HAVANA: cubanos na frente da embaixada americana em Cuba, reaberta por Obama / Chip Somodevilla/ Getty Images
Da Redação
Publicado em 5 de dezembro de 2016 às 05h42.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h06.
Lourival Sant’Anna, de Havana
O que Donald Trump fará com relação a Cuba é uma das muitas incógnitas de seu futuro governo, envolto na ambiguidade e nas muitas idas e vindas de suas posições. Ultimamente, todos os sinais têm sido de endurecimento. Mas, no início da campanha, Trump era o único pré-candidato republicano que apoiava a flexibilização do embargo e o reatamento das relações diplomáticas, promovidos pelo presidente Barack Obama. Além disso, grandes empresas americanas estão investindo em Cuba, onde vislumbram muitas oportunidades, e sentem-se prejudicadas por concorrentes, inclusive brasileiros, que acessam livremente o mercado cubano. Essa é uma linguagem que Trump, como empresário, entende, e a eleição passou, e com ela a necessidade do voto cubano-americano, anticastrista e pró-embargo, da Flórida.
Na penúltima semana de novembro, Trump nomeou para sua equipe de transição Mauricio Claver-Carone, diretor-executivo do lobby pró- embargo US-Cuba Democracy, ferrenho crítico da aproximação realizada por Obama. Sua função não poderia ser menos estratégica: organizar a transição no Departamento do Tesouro, ao qual está subordinada a Ofac, a agência encarregada de impor as sanções.
Trump estava em sua mansão de descanso no balneário de Mar-a-Lago, em Palm Beach (Flórida), quando recebeu a notícia da morte de Fidel Castro, na noite de sexta-feira, 25. Seu primeiro tuíte foi factual: “Fidel Castro morreu!” Mais tarde, sua assessoria distribuiu uma nota, na qual ele chamava Fidel de “ditador brutal”, e se comprometia a lutar pela democracia e pela liberdade na ilha. Não foi exatamente um gesto elegante, considerando que Raúl gentilmente lhe enviara no dia 9 congratulações por sua vitória eleitoral. E se tornou mais rude ainda em contraste com a contida mensagem de Obama, que disse que “a História julgará” Fidel, numa alusão à sua frase “a História me absolverá”, proferida durante sua defesa no julgamento do assalto ao Quartel de Moncada, em Santiago de Cuba, em 1953.
Três dias depois da morte de Fidel, Trump voltou ao Twitter para advertir: “Se Cuba não estiver disposta a fazer um acordo melhor para os cubanos, os cubano-americanos e os EUA como um todo, eu terminarei o acordo”, referindo-se ao restabelecimento das relações diplomáticas.
E isso foi tudo. Trump tem questões mais prementes para resolver, como a composição de seu ministério.
Segundo o presidente do Partido Republicano, Reince Priebus, nomeado chefe de gabinete, o presidente eleito vai esperar “alguns movimentos” de Havana, e “com certeza” anulará os acordos firmados pelo governo Obama se não obtiver as concessões que deseja: “Não vamos ter um acordo unilateral vindo de Cuba para os Estados Unidos sem algumas mudanças no governo deles. Repressão, mercados abertos, liberdade de religião, prisioneiros políticos — essas coisas precisam mudar para ter relações abertas e livres”.
O governo cubano mantém um silêncio cauteloso sobre as futuras relações com Washington. “Se observarmos o campo republicano veremos que Trump não se manifestou com mais beligerância contra Cuba”, pondera o diplomata cubano Carlos Alzugaray, frequentemente ouvido pela imprensa oficial local, como uma voz autorizada do governo em matéria de relações internacionais. “De fato, outros pré-candidatos, como (os senadores) Ted Cruz, Marco Rubio e Jeff Bush tinham posições muito mais agressivas contra nosso país.”
A antiga posição de Trump pelo fim do embargo tinha a ver com sua posição de empresário. Segundo reportagem da revista Newsweek, uma empresa de Trump chegou a violar o embargo em 2008. Mas, ao avançar nas primárias, o candidato republicano constatou que precisaria do apoio dos cubano-americanos, ferrenhos opositores do regime castrista, para garantir os 29 votos da Flórida no Colégio Eleitoral — que, como sempre, foram de fato decisivos na sua vitória.
Tanto Cruz quanto Rubio, ambos de famílias cubanas, defenderam depois da morte de Fidel a revisão da política de normalização. “O que a administração de Obama fez fortaleceu Raúl Castro,” disse Cruz, senador pelo Texas e influente dirigente republicano. “Raúl é o ditador agora. Perguntei ao meu pai no jantar o que ele acha que vai acontecer agora que Fidel está morto. Ele deu de ombros e disse que Raúl está no comando há anos, e que o sistema se fortaleceu.”
Rubio, que exerce forte liderança sobre os cubano-americanos na Flórida, disse: “Trump deixou muito claro que sente que os movimentos do presidente Obama em direção a Cuba estão errados e que os examinaria e mudaria os que precisam ser mudados. Acho isso muito promissor. Sei que eles têm boas pessoas assessorando-os nessa questão. Portanto tenho confiança de que ele vai fazer a coisa certa em relação a Cuba”.
Para Alzugaray, o analista cubano, “há um sinal de interrogação a respeito de como Trump governará: como um populista que mete medo ou como um empresário inteligente”. Trump certamente teria o poder de desfazer o que Obama fez por decretos presidenciais, mas teria de enfrentar a resistência de grandes empresas americanas, incluindo companhias aéreas, redes hoteleiras, telefônicas e outros segmentos de tecnologia e agronegócios. Um dos passos que Obama deu, e que mais desagradaram os cubano-americanos, foi permitir que as empresas americanas fizessem contratos com estatais cubanas. Peter Harrell, ex-funcionário do Departamento de Estado que trabalhou com o tema das sanções no governo Obama, prevê que Trump elimine essa licença, enquanto mantenha os negócios com empresas privadas.
“Todo país do mundo tem relações diplomáticas e comerciais com Cuba, e não queremos perder essa fatia de mercado para a União Europeia, o Brasil e a Argentina”, queixa-se Kevin Paap, presidente da Associação de Fazendeiros do Estado de Minnesota, que votou em Trump. Paul Johnson, co-presidente da Frente de Agricultura por Cuba, acha que Trump não fará isso: “A América rural claramente apoia a normalização do comércio com Cuba”. Para o pesquisador Dan Restrepo, do Centro para o Progresso da América, que foi assessor de Obama para a América Latina, os empresários poderão até processar o governo americano pelos prejuízos causados por uma eventual ruptura da normalização com Cuba.
Na verdade, ao longo dessas quase seis décadas desde a Revolução de 1959, o embargo já teve várias idas e vindas. Os Estados Unidos romperam relações diplomáticas com Cuba em janeiro de 1961. Entre 1962 e 1975, impuseram um bloqueio comercial total da ilha. Cedendo a pressões internacionais, flexibilizaram as regras, permitindo que filiais americanas em outros países fizessem comércio com Cuba.
Em 1977, o então presidente democrata Jimmy Carter autorizou viagens de americanos à ilha. Seu sucessor, o republicano Ronald Reagan, voltou a proibi-las. E o próximo presidente, o também republicano George H. Bush (o pai), sancionou, no último ano de seu governo, em 1992, a Lei Torricelli, que intensificou o embargo, justamente no momento em que Cuba enfrentava profunda escassez, causada pelo fim da União Soviética, que antes a sustentava economicamente.
De novo, o democrata Bill Clinton facilitou as viagens de americanos. Mas por outro lado Clinton sancionou em 1996 a Lei Helms-Burton, que endureceu as sanções comerciais e financeiras e ainda estendeu as punições a empresas de outros países que tenham negócios com Cuba. A medida foi uma retaliação pela derrubada, por caças cubanos, de dois aviões da organização dissidente cubana Irmãos ao Resgate, que haviam violado o espaço aéreo do país.
Essa lei está em vigor até hoje, apesar de ações, perante a Organização Mundial de Comércio, do Brasil, Argentina, México, Canadá e União Europeia, entre outros, que a acusam de ferir o direito internacional, por seu caráter extraterritorial. Só a ONU pode impor sanções que atravessam as fronteiras dos países. Empresas brasileiras continuaram fazendo negócios com os EUA e com Cuba, e nunca foram punidas. Já as de outros países foram.
O republicano George W. Bush (filho) voltou a restringir as viagens de americanos para Cuba, as remessas de dinheiro e de mercadorias. Com a chegada de Obama, essas restrições foram retiradas. O teto para as remessas passou de 500 para 2.000 dólares por trimestre. Do lado de cá, Havana também fez uma mudança na lei, permitindo que os cubanos se ausentem do país por até dois anos, sem perderem seus direitos de cidadãos e a propriedade sobre suas casas (o que antes acontecia quando deixavam a ilha). Como resultado, houve uma injeção na economia cubana de dinheiro e de bens enviados dos Estados Unidos para os parentes que vivem em Cuba. As remessas de cubano-americanos somaram no ano passado 2 bilhões de dólares e o turismo trouxe uma receita de 12 bilhões. Para um PIB de 91 bilhões de dólares, são números significativos. Dos 3 milhões de visitantes estrangeiros, 700 mil foram americanos.
O governo Obama retirou Cuba da lista de países patrocinadores do terrorismo e reatou as relações diplomáticas, depois de negociações secretas, que tiveram a participação do atual cônsul dos EUA em São Paulo, Ricardo Patiño. Em junho, pela primeira vez, autoridades cubanas e americanas realizaram uma reunião técnica em Havana para discutir a cooperação no combate ao terrorismo.
No mesmo mês, o Departamento de Transporte dos EUA autorizou a criação de vôos comerciais regulares por seis companhias aéreas: American Airlines, Frontier Airlines, JetBlue Airways, Silver Airways, Southwest Airlines e SunCountry Airlines. Os vôos partem de cinco cidades americanas — Miami, Fort Lauderdale, Chicago, Minneapolis e Filadélfia — para nove destinos na ilha: Camagüey, Cayo Coco, Cayo Largo, Cienfuegos, Holguín, Manzanillo, Matanzas, Santa Clara e Santiago de Cuba.
A normalização das relações, marcada pela visita de Obama a Havana em março — a primeira de um presidente americano em 88 anos —, causou euforia na ilha. As pessoas passaram a circular com camisetas, bonés e bandeiras dos Estados Unidos, sentindo-se mais livres para manifestar o sonho de consumo associado ao estilo de vida americano — tão distante da realidade de Cuba, mas tão real para seus parentes na Flórida.
Tudo isso agora corre o risco de se perder. Do ponto de vista cubano, a eleição de Trump coincide com uma mudança de ventos também na América do Sul. Além da falência econômica da Venezuela, a grande patrocinadora do regime, Cuba perdeu importantes alianças com o Brasil e a Argentina, com a saída das presidentes Dilma Rousseff e Cristina Kirchner.
Mas Alzugaray não acha que isso terá tanto impacto. “A relação com o Brasil é boa desde a época de Fernando Henrique Cardoso”, recorda ele. “No Brasil não há forças políticas tão anticubanas quanto na (oposição da) Venezuela. Além do mais, os negócios entre Cuba e Brasil não se restringem só aos governos, mas há importantes empresas privadas brasileiras com presença em Cuba.”
Na Zona Especial de Desenvolvimento (ZED) ao lado do novo Terminal de Cargas de Mariel, construído pela Odebrecht com financiamento do BNDES, a Souza Cruz está investindo 58 milhões de dólares em uma nova fábrica de cigarros, em joint venture com a parceira local Tabacuba, que também está colocando o mesmo valor. Outras grandes empresas brasileiras, como a Ambev, também estudam se instalar na ZED, que oferece isenção fiscal por dois anos e redução da burocracia. Frango e arroz brasileiros abastecem os armazéns estatais cubanos, em que são distribuídos para a população por centavos de dólar, em rações mensais subsidiadas, e também são encontrados nas lojas que os vendem a preço de mercado. Outros alimentos, produtos de higiene e utensílios domésticos fabricados no Brasil também são comuns em Cuba.
Mesmo assim, a imprensa oficial — a única permitida — qualificou de “golpe” o impeachment de Dilma. “Não há dúvida de que a situação no Brasil e o retrocesso geral dos governos progressistas nos prejudicam”, admitiu Alzugaray. “No entanto, Cuba tem sabido se mover com todas as forças políticas da região. Por exemplo, com (o presidente Mauricio) Macri na Argentina não se deteriorou a relação.”
Com Trump e os Estados Unidos, há muito mais em jogo. Para bem e para mal.