Socorristas de migrantes relatam luta psicológica no Mediterrâneo
Entre os socorristas há marinheiros, ex-militares, paramédicos e enfermeiras que têm que lidar com mortes ou desespero de quem foge da violência
AFP
Publicado em 6 de agosto de 2019 às 19h31.
"Sempre tem um que não conseguimos salvar". Essa é a ideia fixa que persegue inclusive os marinheiros mais experientes que resgatam migrantes no Mediterrâneo.
Para superar essa angústia, a tripulação do "Ocean Viking", o barco fretado pelas ONGs SOS Mediterranée e Médicos Sem Fronteiras (MSF) que zarpou no domingo para a Líbia, recebe apoio psicológico.
"Intervimos pela primeira vez em novembro de 2017 depois de um naufrágio complicado", conta Marie Rajablat, uma enfermeira psiquiátrica com uma longa experiência humanitária.
Em seus três anos de missões humanitárias no "Aquarius", o primeiro barco de SOS Mediterranée, muitas vezes junto a socorristas jovens, a enfermeira enfrentou com frequência situações dramáticas.
Em janeiro de 2018, por exemplo, resgataram 70 pessoas da água, muitas delas bebês, e alguns conseguiram reviver graças à massagem cardíaca, lembra.
"Os marinheiros ficaram traumatizados pelo medo de não poder salvá-los, embora de fato tenham salvado todos", conta Rajablat, que passou seis semanas a bordo da embarcação e relatou sua experiência no livro "The Shipwrecked of Hell" ("Os náufragos do inferno", em tradução livre).
Pouco a pouco, a psicóloga criou uma equipe de 15 pessoas especializadas. Três deles participaram de uma reunião preparatória antes que zarpasse no "Ocean Viking".
"No começo, a desconfiança reinava. Diziam a si mesmos, é pura falação", recorda, rindo, a psiquiatra Marie Lépine. "Mas depois se acostumaram com a nossa presença", admite.
Para Frédéric Penard, diretor de operações de SOS Mediterranée, sua equipe de trabalho é como "um tesouro" que pode se desgastar com os traumas.
"É que não é uma situação normal ver as pessoas morrerem em alto mar. Por isso, receber apoio e ser escutado se tornou determinante", assegura.
Um espaço fechado
Permanecer em um espaço fechado como um barco é também uma situação complexa e singular, motivo pelo qual a prevenção evita que a equipe entre em colapso a bordo, explica Rajablat.
"A bordo é um mundo fechado onde se veem somente horrores", afirma. Porque os migrantes costumam ser pessoas traumatizadas, angustiadas, que fugiram de seu país, que padeceram de violência, miséria, sofreram a guerra e viveram em condições perigosas.
As condições das mães migrantes também costumam ser muito dramáticas. No "Aquarius" houve cinco partos.
"Esse é um mundo à parte, gira ao redor da desgraça, também tem algo de surrealista. O retorno à terra causa também estranhamento, algo que pode ser igualmente traumático", reconhece Marie Lépine.
"É realmente difícil voltar à vida normal e pensar que está tudo bem", admite Alessandro Porro, de 39 anos, que acumula quatro missões com o "Aquarius".
"As pessoas se afogam no mar. É como assistir um avião que cai, que afunda. Isso não é normal e por isso a ajuda psicológica é algo bom para nós", explica.
Entre os socorristas, os perfis são variados: marinheiros mercantes, ex-militares, paramédicos, enfermeiras...
"Os que mais ajudam o grupo são os militares", afirma Marie Ablatir.
Os exércitos ocidentais modernos sabem muito de prevenção e conseguem detectar os sintomas pós-traumáticos em suas fileiras, mas, sobretudo, "ajudam o grupo a manter-se sempre focado em seu objetivo: salvar pessoas", acrescenta.
A maioria dos socorristas da SOS Mediterranée voltam a integrar missões. Alguns poucos jogaram a toalha. "Não estavam preparados para isso", confessa um dos marinheiros.