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Na ABInBev, não existe cerveja grátis

Gestão espartana do fundo 3G corta até cerveja que era garantida para antigos funcionários. Tem funcionado, mas e o futuro?

AB INBEV: a empresa é um sucesso de rentabilidade, mas vem perdendo participação de mercado (Yves Herman/Reuters)
GK

Gian Kojikovski

Publicado em 17 de novembro de 2016 às 11h56.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h27.

Desde a década de 1970, os funcionários da cervejaria canadense Labatt estavam entre os profissionais mais invejados de Toronto. O motivo: uma vez aposentados, passavam a receber cerveja grátis pelo resto de suas vidas da antiga empregadora. Uma espécie de mimo pelos serviços prestados ao longo da carreira. Até que, em outubro, a Labatt, segunda maior cervejaria no Canadá e uma das muitas do conglomerado AB InBev, anunciou por meio de um memorando que cortaria o benefício dos ex-funcionários.

Na média, cada aposentado retirava cerca de 190 garrafas por ano, numa saudável média de uma garrafa a cada dois dias. Os atuais funcionários poderão continuar retirando uma caixa de 24 garrafas a cada duas semanas. A decisão foi tomada “relutantemente”, afirmou Charlie Angelakos, porta-voz da Labatt. Pode até ser. Mas não é nada surpreendente dado o histórico dos controladores da Labatt, o fundo 3G Capital, dos brasileiros Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Alberto Sicupira.

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Como se sabe, eles estão entre os mais espartanos – e bem-sucedidos – administradores do planeta. Sua capacidade de controlar custos chamou a atenção do guru Warren Buffett, que virou sócio do trio. Não seria um punhado de cervejas gratuitas que passaria pela guilhotina. A decisão ainda demorou – já que os brasileiros controlam a Labatt desde que a Ambev se juntou à Interbrew, em 2004. Mas a compra serviu para levantar uma antiga questão envolvendo os investidores – há vezes em que eles vão longe demais?

Exemplos de cortes obsessivos de custos não faltam nos negócios do 3G, que também é dono da Kraft Heinz, que reúne a Kraft Foods, dona de marcas como a Lacta, e a Heinz, que produz o ketchup de mesmo nome; da Restaurant Brands International, que administra o Burger King e a rede de cafeterias canadense Tim Hortons; das Lojas Americanas; da B2W e da América Latina Logística. A estratégia é sempre a mesma: buscar o máximo de eficiência e ganho de escala nas operações, nem que para isso tenham que cortar fábricas, empregos, ou cervejas grátis.

Outro carimbo da gestão do 3G é o orçamento base zero, em que, a cada ano, todos os custos devem ser rediscutidos. Só continua no orçamento o que ainda faz sentido. É uma forma de evitar que despesas que já são desnecessárias continuem corroendo a margem de lucro das empresas porque ninguém quer mexer nelas, ou sequer sabe que existem.

Tudo isso acontece sob a batuta de executivos de confiança dos administradores do 3G, muitas vezes criados dentro do próprio fundo. A troca no comando das empresas adquiridas é quase sempre o primeiro passo na mudança de cultura. Em 2013, assim que o brasileiro Bernardo Hees assumiu o Burger King, foi anunciado o corte de 9% da força de trabalho nos Estados Unidos, principal mercado da rede de fast-food. Mas o aperto vai além das demissões. Na companhia, os funcionários precisam de autorização até para fazer impressões coloridas. O modelo dá resultado.

Quando o 3G comprou a rede, em 2010, por quatro bilhões de dólares, ela estava em queda, com problemas de imagem e deixando de ser a principal competidora do McDonald’s no mundo. A recuperação, desde então, surpreendeu investidores. Nos três primeiros anos depois que a negociação foi concluída as margens da companhia subiram de 24% para 58%.

O exemplo aparece também nas outras empresas do grupo. Desde que o fundo de private equity e a Berkshire Hathaway, do investidor Warren Buffet, se uniram para comprar a Heinz, em 2012, a empresa cortou mais de 5.000 vagas, fechando sete unidades de produção em quatro locais diferentes na América do Norte. Quando foi anunciado a fusão entre a Heinz e a Kraft Foods, em 2015, o plano era chegar a uma economia de 1,5 bilhões de dólares por ano até 2017.

Os cortes, muitas vezes, são folclóricos. Em 2009, a Anheuser-Busch – fabricante da cerveja Budweiser – decidiu se desfazer de seus dois últimos Busch Gardens, espécie de parques de entretenimento que possuía desde o início do século 19 nos Estados Unidos. A decisão veio logo após a Anheuser-Busch ser comprada pela InBev em 2008 – formando a AB InBev -, numa transação de 52 bilhões de dólares. Os parques chegavam a oferecer até mesmo cerveja de graça e desde a década de 30 contavam com a presença dos lendários cavalos da raça Clydesdale, que se tornaram marca registrada da Budweiser.

Os cavalos, aliás, também saíram progressivamente de cena e, em 2014, deixaram de ser usados até mesmo em anúncios do SuperBowl, final do campeonato de futebol americano, que tem o anúncio mais caro da TV mundial. No México, quando assumiu a cervejaria Corona em 2013, a AB InBev vendeu prontamente o time de futebol Santos Laguna, um dos principais do país. “Não podia ter a responsabilidade de decidir quem seria o novo centroavante”, disse à época o presidente da companhia, Ricardo Tadeu Soares.

O lucro vem, mas e o futuro?

Virou rotina nas reportagens que sucedem a divulgação do balanço trimestral de alguma dessas empresas que o ponto principal seja explicar como o corte de custos ajudou a aumentar a lucratividade. Na AB InBev, os lucros operacionais subiram, em média, 8,6% ao ano entre 2010 e 2015. Nesse meio tempo, ano após ano, a empresa anunciou fechamento de fábricas e cortes de pessoal.

“Um corte de custos muito drástico, se não for feito com planejamento, pode prejudicar o que chamamos de cadeia de intangíveis da empresa, como a gestão de conhecimento interno e o valor da marca. A redução de pessoal também pode ter impacto negativo na produtividade”, diz Carmen Migueles, professora de gestão da Fundação Getúlio Vargas e sócia da consultoria Symballein. “Ao mesmo tempo, o dinheiro economizado pode servir para investir em inovação”.

Mesmo com o lucro em ascensão, a participação no mercado americano das marcas da cervejaria caiu 4,1% entre 2008 e 2015. Esse tipo de notícia não é estranha aos negócios administrados pelo fundo brasileiro. Um levantamento feito em 2015 pelo jornal Wall Street Journal mostrou que, embora as empresas adquiridas pelo 3G Capital tenham um aumento surpreendente nas margens de lucro, e consequentemente em seu valor de mercado, isso não significa que elas cresçam dentro da média do mercado. Pelo contrário, muitas vezes acabam perdendo parte de seu poder.

De acordo com um relatório feito pela consultoria americana McKinsey e divulgado no ano passado, desde 2013, quando o fundo comprou a Heinz, a empresa perdeu participação em 65% das categorias em que atua, se manteve igual em 16% delas e cresceu em apenas 19%

Recentemente, quando fechou a compra da SABMiller, a AB InBev anunciou que a sinergia das empresas permitirá que cerca de 3% da força de trabalho de ambas seja cortada. Ao todo, as duas companhias empregam 220.000 pessoas. Para começar, 5.500 vagas serão eliminadas e já entram na conta de redução de custos anual de 1,4 bilhão de dólares com a fusão das empresas. “Historicamente, a estratégia do fundo é ganhar com a sinergia feita pela escala de seus negócios. E eles sempre fizeram isso muito bem”, diz Migueles. “Mas sempre existe risco quando você entra como um trator mudando a cultura da empresa, principalmente se não avaliou bem seu posicionamento”.

Para os investidores, o histórico dos investidores é irretocável. Para os aposentados da Labatt, nem tanto.

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