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Uma Arábia Saudita sem petróleo?

São 2,1 milhões de quilômetros quadrados de areia (uma extensão equivalente à soma das áreas de Amazonas, Rondônia e Roraima) tão inóspitos que a região foi durante séculos ocupada apenas por tribos nômades. O país só nasceu em 1932, unificado por um membro da dinastia Saud, Abdul Aziz ibn Saud. Apenas seis anos depois, em […]

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Da Redação

Publicado em 18 de maio de 2016 às 14h03.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h05.

São 2,1 milhões de quilômetros quadrados de areia (uma extensão equivalente à soma das áreas de Amazonas, Rondônia e Roraima) tão inóspitos que a região foi durante séculos ocupada apenas por tribos nômades. O país só nasceu em 1932, unificado por um membro da dinastia Saud, Abdul Aziz ibn Saud. Apenas seis anos depois, em 1938, uma companhia americana descobriu petróleo na região. E desde então a economia da Arábia Saudita está atada a ele.

Não foi um mau negócio. O petróleo representa 97% de toda a receita de exportações do país e é responsável por mais da metade do PIB de 750 bilhões de dólares – que divididos por seus perto de 30 milhões de habitantes, sendo 20 milhões sauditas e o restante estrangeiros residentes, lhe confere uma renda per capita de 25.000 dólares, algo entre o triplo e o quádruplo da brasileira.

O problema é que o preço do petróleo desabou nos últimos dois anos, da casa dos 90 a 100 dólares para a casa dos 40 a 50 dólares. Em boa parte, a queda de preços é responsabilidade da própria Arábia Saudita, o maior exportador do mundo, que liderou a Opep (organização dos exportadores) em sua decisão de não conter a produção mesmo ante o recolhimento da demanda. A ideia era defender sua participação de mercado ante novos concorrentes, tanto no mundo do petróleo como de outras fontes de energia.

Deu certo. A Venezuela entrou em crise. A indústria do gás de xisto (o nome correto é folhelho, mas ninguém usa) nos Estados Unidos sofreu um baque, com inúmeras falências e desinvestimentos. No Brasil, começou-se a duvidar se o investimento no pré-sal vale a pena. E tudo ficou mais difícil para as energias alternativas.

De certa forma, porém, o feitiço se voltou contra o feiticeiro. De 2003 a 2013 os sauditas se refestelaram numa era de superávits orçamentários, graças ao aumento constante dos preços do petróleo. Com a virada do mercado, o país amargou um déficit fiscal de 15% do PIB em 2015. Este ano, a projeção é de algo entre 13% e 19%. O governo está cortando gastos, adiando investimentos, recorrendo a reservas em moeda estrangeira e emitindo títulos de dívida. No último dia 14, a agência de classificação de risco Moody’s rebaixou a nota do país de A1 para Aa3 – uma queda do primeiro para o sexto posto na escala da agência.

Claro, o país poderia ter aproveitado a fase boa para construir alternativas. Em vez disso, criou mais gordura no setor público e distribuiu riqueza para consumo (este parêntesis seria para falar que qualquer semelhança com o Brasil… mas você já tinha percebido isso, não é?).

Feliz 2030

É este o pano de fundo para o ousado plano de reforma econômica Visão 2030, anunciado no final de abril pelo vice príncipe coroado Mohammed bin Salman. A ideia, em resumo, é reverter o rumo econômico que o país tomou em sua infância e, nas palavras de MbS (como é conhecido o príncipe no Ocidente), livrar-se de seu “vício em petróleo”.

Na introdução do documento, o governo saudita afirma que “sob circunstâncias mais duras que as atuais, nossa nação foi forjada pela determinação coletiva quando o falecido rei Abdulaziz Al-Saud – que Allah abençoe sua alma – uniu o reino. Nosso povo vai surpreender o mundo outra vez.”

Não será fácil. Não é a primeira vez que os sauditas falam em se livrar da dependência do petróleo. Geralmente, essa conversa vem nas épocas que o preço do barril sofre uma queda significativa. E, geralmente, a conversa é esquecida quando o preço volta a subir.

O que existe de diferente agora é Bin Salman, o MbS. Aos 30 anos, o filho preferido do rei Salman Al Saud é quem tem as rédeas do país, como ministro da Defesa, presidente do Conselho para Economia e Desenvolvimento e líder da Casa de Saud, a dinastia real. Seu pai assumiu o trono em janeiro de 2015, após a morte do rei Abdullah, seu meio-irmão. Mas ele tem 80 anos e sérios problemas de saúde. Por isso, quem governa são o príncipe coroado, Muhammad bin Nayef, e MbS, o vice príncipe coroado, que concentra cada vez mais poder.

No ministério da Defesa, MbS imprimiu sua marca de ousadia. No começo do ano passado, apoiou a criação de uma brigada muçulmana para combater o governo sírio. Em seguida, envolveu-se na guerra do vizinho Iêmen, uma espécie de confronto com o Irã por interpostos guerrilheiros, como faziam os Estados Unidos e a URSS em várias regiões durante a Guerra Fria. Em janeiro deste ano, o governo saudita executou o xeque xiita Nimr al-Nimr e mais 46 prisioneiros, deixando clara sua linha dura em relação à minoria xiita do país e ao Irã (o polo xiita).

Tudo isso é tão diferente da usual cautela dos sauditas que, em dezembro passado, o serviço secreto alemão produziu um documento sobre a “política de intervenção impulsiva” da Arábia Saudita, dizendo que seu ministro da Defesa era um jogador que estava desestabilizando o mundo árabe. Quando o documento vazou, os sauditas protestaram e o Ministério do Exterior alemão deu uma bronca na agência de inteligência. Mas há algum consenso entre diplomatas de que MbS acumula poder demais e que, como disse a agência alemã, “há o risco de que, na tentativa de estabelecer-se na linha de sucessão de seu pai, ele force a mão”.

O mesmo estilo decidido (ou impulsivo, dependendo de quem o descreva) que MbS mostrou na Defesa está apresentando na condução da economia.

A privatização da estatal do petróleo

 No início de maio, a Arábia Saudita teve uma significativa reestruturação de governo. O que mais surpreendeu os analistas foi a saída do influente ministro do petróleo, Ali al-Naimi, que estava no cargo desde 1995 – alguém cujos meros comentários sofriam escrutínio detalhado dos investidores, por seu potencial de mexer com mercados no mundo todo. Mas também foram trocados os responsáveis pelas áreas de energia, água e eletricidade, comércio e investimentos e Banco Central. Tudo para obter apoio para o programa de reformas Visão 2030.

Em sua essência, o plano é simples. Vender ações da estatal de petróleo, Saudi Aramco, para criar um fundo soberano de investimentos – seguindo o bem-sucedido exemplo de Dubai, um emirado no qual o petróleo respondia por 50% do PIB e que hoje está praticamente livre da dependência.

A privatização começará com a venda de uma pequena parcela da Aramco, 5% de suas ações, provavelmente em 2017, um negócio que pode colocar o valor total da companhia em até 2,5 trilhões de dólares.

Um segundo ponto do plano, também com metas ousadas, é quintuplicar o número de turistas, para 30 milhões de visitantes por ano, até 2030. A estratégia para isso é encorajar os peregrinos que visitam os pontos sagrados do islamismo (Meca e Medina) a viajar mais pelo país.

Finalmente, as duas partes mais difíceis: manter uma política de austeridade, com aumento de impostos que podem arrecadar até 100 bilhões de dólares nos próximos quatro anos, e elevar a produtividade dos sauditas.

Se aumentar impostos é uma ação com garantia de provocar insatisfação, elevar a produtividade é potencialmente uma bomba. Para fazer isso, o governo teria de desatar o nó de uma estrutura social em vigor há quatro décadas.

A Arábia Saudia emprega apenas 41% da população nativa em idade de trabalhar (a média na OCDE é 60%) e a maior parte dela está no serviço público. As empresas privadas costumam contratar mão de obra barata no exterior e os nacionais inflam as repartições públicas.

Os expatriados ocupam mais de 80% dos postos nas empresas privadas. E por que os sauditas não reclamam da concorrência estrangeira? Porque os empregos na administração pública e nas forças armadas pagam salários de duas a quatro vezes maiores. O dinheiro para pagar salários inchados vem, obviamente, dos direitos de exploração do petróleo – que a estatal Aramco religiosamente encaminha ao governo. O caminho de privatizar companhias e elevar a produtividade tende, portanto, a destruir postos de trabalho.

Para que dê certo, esse plano exigiria entregar a sauditas os empregos que estão nas mãos dos estrangeiros, e ao mesmo tempo aumentar os salários nas empresas privadas, diz Ishac Diwan, pesquisador sobre Oriente Médio na universidade Harvard. O reino já embarcou num programa de “saudização”, que exige que as empresas contratem mais trabalhadores nacionais. Mas as companhias privadas têm resistido.

O único modo de conciliar as necessidades das empresas com as da população nacional é tornar as companhias mais sofisticadas, de forma que tenham postos para empregados com maior nível de educação (quase dois terços dos jovens vão para a universidade). Isso exige investimentos em tecnologia, treinamento e talvez perseguição de oportunidades em setores diversos. Um deles é a produção de armamentos (uma indústria ainda mais politicamente incorreta que a do petróleo): os sauditas são um dos maiores consumidores de armas do mundo, mas produzem apenas 2% do seu consumo.

O exército de consultores


Em meio a toda a crise resultante da queda dos preços de petróleo, um setor teve resultados fantásticos: as consultorias de estratégia. Segundo a Source Global Research, uma empresa de estudos sobre o mercado de consultorias, o governo saudita elevou seus gastos com consultores em 60% nos últimos quatro anos, de 800 milhões dólares em 2012 para projetados 1,3 bilhão este ano.

Em círculos de burocratas sauditas, a privatização da Aramco foi atribuída, com sarcasmo, ao “ministério da McKinsey”, segundo o escritor árabe Salem Saif. De fato, boa parte da Visão 2030 dos sauditas está apresentada num relatório que a McKinsey publicou em dezembro, “Movendo a economia saudita para além do petróleo”.

Num quadro elucidativo, a consultoria comparou a situação do país em 2030 seguindo o caminho normal e a situação caso os sauditas consigam atingir seu “pleno potencial”. No primeiro caso, o PIB iria para 1,2 trilhão de dólares, a renda dos sauditas cairia para 3.000 dólares por mês, o desemprego subiria de 12% para 22% e o déficit fiscal passaria de 2,3% para 12% do PIB. No segundo caso, o PIB iria para 1,6 trilhão de dólares, a renda subiria para 6.000 por mês, o desemprego cairia para 7% e o déficit viraria superávit fiscal de 2% do PIB.

Para chegar a esse “pleno potencial”, a receita não é nova. Trata-se daquilo que partidos de esquerda chamam, com menosprezo, de política neoliberal, e seus defensores (incluindo alguns de esquerda, também) chamam de império da razão: diminuir o tamanho do estado, incentivar a iniciativa privada, melhorar a competitividade.

No papel, as palavras de ordem “privatização”, “crescimento”, “competitividade” fazem todo o sentido. Como faziam as palavras de ordem dos planos do passado: “desenvolvimento”, “industrialização”, “cooperação regional”. O duro é enfrentar as realidades incrustadas por décadas.

Mas a McKinsey já teve vários outros clientes. Este mesmo título de Visão 2030 foi usado nos anos 2000 para vender ao Bahrein a ideia de se transformar numa “sociedade competitiva”, e em seguida a Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes Unidos.

O pior cenário para a Arábia Saudita é, em vez de seguir o exemplo de Dubai, cair no destino de outros países que contrataram a McKinsey. Antes da queda do regime de Muammar Kadafi, seu filho contratou a consultoria para reorganizar o país. No Egito, ela vendeu propostas para melhorar vários setores. No Iêmen, estabeleceu dez prioridades de reformas econômicas, também lidando diretamente com o filho do presidente. Todos esses lugares foram palco dos protestos que ficaram conhecidos como Primavera Árabe, em 2011.

A Arábia Saudita, embora tenha a juventude mais antenada do mundo árabe, passou ao largo das manifestações, em grande parte porque a economia lhes garantia uma situação de vida confortável.

Como diz o pesquisador Ishac Diwan, “com menos royalties de petróleo, o contrato social está sob estresse. Cortar o apoio, seja dos negócios seja da população, vai enfraquecê-lo ainda mais”. A passagem de uma economia ineficiente e burocratizada para uma ágil e competitiva é uma visão e tanto. Mas talvez seja areia demais para o caminhão dos monarcas.

(David Cohen) 

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