso à internet e o surgimento de sites especializados facilitam a compra e a venda”, afirma Marcos Leite, vice-presidente comercial do OLX. Nos Estados Unidos, até aviões são vendidos em sites como o eBay, que faz leilões de produtos usados. No Brasil, uma pesquisa feita a pedido do OLX pelo instituto de pesquisas Ibope estima que, se os brasileiros vendessem tudo o que não usam, incluindo imóveis (como uma casa na praia que fica fechada quase o ano todo), poderiam criar um mercado de alguns trilhões de reais — e ainda ajudar o meio ambiente. O mercado de usados tem a cara da crise, mas pode ter chegado para ficar.