Exame Logo

Nós, os imperialistas

Bolivianos e argentinos reclamam. Mas o fato é que o crescimento das empresas brasileiras pela América Latina é parte inevitável do jogo da globalização

EXAME.com (EXAME.com)
DR

Da Redação

Publicado em 10 de outubro de 2010 às 03h41.

A explosão de uma bomba, no último dia 13 de maio, diante da sede da Petrobras em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, não deixou feridos. O atentado, reivindicado pela obscura Frente Nacional Anticorrupção, poderia ser visto, portanto, como apenas mais uma entre tantas manifestações desvairadas dos grupelhos terroristas que infestam a América Latina. Mas não é possível desprezá-lo. A explosão é o ponto culminante de uma onda de manifestações em defesa do aumento dos royalties cobrados na Bolívia pela exploração local de gás e petróleo. Nas passeatas a favor da lei, os bolivianos, aos gritos, acusavam a Petrobras -- hoje a maior empresa instalada em solo boliviano, onde explora gás, produz lubrificantes e é dona de 25% dos 400 postos de gasolina -- de ser uma "petrolífera imperialista". Não é de hoje que os rebeldes do continente lançam mão da violência contra estrangeiros ou que fazem ruído contra o que chamam de imperialismo. Agora, porém, o alvo não foi uma companhia americana nem européia. Foi a maior empresa do Brasil. Desta vez, os "imperialistas" somos nós.

A bomba na Bolívia é apenas um símbolo extremo de como a expansão dos negócios brasileiros pela América Latina vem ganhando cores ideológicas mais fortes. O presidente da Argentina, Néstor Kirchner, passou boa parte dos últimos dois meses reclamando da política do governo Lula para a região -- e, por tabela, da "invasão dos produtos brasileiros" e da "desnacionalização" das empresas argentinas. Mas a investida brasileira pela América Latina é bem anterior -- e pouco tem a ver -- à diplomacia peculiar do governo Lula. As empresas, como de costume, estão bem à frente dos governantes. O continente latino-americano tornou-se uma região estra tégica de expansão dos negócios. Foi pelos vizinhos que as companhias brasileiras começaram seu movimento de internacionalização. "Ainda bem que elas acordaram", afirma Leticia Costa, presidente da consultoria Booz Allen Hamilton. "O jogo da globalização é esse mesmo."

Veja também

O Brasil Latino-Americano
Muitas empresas brasileiras são líderes em diversos mercados em vários
países do continente. Eis alguns exemplos
61% da produção de zinco no Peru é feita pela Votorantim Metais
60% do transporte aéreo de passageiros na Colômbia é da Avianca,
empresa controlada pela brasileira Sinergy, de German Efromovich
50% da produção de jeans do Chile é da Santista Têxtil
30% do mercado de carrocerias de ônibus na Colômbia é da Marcopolo
25% da distribuição de combustíveis na Bolívia é feita pela Petrobras
23% do mercado de cerveja na Guatemala é abastecido pela Ambev
15% do transporte total de cargas entre Brasil e Argentina é feito
pela América Latina Logística (ALL)
10% das vendas diretas de cosméticos na Argentina são fechadas
por consultoras da Natura
Fonte: empresas

A lista de empresas brasileiras que descobriram a América Latina não se limita à Petrobras. Em abril, o grupo Camargo Corrêa assinou um acordo para a compra da Loma Negra, a maior empresa de cimento da Argentina. A Natura -- que já mantém filiais na Argentina, no Chile, na Bolívia e no Peru -- inaugura sua operação no México no segundo semestre deste ano e se prepara para lançar um plano de expansão por nove países da região. O grupo Sinergy, do empresário boliviano naturalizado brasileiro German Efromovich, comprou, em novembro de 2004, o controle da Avianca, a maior companhia aérea da Colômbia, e se tornou sócio de duas novas empresas aéreas que entram em operação neste ano no Equador e no Peru. Jorge Gerdau Johannpeter, presidente do grupo Gerdau, dono de siderúrgicas na Argentina, no Uruguai e no Chile, comemorou recentemente a aquisição de participações em duas usinas da Colômbia: na Diaco, maior produtora de vergalhões do país, e na Sidelpa, de aços especiais.

A internacionalização deixou há mui to de ser preocupação de visionários para entrar na agenda de qualquer empresa com ambição de crescer -- e a América Latina parece o caminho natural. Mas, por um longo tempo, as companhias brasileiras em busca de novos mercados só enxergavam oportunidades nos Estados Unidos e na Europa. Na década de 60, os fabricantes de calçados do Rio Grande do Sul nem cogitaram conversar com os argentinos para dar início a suas exportações. Procuraram diretamente os americanos. Nos anos 70, a Sadia começou para valer a sua internacionalização vendendo frango congelado aos consumidores do Oriente Médio. Nos anos 80, a primeira investida de O Boticário fora do Brasil foi em Portugal. "Agora, a América Latina saiu do limbo", afirma David Travesso Neto, especialista em internacionalização da Fundação Dom Cabral, de Belo Horizonte. "O empresário brasileiro se sente mais confortável em começar a internacionalização pelo próprio continente", diz Betânia Tanure, também professora da Dom Cabral. Uma pesquisa da instituição detectou, dois anos atrás, que mais da metade das grandes empresas já começava sua internacionalização pela América Latina. Desde então, os investimentos de companhias brasileiras na região cresceram de 5,5 bilhões de dólares, em 2002, para 6,8 bilhões, em 2003. Os números do ano passado ainda não foram consolidados, mas estimativas preliminares apontam para um resultado em torno de 12 bilhões de dólares.

Mitos e verdades
Três crenças que costumam atravancar a expansão na América
Latina
1. A cultura é única 2. Os mercados são iguais 3. A gestão é simples
A crença Uma única campanha de marketing pode divulgar um mesmo produto, pois o
idioma é o mesmo nos diversos países
Pesquisas de mercado são desnecessárias porque todos os países têm a mesma
cultura e os hábitos são parecidos com os nossos
Como os mercados são menores e mais simples, não é preciso ter uma estrutura
dedicada aos negócios na região
O problema Há muitas diferenças culturais e lingüísticas. Na Guatemala, a palavra
Brahma tem um significado pejorativo "cachorra no cio"
Os hábitos de consumo variam muito. O Boticário descobriu que as bolivianas
compram mais de ambulantes do que de lojas tradicionais
A falta de comando central pode gerar confusão, como no caso da Natura,
que entregou as vendas a parceiros
A solução É preciso fazer adaptações. Na Guatemala, a Ambev teve de mudar o nome
da marca de Brahma para Brahva
As vendas têm de levar em conta hábitos locais. O Boticário passou a demonstrar
seus produtos em escritórios para divulgar a marca
A orientação precisa vir da matriz. Uma equipe da Natura foi montada em
Buenos Aires para gerenciar as operações latinas

Se os países desenvolvidos representam 65% do comércio internacional, se há nações com ritmo de crescimento muito mais acelerado, como a China, por que a América Latina desperta tanto interesse? Há um conjunto de razões. A primeira -- e mais antiga -- tem raízes puramente geográficas. Os mercados ficam mais perto e é em solo latino-americano que se encontra boa parte das reservas naturais essenciais a muitos negócios. Há cobre, prata e ouro no Peru, estanho e gás na Bolívia e petróleo na Venezuela e na América Central. A Petrobras, por exemplo, controla a segunda maior companhia de petróleo argentina, a Perez Companc, com ramificações por Equador, Peru e Venezuela -- e patrocina o Racing, um dos mais popula res times de futebol de Buenos Aires. A estatal brasileira extrai ainda óleo na Colômbia e no Golfo do México. Recentemente, foram fechados 14 acordos com a Petróleos de Venezue la. "Não temos como crescer muito mais no Brasil", diz Nestor Cuñat Cerveró, diretor da área internacional da Petrobras. Situação similar vive o grupo Votorantim. No ano passado, a Votorantim Metais comprou a Refinaria de Zinco de Cajamarquilla, no Peru. Com o negócio, avaliado em 210 milhões de dólares, a Votorantim Metais consolidou a posição entre os cinco maiores produtores mundiais do metal.

Não são apenas as companhias para as quais o Brasil já ficou pequeno que se expandem pelo continente. Uma geração de empresas criadas há menos de uma década vê na região a sua razão de existir. Algumas até têm essa meta estampada no nome. É o caso do laboratório de análises clínicas Diagnósticos da América ou da empresa de transporte de cargas América Latina Logística (ALL). "A região é fundamental para o nosso crescimento", diz Bernardo Hees, presidente da ALL. "Só pelos nossos trilhos, que atravessam Brasil, Chile, Argentina e Uruguai, o volume de carga transportada cresceu 300% nos últimos três anos." Algumas empresas brasileiras também começaram a aproveitar as brechas abertas por grupos internacionais. Nos últimos cinco anos, enquanto os países da Ásia despontaram na predileção dos investidores globais, a América Latina passou a ser vista como uma região problemática. Os investimentos estrangeiros diretos no continente caíram de 107 bilhões de dólares, em 1999, para 69 bilhões, em 2004 -- enquanto, nos países asiáticos, cresceram mais de 60% e atingiram 166 bilhões de dólares no ano passado. Isso abriu espaço para as empresas brasileiras pisarem no acelerador. "Depois de décadas convivendo com a instabilidade econômica, o que sabemos fazer bem é lidar com incertezas", diz Paulo Lacerda, vice-pre sidente da Odebrecht. A empresa avançou enquanto as grandes construtoras, como a francesa Bouygues, a inglesa Amec e a alemã Bilfinger Berger, preferiram ficar longe dessa parte do mundo. A Odebrecht já conquistou projetos em dez países da região, como o metrô de Caracas, a ponte rodoferroviária sobre o rio Orinoco, na Venezuela, e o sistema de água da península de Santa Helena, no Equador.

"As empresas brasileiras também ganham experiência e musculatura na América Latina antes de concorrer diretamente com grupos globais em seus próprios territórios", diz Gabriele Zuccarelli, sócio responsável pelos projetos de internacionalização da consultoria Bain & Company. Em 1980, a Gerdau fez sua primeira aquisição fora do Brasil, no Uruguai. Nesses 25 anos, comprou e construiu outras 19 siderúrgicas em seis países da América, incluindo Estados Unidos e Canadá, e se tornou a maior produtora de aços longos do continente. A Weg Motores começou a internacionalização em 2000, adquirindo fábricas na Argentina e no México. Hoje também é dona de unidades em Portugal e na China e está entre os cinco maiores fabricantes de motores do mundo. Mas a Ambev talvez seja o exemplo mais eloqüente de internacionalização bem-sucedida que começou na América Latina. Entre 2000 -- ano da fusão entre Brahma e Antarctica -- e 2004, quando se uniu à belga Interbrew, a Ambev se empenhou em crescer pela vizinhança. Estabeleceu-se em 12 países latinos, por meio de aquisições e associações. Graças a elas, adquiriu maturidade e porte para fazer um negócio de proporções globais.

Outro objetivo é buscar atalhos para mercados mais promissores. "As empresas querem usufruir os benefícios tarifários dos acordos bilaterais dos países da região com os Estados Unidos e a União Européia", diz Zuccarelli, da Bain. O suíço Herbert Schmid, presidente da Santista Têxtil, está entre os executivos que traçaram essa rota. Em 1999, a Santista adquiriu uma fábrica de jeans no Chile, a Machasa. Para fechar negócio, levou em consideração os acordos de livre-comércio que o Chile firmou com vários países, entre eles os Estados Unidos -- os americanos compram 600 milhões de calças jeans por ano, o dobro do total consumido no Brasil. Agora, a Santista espera a assinatura do Acordo de Livre Comércio entre a América Central e os Estados Unidos (Cafta), ainda em gestação, para construir uma fábrica na região -- está em dúvida entre Guatemala, Nicarágua e Honduras. "Poderemos fazer as entregas em até 30 dias, enquanto os asiáticos demoram, em média, 90 dias", diz Schmid. "Isso possibilitará à Santista aumentar as exportações em 30%."

Os maiores investimentos
Grandes negócios realizados por empresas brasileiras na América Latina
nos últimos cinco anos
1. Petrobras
Compra da Perez Companc (Argentina)
Valor: 1,1 bilhão de dólares
2. Camargo Corrêa
Compra da Loma Negra (Argentina)
Valor: 1 bilhão de dólares
3. Ambev
Associação com a Quinsa (Argentina)
Valor: 600 milhões de dólares
4. Votorantim
Compra de refinaria de zinco (Peru)
Valor: 210 milhões de dólares
5. Gerdau
Duplicação da siderúrgica Aza (Chile)
Valor: 120 milhões de dólares
Fonte: empresas

Nas suas incursões, porém, os brasileiros também já descobriram que crescer na região pode ser mais difícil do que parece. "Imaginávamos que Argentina, Chile e Peru eram mercados similares ao Brasil", diz Alessandro Carlucci, presidente da Natura. "Quando percebemos o engano, havíamos perdido o controle e tivemos de intervir." Em 1999, quando ainda era diretor, Carlucci se mudou para Buenos Aires para retomar o controle dos negócios fora do Brasil. Hoje, as operações da América Latina estão nas mãos de um argentino que conhece a cultura da região e pode fazer adaptações aos diferentes mercados sem desvirtuar o padrão da Natura. Desde 2002, as vendas latino-americanas da companhia crescem 60% ao ano. O exemplo da Natura serve de alerta. "A maioria dos brasileiros acha que a América Latina é uma coisa só, que seu idioma oficial é o portunhol e os consumidores vão receber as empresas brasileiras de braços abertos, como irmãos", diz Leticia, da Booz Allen. "Por causa dessas falsas crenças, a maioria comete erros primários."

Com reportagem de Suzana Naiditch

Acompanhe tudo sobre:[]

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se

Mais de Negócios

Mais na Exame