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A auditoria pressionada

David Cohen Seis meses depois de retomar o posto de maior auditoria do mundo (que disputava com a Deloitte pescoço a pescoço havia dois anos), a PricewaterhouseCoopers (PwC) travou uma batalha de três semanas que poderia ter lhe custado a vida. Desde o último dia 9, uma corte de Miami julgava uma ação de 5,5 […]

PwC: acordo por não ter identificado a fraude que acabou com uma empresa de hipotecas Taylor Bean & Whitaker / Wikimedia
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Da Redação

Publicado em 30 de agosto de 2016 às 13h23.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h02.

David Cohen

Seis meses depois de retomar o posto de maior auditoria do mundo (que disputava com a Deloitte pescoço a pescoço havia dois anos), a PricewaterhouseCoopers (PwC) travou uma batalha de três semanas que poderia ter lhe custado a vida. Desde o último dia 9, uma corte de Miami julgava uma ação de 5,5 bilhões de dólares contra a auditoria, como indenização por não ter identificado a fraude que acabou com a empresa de hipotecas Taylor Bean & Whitaker. Na sexta-feira, 26, os dois lados chegaram a um acordo extra-judicial que pôs fim ao processo.

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O valor do acordo não foi revelado. Mas “o fato de que eles chegaram a um acordo depois de três semanas de um julgamento sangrento significa que alguém na PwC caiu na real sobre os riscos que a auditoria corria”, afirmou Jim Peterson, um ex-sócio da extinta Arthur Andersen que escreveu o livro Count Down: The Past, Present and Uncertain Future of the Big Four Accounting Firms (Contagem regressiva: o passado, o presente e o incerto futuro das quatro grandes firmas de contabilidade).

Especialmente depois da eclosão da crise financeira em 2008,
foram movidos vários processos contra as auditorias, com o argumento de que os profissionais falharam em seu papel de vigiar o comportamento de bancos ou financeiras. Mas chegar a um julgamento é algo raro. As ações são geralmente definidas por acordos extrajudiciais.

Se chegou ao ponto de enfrentar um júri, foi porque o montante pedido pelo gestor da massa falida da Taylor Bean era alto demais. Ou porque a PwC achou que o caso eram favas contadas – afinal, ela nem era a auditora da Taylor Bean. A meio caminho andado, porém, ela teve de rever sua posição.

Não é só por temer o impacto à sua imagem que as quatro grandes firmas de auditoria (PwC, Deloitte, EY e KPMG, que detêm 65% do mercado mundial) costumam preferir acertos fora dos tribunais. Elas não podem arriscar que um júri lhes imponha uma multa tão alta que provoque sua dissolução.

Embora tenha tido uma receita de 35,5 bilhões de dólares em 2015, a PwC é uma sociedade de profissionais. Como tal, não possui ativos que possam ser usados para pagar valores tão altos. Em caso de condenação, caberia aos sócios se cotizar para cobrir o prejuízo.

Para se proteger, as auditorias contratam seguros contra litígio, que lhes permite fazer acordos. Só que os pedidos de indenização têm ficado cada vez mais altos. “Em geral não se percebe que a maioria das firmas de contabilidade trabalha com um nível de capitalização incrivelmente baixo”, diz Peterson.

O grande exemplo de auditoria que desmilinguiu é a Arthur Andersen, que fazia parte das então cinco grandes firmas do setor. No final de 2001, quando ficou claro que sua sede americana tinha permitido que a empresa de energia Enron manipulasse sua contabilidade e os sócios picotaram toneladas de documentos para esconder seus malfeitos, os associados de outras regiões trataram de cortar seus laços e a deixaram afundar.

Num estudo feito há dez anos, Peterson calculou que o baque a partir do qual os sócios de uma auditoria fugiriam é de 3 bilhões de dólares. Os sócios de fora dos EUA seriam os primeiros a se desvincular da empresa – como aconteceu com a Arthur Andersen.

Vêm mais dois por aí

O fim deste processo é um senhor alívio para a PwC. Mas ela ainda enfrentará outros dois no futuro próximo, cada um com um valor próximo de 1 bilhão de dólares.

O fato de este caso ter chegado tão longe é um mau sinal. A ação foi movida pelo administrador da massa falida da Taylor Bean & Whitaker, que havia sido a 12ª maior negociadora de hipotecas dos Estados Unidos, a primeira fora os bancos. Mas a PwC não fazia auditoria dela, e sim do banco Colonial, que foi fraudado pela Taylor Bean.

Durante quase seis anos, entre 2002 e 2007, a Taylor Bean sacava dinheiro do Colonial para cobrir seu caixa. Para equilibrar o orçamento, vendia ao Colonial pacotes de hipotecas que não existiam ou que já haviam sido vendidas a outros investidores.

O esquema de 3 bilhões de dólares só foi descoberto por autoridades federais em 2009, após uma denúncia. Seis executivos da Taylor Bean foram presos, incluindo o ex-presidente do conselho, Lee Farkas, sentenciado a 30 anos de prisão. Dois executivos do Colonial confessaram ter participado do esquema e também foram presos.

A fraude levou tanto a Taylor Bean quanto o banco Colonial à falência, em agosto de 2009. O colapso do Colonial se tornou o sexto mais caro de um banco americano: o seguro federal teve de desembolsar 4,2 bilhões de dólares.

Quando o advogado Neil Luria, um diretor da firma Navigant Capital Advisors, assumiu a missão de reestruturar a Taylor Bean, tratou de ir atrás dos auditores. Primeiro, da Deloitte, que verificava a contabilidade da empresa. O caso foi resolvido por um acordo, de valor não divulgado, há três anos.

Mal foi feito o acordo, Luria partiu para o segundo alvo, a PwC. Seu argumento é que, se tivesse examinado direito os documentos que a Taylor Bean deu ao banco, a PwC teria identificado a fraude.

“Lembrem-se, o dono da Taylor Bean e metade de seu grupo executivo eram criminosos”, afirmou a advogada da PwC no processo, Beth Tanis. “Eles não dependiam da auditoria da PwC porque sabiam da fraude que estavam cometendo.” Os desvios de dinheiro serviram para comprar um jato corporativo, uma coleção de carros antigos e sustentar outros benefícios nababescos para os executivos.

Sobrou para a estagiária

Steven Thomas, o principal advogado de acusação, afirmou que a PwC tinha condições de detectar e por fim à fraude. “Este foi o pior trabalho de auditoria que eu já vi”, disse ao tribunal de Miami.

Não apenas a PwC colocou uma estagiária para verificar as contas do banco, ela era supervisionada por alguém que, de acordo com emails obtidos pela acusação, dizia que aquela função estava “acima do nível de seu salário”.

A defesa da PwC argumentou que a firma foi ludibriada por uma gangue de fraudadores e, mesmo se tivesse pedido mais documentos sobre o balanço, estes seriam falsificados. É provável. Mas eles não pediram os documentos.

As auditorias escaparam praticamente ilesas da enxurrada de multas pagas por bancos, corretoras e outros intermediários na esteira da crise financeira iniciada há oito anos. Mas o caso da Taylor Bean contra a PwC – e especialmente o montante altíssimo que era pedido – mostra que a maré virou. O acordo evitou uma catástrofe para a PwC, mas pode ter um efeito multiplicador de ações contra as auditorias.

O que entrou em debate, nos últimos anos, é a própria essência do trabalho de auditoria – ou pelo menos a percepção que se tem dele. O processo da Taylor Bean chegou a ser considerado bizarro – “é como se o criminoso processasse a polícia por não ter visto o crime”, disse Mike Young, um advogado de Nova York com experiência em litígios com consultorias – mas uma das bases do mercado de ações é a garantia de que as empresas foram auditadas por profissionais independentes.

Para que serve um auditor?

Quando as auditorias se tornaram obrigatórias para as companhias abertas nos Estados Unidos, em 1900, a ideia era detectar fraudes, erros técnicos (apresentar um cálculo errado) e erros de procedimento (colocar o número certo em uma coluna errada). Os relatórios de auditoria costumavam vir com um carimbo de “certificado”, como um selo de aprovação das contas por um agente externo de boa reputação.

Esta ainda é a percepção do público em geral do trabalho de uma auditoria. Mas desde os anos 1930 os relatórios de auditores são considerados pelos especialistas do setor apenas como uma opinião. Trata-se do reconhecimento de que para efetivamente vigiar e certificar todas as contas de uma companhia o trabalho seria monstruoso – e o custo, impraticável.

O simples fato de que os auditores trabalham por amostragem – investigando uma parcela reduzida das transações da empresa – já abre uma boa possibilidade de que algumas incorreções passem pelo escrutínio. Isso não quer dizer que nenhuma fraude possa ser detectada.

“As pessoas confundem documentos falsos, que um auditor não tem como descobrir, e contabilidade falsificada, que um auditor deveria perceber”, afirmou Douglas Carmichael, professor de contabilidade no Baruch College, em Nova York.

Essa zona cinzenta – o quanto exatamente pode-se esperar de garantia dos auditores – dá margem aos processos. Também no Brasil funciona assim. Em 2011, a KPMG fechou um acordo de 1,5 milhão de reais com a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) por não ter alertado os investidores da Sadia sobre os riscos de operações com derivativos cambiais, que provocaram perdas de 2,5 bilhões de reais e levaram a empresa a se fundir com a Perdigão.

Recentemente, as companhias Aracruz, Carrefour e o Banco PanAmericano também sofreram perdas bilionárias com fraudes ou irregularidades contábeis, não apontadas por seus auditores independentes.O Banco Econômico quebrou em 1995, pouco depois da publicação de um balanço cor-de-rosa chancelado pela Ernst & Young (hoje, EY). O Banco Nacional, liquidado no mesmo ano, tinha contas fictícias que inflavam seu patrimônio, mas sua contabilidade foi aprovada pela KPMG.

Segundo uma recente pesquisa da Anti-Fraud Collaboration, uma organização antifraude composta por profissionais de finanças e auditoria dos Estados Unidos, 52% dos profissionais do setor julgam que a detecção de fraudes é responsabilidade dos principais executivos da empresa; 31% dizem que isso é dever dos auditores internos; e apenas 6% consideram que a missão é dos auditores externos.

Esta é a tecla que a PwC pressionou no julgamento em Miami, e que deve usar nos próximos. “Como os padrões da auditoria profissional deixam claro, mesmo uma auditoria bem desenhada e executada pode não detectar fraude, especialmente em casos em que há conspiração, fabricação de documentos e desprezo aos controles, como era o caso do banco Colonial”, disse Beth Tanis, na argumentação da defesa. “Estamos confiantes que o júri vai entender isso e decidir de acordo.”

É a mesma estratégia de defesa usada pela PwC do Canadá em 2009, em ação movida por investidores que haviam aplicado dinheiro com o fraudador Bernard Madoff. A acusação era de que a firma foi negligente e por isso não percebeu que os ativos vendidos por Madoff não existiam.

A PwC respondeu que não era auditora de Madoff e que seu trabalho “estava completamente de acordo com os padrões profissionais”. Em janeiro deste ano, o caso foi finalmente encerrado, com um acordo de 55 milhões de dólares.

“Se a descoberta de erros materiais e fraudes não é uma parte substancial da auditoria, não está claro que valor o serviço do auditor agrega ao investidor e aos mercados de capitais”, opina o professor de contabilidade Andrew Bailey, da Universidade de Illinois.

Em entrevista ao The Wall Street Journal em 2007, o então presidente do conselho da PwC, Dennis Nally, disse que os auditores sempre tiveram a responsabilidade de detectar fraude. “O debate sempre foi até onde você leva essa atribuição, que tipo de procedimentos precisa desenvolver”. A questão, disse ele, é a relação custo-benefício do trabalho necessário para detectar as fraudes.

A Petrobras e outras pedreiras

Se foi difícil escapar em um caso em que não era auditora da empresa, imagine o quanto será complicado escapar do mesmo caso, numa ação da empresa que, ela sim, era auditada pela PwC. Esta é a próxima pedreira para a auditoria.

Caso não chegue a outro acordo, em fevereiro do ano que vem a PwC terá de enfrentar o júri na ação do administrador da massa falida do banco Colonial, em uma corte federal do Alabama (onde ficava a sede do banco). A acusação pede 1 bilhão de dólares de indenização pela falha em detectar a fraude.

O segundo grande risco no horizonte da PwC é uma ação da MF Global, uma corretora de derivativos que faliu em 2011. Os acusadores pedem também uma indenização de 1 bilhão de dólares. Dizem que a PwC deu conselhos errados sobre como contabilizar a dívida soberana europeia, o que levou a empresa ao colapso.

A PwC entrou com pedido para que a ação, de 2014, fosse descartada, mas no início de agosto um juiz federal de Nova York rejeitou-o, dizendo que havia “evidência suficiente” para a disputa.

Como se não bastasse, a PwC ainda pode ser arrastada para o julgamento de sua subsidiária brasileira sobre as falhas de auditoria na Petrobras. A acusação é que a auditoria não detectou o esquema multibilionário de corrupção na empresa – o Petrolão. No auge do escândalo a PwC brasileira se recusou a assinar o balanço da Petrobras, em 2014, justamente temendo se comprometer com informações erradas.

Os acusadores, entre os quais se inclui a Fundação Bill Gates, podem decidir arrastar a sede americana para o processo – que tem o potencial de arrasar a filial brasileira da auditoria.

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